Opinião

Cessão de créditos trabalhistas e financiamento de disputas

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25 de agosto de 2021, 11h11

Na semana passada, lendo o jornal Valor Econômico, deparei-me com uma reportagem assim intitulada "TST admite possibilidade de venda de créditos trabalhistas", assinada pela jornalista Adriana Aguiar, onde refere que o brilhante ministro Douglas Alencar Rodrigues, em decisão singular, manifesta sua posição sobre ser válida a cessão de créditos trabalhistas a terceiros.

Como em minhas quatro décadas de advocacia exclusivamente trabalhista sempre fui contrário a tais situações, tendo que reconhecer que minha leitura da referida matéria começou a contragosto, com o firme propósito de com ele não concordar. Eu realmente jamais poderia servir como magistrado, posto que tenho o péssimo defeito de logo fazer um juízo preliminar. Mas, por isso que o contraditório é tão importante e jamais pode ser afastado, em qualquer situação.

Os bem lançados argumentos do ministro Douglas me fizeram pensar sobre a questão e, com minha confessada limitação, ir um passo adiante na questão, que peço licença para compartilhar.

Realmente a cessão de direitos está normatizada no artigo 286, do vigente Código Civil, e a Consolidação das Leis do Trabalho, tão injustamente atacada, é omissa sobre o tema, como também o foram as leis posteriores, que tratam da legislação trabalhista. Penso que, embora os créditos sejam trabalhistas, sua eventual cessão deva ser tratada mesmo, como é hoje, apenas pelo Código Civil. Não há omissão. Está o tema onde deve estar.

Mas já há legislações extravagantes que nos tempos mais recentes passaram a falar sobre o tema para situações específicas. Uma delas, foi a mencionada na própria matéria jornalística, Lei nº 11.101/2005, que dispõe sobre a Recuperação Judicial e Falência. É verdade, todavia, que a posterior Lei nº 14.112/2020 acabou revogando dispositivo que tratava da cessão de créditos trabalhistas, mas o legislador, em contrapartida, fez questão de deixar expresso no novo texto, que "os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação", exatamente para que mantivessem seu bom valor em eventual negociação com terceiros, ou seja, mantendo-se como crédito privilegiado nas falências.

Outra que se pode fazer referência é a jovem Lei 14.193, deste ano de 2021, criadora da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que estabeleceu a seguinte condição, em seu artigo 22:

"Ao credor de dívida trabalhista, como titular do crédito, a seu exclusivo critério, é facultada a cessão do crédito a terceiro, que ficará sub-rogado em todos os direitos e em todas as obrigações do credor e ocupará a mesma posição do titular do crédito original na fila de credores, devendo ser dada ciência ao clube ou pessoa jurídica original, bem como ao juízo centralizador da dívida para que promova a anotação."

Portanto, podemos verificar que se acendeu uma luz na atual composição do TST, onde já houve um prenúncio com o ministro aposentado Antonio José de Barros Levenhagen, tal como mostrado na própria matéria. Outrossim, o próprio legislador também já vem atualmente tratando a questão com inegável simpatia.

É bem verdade que temos, em contrário, o incisivo Provimento nº 6, da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (CGJT), ratificado no artigo 100 da Consolidação dos Provimentos.

Mas a carruagem anda e o Direito do Trabalho, bem como o próprio acesso ao Judiciário, vêm sendo constantemente atacados pelos Poderes Executivo e Legislativo.

A reforma trabalhista de 2017 é prova disso. Agora a discutida e nefasta Medida Provisória 1.045 recém aprovada pela Câmara dos Deputados, com todos os seus "jabutis", é a ratificação de deliberado desmonte da força que possuíam os trabalhadores em juízo, dificultando ao extremo o acesso ao Poder Judiciário. Também não se pode olvidar que o STF, pela maioria de seus ministros, tem há alguns anos andado na trilha de olhar o trabalhador sob um enfoque civilista na sua relação contratual com seu empregador. Cada vez mais está se tratando o trabalhador como um hipersuficiente, que na enorme maioria das vezes não o é, mesmo quando está decidindo sobre temas que importam aos mais humildes e desprivilegiados.

Esta "força", este "poderio econômico", que se pensa que o trabalhador passou a possuir, e na quase totalidade das vezes não possui, obviamente o está colocando em imensa inferioridade de condições nas suas disputas por reconhecimento de direitos trabalhistas, sejam na esfera judicial, sejam até nas crescentes arbitragens, agora admitidas na legislação, que sabidamente são muito onerosas. A disparidade de forças tem se tornado imensa, inaceitável, catastrófica frente ao constitucional direito de ação.

