Opinião

Sócio inexcluível? — MP 1.040 pode aumentar a insegurança para quem investe

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25 de agosto de 2021, 20h11

É fato incontroverso que a burocracia e a insegurança jurídica prejudicam o desenvolvimento econômico no Brasil. Dessa forma, são sempre louváveis as iniciativas para que seja criado um ambiente institucional que confira maior proteção aos investidores e simplifique a vida dos empreendedores.

Todavia, isso não pode ocorrer de modo simplista e irrefletido. Assim, por maiores que sejam as boas intenções que ensejaram a aprovação da Medida Provisória 1.040, que está a aguardar sanção presidencial, fato é que, além da violação ao processo legislativo constitucional, diversas das alterações legais propostas caminham justamente no sentido de aumentar a insegurança e diminuir a proteção de quem investe no país.

À vista disso, exemplar são as modificações no âmbito do Direito das Sociedades. Seria possível discorrer sobre várias delas, mas uma das mais emblemáticas encontra-se na nova redação dada ao parágrafo único do artigo 1.053 do Código Civil, que passa a prever que não será aplicado o artigo 1.030 à sociedade limitada cujo contrato social tenha regência supletiva pelas normas da sociedade anônima.

Ora, o artigo 1.030 do Código Civil trata da exclusão judicial (ou por meio de arbitragem, por óbvio) de sócio que comete falta grave, sendo espantosa a alteração legislativa com o objetivo de afastar a sua aplicação de determinadas sociedades limitadas.

Isso porque a exclusão de sócio pela prática de falta grave ou de atos de inegável gravidade é a expressão, no Direito Societário, da resolução do contrato por inadimplemento — adaptada ao contrato plurilateral [1] (como também ocorre com diversos outros institutos) [2]. E tanto isso é verdade que mesmo no regime anterior ao Código Civil, época em que inexistia previsão expressa de uma regra geral sobre exclusão de sócio, tal mecanismo era admitido [3]. Trata-se de instrumento que objetiva proteger a sociedade, extirpando-se o inadimplente do quadro social — sob pena de, inclusive, dar-se guarida ao tratamento desigual [4].

A exclusão de sócio é fenômeno que pode ocorrer em qualquer organização finalífstica de pessoas caso não possa tal associação prosseguir se a situação de conflito não for contornada [5], mesmo porque o direito de permanecer sócio não é absoluto [6]. Assim, "a exclusão de sócio por justa causa é, sim, princípio inerente ao fenômeno societário; é 'parte integrante de toda relação jurídica pessoal de duração'; 'é um direito do sócio leal ao contrato resultante de regras gerais de direito societário'.  Por isso, rigorosamente, prescinde de expressa previsão legal" [7].

E não por outra razão é que outros países, de uma forma ou de outra, admitem a exclusão de sócio por falta grave nas sociedades limitadas [8].

Assim, embora a alteração legislativa busque restringir a exclusão de sócio ao afastar a aplicação do artigo 1.030 do Código Civil (com a ilusão de que, nas sociedades por ações, diante da ausência de previsão legal, não seria possível a exclusão de acionista) [9], resta evidente que continuará sendo possível a exclusão judicial de sócio em qualquer sociedade limitada, mesmo porque não se pode esquecer do disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, o qual torna, aqui, a MP 1.040 inconstitucional ou inócua.

Como se tudo isso não bastasse, o mais curioso é que, ao mesmo tempo em que se afasta a incidência do artigo 1.030 do Código Civil às sociedades limitadas cujo contrato social seja regido supletivamente pela Lei 6.404/76, mantém-se hígida a aplicação do artigo 1.085, que permite a exclusão extrajudicial do sócio minoritário, desde que existente previsão contratual. Ou seja: pela lógica do legislador, seria possível somente a exclusão extrajudicial (que é muito mais gravosa, por óbvio, do que a exclusão judicial) do sócio minoritário (ou seja, o sócio majoritário poderia abusar de sua posição e espoliar livremente os demais investidores sem que existisse a possibilidade de ser excluído).

Dessa forma, a alteração proposta pela MP 1.040 traz, por óbvio, ainda mais incertezas, aumentando as discussões em litígios sobre exclusões de sócios — que, por si só, já são suficientemente complexas e azedas.

