Opinião

A improbidade administrativa privilegiada no projeto de reforma da Lei nº 8.429

Autor

  • Carlos Eduardo Kuten

    é especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e assessor de desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

25 de agosto de 2021, 9h09

O Projeto de Lei 10.887/2018 [1] deflagrado na Câmara dos Deputados se propõe a modernizar a Lei de Improbidade Administrativa, vigente desde junho de 1992, e, para tanto, sugere significativas alterações no atual sistema.

Entre essas mudanças, talvez a que mais chame atenção seja a exclusão da responsabilização culposa, como se verifica, por exemplo, na redação proposta ao artigo 3º, §1º, do projeto de lei, que, ao dispor sobre pessoa externa à Administração pública, exige que o agente tenha conhecimento da irregularidade do ato e o pratique dolosamente. Da mesma forma, o artigo 18, §1º, passará a dispor, se aprovado, que a ilegalidade, sem a presença de elemento subjetivo que a qualifique, não configura ato de improbidade.

Sem embargo disso, diversos outros dispositivos também estão em discussão, e, nesse momento, ressaltamos a proposta de se acrescentar o §7º ao já existente artigo 12 [2] (que trata das penalidades), com a seguinte redação: em se tratando de atos de menor ofensa aos bens jurídicos tutelados por esta lei, além do ressarcimento do dano e da perda dos valores obtidos, quando for o caso, a sanção se limitará à aplicação de multa, nos termos do caput deste artigo.

Sobre isso, o projeto de lei traz em sua exposição de motivos a seguinte justificativa:

"(…) Perseguindo o desiderato de proporcionalidade entre ato e sanção, consequências jurídicas e ofensividade do ato, o anteprojeto inova criando a possibilidade de que atos ímprobos de baixa ofensividade sejam apenados de forma distinta daqueles atos ofensivos a uma maior gama de valores da administração pública ou que causem prejuízos relevantes."

Ousamos nomear, desde logo, essa provável figura legal como improbidade administrativa privilegiada, adjetivo esse já utilizado no Direito Penal em conhecidas tipificações, como, por exemplo, no tráfico de drogas privilegiado, no homicídio privilegiado e na lesão corporal privilegiada, normas penais que conferem um abrandamento de pena quando caracterizadas circunstâncias excepcionais de culpabilidade reduzida, sem, contudo, descaracterizar o próprio crime.

À primeira vista o instituto em discussão pode até parecer, para alguns, como uma espécie de impunidade, já que, em situações especiais, restringiria ao julgador a possibilidade de aplicar outras sanções mais severas já existentes na lei, tais como a suspensão dos direitos políticos, a perda do cargo ou do mandato e a proibição de contratar com o poder público.

Todavia, não entendemos dessa maneira, porquanto o projeto da improbidade administrativa privilegiada busca conferir tratamento punitivo mais adequado para aqueles atos irregulares que não podem deixar de ser repreendidos, porém de baixa ofensividade à Administração pública.

Trazemos como exemplo o interessante caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.512.654/SP [3], onde o administrador público foi condenado por ter autorizado, sem licitação, que um particular vendesse alguns mínimos salgados e refrigerantes aos artesãos participantes da feira de artesanato ocorrida no Parque Municipal de Jundiaí.

Nesse processo não houve qualquer demonstração de lesão ao erário ou de enriquecimento ilícito por parte do pequeno comerciante ou do gestor. Aliás, convenhamos que a venda de alguns mínimos salgados e refrigerantes sequer tem o condão de gerar verba suficiente para subsidiar eventual propina.

A discussão jurídica levada ao STJ nesse exemplo foi sobre a aplicação, ou não, do princípio da insignificância para absolver o agente, já que a mínima ofensividade da conduta e de seu resultado não seriam suficientes a configurar a tipicidade material.