Quando se trata de trabalhadores com um nível econômico maior, ou seja, que acabam tendo uma maior remuneração, ao contrário do que se pode pensar em princípio, ou seja, que teriam melhor condição de suportar uma disputa com seu empregador, na verdade é muito pior. Primeiro, porque o risco, pelo próprio valor da disputa, obviamente é maior. Ao depois, porque têm o que perder de seus conquistados patrimônios.

Assim, quando ao início deste artigo, escrevi que iniciei a leitura da matéria jornalística com "maus olhos" e pronto para uma crítica à posição do ministro Douglas, agora com melhor reflexão, dou a mão à palmatória para agora dizer que ele tem carradas de razão.

Meu antigo preconceito, de não admitir em hipótese alguma a ocorrência da cessão de crédito, derivava da vivência desses longos anos de militância na Justiça do Trabalho. O que se via eram "cessões" extremamente lesivas, fraudulentas e que, muitas vezes, ocorriam em favor dos próprios advogados atuantes nas causas.

Isso não poderia ser admitido e ainda não pode. Nosso próprio órgão de classe, a OAB, não permite tal situação e está muito correto em assim se posicionar. Todavia, hoje nestes novos tempos, temos visto a constituição e atuação de empresas e fundos de investimento que têm feito de seus negócios exatamente essas cessões e, paralelamente, financiamentos de disputas.

São empresas que pelas suas características, possuem altos padrões de governança corporativa e, no caso dos fundos de investimento, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários, não podem, mesmo que queiram, transformar-se em "arapucas" para trabalhadores menos informados.

Agem e são obrigadas a agir com transparência, de forma legítima, com regras também de compliance. Hoje podem subsidiar, mediante total, ou principalmente parcial, cessão de créditos, a parte mais fraca na disputa, fomentando-a logo ao início, ou até antes mesmo dele, com capital, estrutura e subsistência, de maneira que esta possa lutar com maior paridade de forças, quer para o acesso ao Judiciário, quer para Câmaras de Arbitragens.

O medo que foi imposto aos trabalhadores pela eventual perda da ação, ou arbitragem, pela onerosa sucumbência, com um forte parceiro fica muito mitigado. Além disso, a longa demora de um resultado final não mais os obrigaria a aceitar acordos lesivos com seus diretos possíveis devedores/empregadores. No mínimo, seria dar uma opção ao trabalhador para até fazer uma concorrência para escolher quem ficaria com seu crédito e, por tal certame, ter uma menor perda, ou, sob outra ótica, um ganho.

Tal transparência, por óbvio, não excluiria a participação ativa dos advogados dos trabalhadores, que poderiam também ter uma colaboração extra nas suas atuações, ou não, a critério deles, e até mesmo também cederem, ou não, seus próprios créditos relativos aos honorários, da maneira que melhor lhes conviessem.

Hoje a situação é completamente diferente do passado. Essas novas empresas/fundos são obrigadas a agir com transparência e trazem à luz todos os benefícios e prejuízos que os eventuais negócios podem acabar gerando, com melhores oportunidades e escolhas para a tomada de decisões.

Assim, não vejo mais como predatória a cessão de créditos trabalhistas, desde que realizada nos termos da lei civil, com transparência e a um cessionário que trate o cedente de forma correta, atenta sempre a boa fé na realização do negócio.

Ela traz o enorme benefício de acabar com esse novo "medo" trazido aos trabalhadores de postularem seus direitos e, quando eles resolverem negociá-los, terão um outro "comprador". Antes tinham apenas o próprio devedor, que alcançava enormes deságios em transações, muitas delas lesivas. Agora apareceram outros interessados, que lhe trazem uma concorrência lícita e para ele saudável.

A aqui suscitada diminuição da disparidade de forças entre as partes, no fundo também contribuiria para que os maus empregadores deixassem de sê-lo, cumprindo suas obrigações trabalhistas na constância dos contratos, quer porque saberiam que encontrariam uma forte parte contrária que continuaria, como dantes, a procurar sem temeridade seus direitos, quer porque, uma vez já dentro da disputa, mesmo que lenta como infelizmente ocorre no Poder Judiciário, não entregaria seu direito por um lesivo acordo.

Autores

  • é sócio fundador de Rodrigues Jr. Advogados, membro da Academia Paulista de Direito do Trabalho, cadeira 18, grande-oficial da Ordem do Mérito Judiciário e condecorado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região — São Paulo.

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