 


[1] V.g., Exclusão de sócio nas sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 16, n. 25, p. 39-48, 1977, p. 41-42; COMPARATO, Fábio Konder. Exclusão de sócio, independentemente de específica previsão legal ou contratual. In: ____. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 131-149, p. 138 ss; GOMES, Orlando. Parecer. In: PINHEIRO NETO & CIA. — ADVOGADOS. Sociedade de advogados. Exclusão de sócios. Prevalência do contrato. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais S.A. 1975. p. 111-134, p. 118-121; LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Exclusão extrajudicial de sócio em sociedade por quotas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, a. 34, n. 100, p. 85-97, out./dez. 1995, p. 88-89; REQUIÃO, Rubens. A preservação da sociedade comercial pela exclusão do sócio. Tese apresentada para o concurso à Cátedra de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná. Curitiba, 1959, p. 79-80, 246 ss.

[2] Nesse sentido, podemos dar os seguintes exemplos: (i) a invalidade do vínculo de uma das partes do contrato plurilateral acarreta a invalidade somente da adesão daquela parte, e não de todo o negócio jurídico: a sociedade (o contrato plurilateral), então, sobrevive (salvo se a prestação ou a participação do membro cujo ingresso foi invalidado for essencial à vida do ente coletivo, quando, então, ocorrerá a dissolução tendo em vista a impossibilidade de preencher o seu fim); (ii) não ocorre a incidência da exceptio inadimpleti contractus, positivada no artigo 476 do Código Civil: não pode um sócio recusar-se, por exemplo, a integralizar a sua quota subscrita simplesmente porque outro membro descumpriu tal obrigação, uma vez que a prestação é devida à sociedade e não aos demais sócios; (iii) o descumprimento da obrigação de integralização acarreta a resolução somente da adesão do membro inadimplente, e não a nulidade ou a resolução do contrato plurilateral: a sociedade sobrevive (salvo se a prestação ou a participação do sócio inadimplente for essencial à vida da sociedade, quando, então, dissolver-se-á pela impossibilidade de preencher o seu fim); etc. Sobre o tema, por todos, ver: ASCARELLI, Tullio. O contrato plurilateral. In: ____. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 255-312, p. 263 ss.

[3] No regime jurídico anterior, era muito comum fazer-se referência à existência de cláusula resolutiva tácita, nos termos previstos no Código Civil de 1916 (arts. 119, parágrafo único, e 1.092), tendo em vista a inexistência de regra expressa a regrar a exclusão de sócio por falta grave. Recorria-se, como não poderia deixar de ser, às normas do direito das obrigações. Nesse sentido, entre outros, ver: COMPARATO, Fábio Konder. Exclusão de sócio, independentemente de específica previsão legal ou contratual. In: ____. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 131-149, p. 140-141; FARIA, Sebastião Soares de. Sociedade civil. Exclusão de socio que não cumpre os deveres contratuais. In: ____. Pareceres e comentarios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933. p. 107-117, p. 109 ss; LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Exclusão extrajudicial de sócio em sociedade por quotas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, a. 34, n. 100, p. 85-97, out./dez. 1995, p. 88-89; REQUIÃO, Rubens. A preservação da sociedade comercial pela exclusão do sócio. Tese apresentada para o concurso à Cátedra de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná. Curitiba, 1959, p. 253, 269-270.

[4]  "Caso contrário, o próprio princípio da isonomia seria lesado, dando-se ao sócio inadimplente um tratamento privilegiado, admitindo que ele possa não prestar a colaboração devida." (LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Exclusão extrajudicial de sócio em sociedade por quotas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, a. 34, n. 100, p. 85-97, out./dez. 1995, p. 94).

[5] WIEDEMANN, Herbert. Gesellschaftsrecht, B. I. München: Beck, 1980, p. 385.

[6] COZIAN, Maurice; VIANDIER, Alain; DEBOISSY, Florence. Droit des sociétés. 24 ed. Paris: LexisNexis, 2011, p. 203.

[7] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Exclusão de acionista em sociedade anônima fechada. In: VENÂNCIO FILHO, Alberto; LOBO, Carlos Augusto da Silveira; ROSMAN, Luiz Alberto Colonna (org.). Lei das S/A em seus 40 anos. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 247-272, p. 256-257, grifo do autor.

[8] Para uma análise sistemática sobre a exclusão de sócio em outros países, ver: RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 112-125; e VIO, Daniel de Ávila. A exclusão de sócios na sociedade limitada de acordo com o Código Civil de 2002. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 12-34.

[9] Nesse sentido, ver: PRADO, Maria da Glória Ferraz de Almeida. A admissibilidade e a conveniência da exclusão do controlador em S.A. Tese (Doutorado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2015, p. 177 ss.

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