A Corte Cidadã, entretanto, manteve-se firme em sua jurisprudência clássica no sentido de não aplicar o princípio da bagatela ao caso, tendo em vista a necessária proteção ao bem jurídico moralidade administrativa.

Contudo, chama a atenção no aludido julgamento a fundamentação do voto vencido exarado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que, entendendo pela aplicação do princípio da insignificância, consignou sobre a ausência de dano ao erário e a baixa ofensividade da conduta aos princípio administrativos, valendo citar o seguinte excerto: "(…) a autorização para que salgados e refrigerantes fossem, por um curto período, vendidos por particular em parque municipal não causou dano aos cofres públicos, nem ofendeu de modo expressivo os princípios administrativos".

Em tese, esse poderia ser o caso de aplicação da novel improbidade administrativa privilegiada, impedindo-se a aplicação de sanções mais severas que a multa civil.

Evidentemente não se aplaude e nem se estimula a prática de ilegalidades no trato com a coisa a pública, mas é notório que o cotidiano do administrador é repleto de condutas irregulares, porém que, na maioria das vezes, muito mais se aproximam de inabilidade do que improbidade.

É certo que o réu sempre busca sua absolvição integral para não carregar eternamente o fardo de ter um dia sido condenado pela prática de ato ímprobo, o que, como sabemos, desabona o histórico político de qualquer agente, no entanto, sendo impossível afastar a condenação, parece-nos que a imagem política do acusado seria menos arranhada se lhe aplicada a improbidade administrativa privilegiada, figura decorrente de ato sem grave repercussão ao patrimônio público.

Não se desconhece que o atual texto da Lei de Improbidade Administrativa já permite ao julgador fixar isoladamente a multa civil na dosimetria da pena de acordo com a gravidade do fato [4], porém, a improbidade administrativa privilegiada traria como vantagem a criação de mais uma ferramenta à defesa, impondo ao magistrado a obrigação consistente em fundamentar se é o caso, ou não, de se aplicar a benesse legal.

O texto constante no Projeto de Legislativo menciona os atos de menor ofensa aos bens jurídicos tutelados por esta lei para que haja a incidência do abrandamento da pena. A redação é aberta e deixa alguma margem para subjetivismo. Os principais bens jurídicos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa são o patrimônio público e a moralidade administrativa. Embora não exista um conceito definitivo do que consiste um ato de menor ofensa, entendemos que sejam aqueles que, de alguma maneira, malgrado causem algum grau de repúdio e se subsumam aos tipos legais específicos, não desfalcam o erário ou impedem o regular funcionamento da administração pública, partindo do clássico critério do homem médio.

A exposição de motivos do anteprojeto de lei caracteriza os atos de menor ofensa como sendo os que possuem baixo poder ofensivo – ou baixa relevância, ou baixa significância –, mas são ontologicamente atos de improbidade.

Podemos citar como exemplo, além do julgamento citado alhures, a utilização de veículo público para fins particulares [5] (o que é relativamente comum em pequenos municípios), quando o gestor permite que um determinado servidor se utilize do veículo da administração para resolver assuntos privados. Essa conduta devidamente tipificada como improbidade administrativa não pode deixar de ser punida, porém, uma vez ressarcido o erário com a devolução do valor do combustível e da eventual hora do servidor não trabalhada, não traz outros danos à administração pública, sendo suficiente, além da reparação patrimonial, a cominação de multa civil.

Por todo o exposto, compreendemos que a possível novel figura da improbidade administrativa privilegiada é bem-vinda ao ordenamento jurídico sancionatório, pois se caracteriza como mais um mecanismo à disposição do julgador para, de um lado não deixar o agente impune, e, por outro lado, não permitir a incidência de sanção demasiadamente rigorosa e desproporcional, sendo certo que a multa civil, dado seu caráter pecuniário, revela-se como suficiente, e muitas vezes mais eficiente, para repreender o agente e coibir novas práticas ilegais.

Autores

  • é especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e assessor de desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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