Opinião

Recursos 'ociosos' podem ser utilizados para políticas públicas na saúde

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24 de agosto de 2021, 6h03

É no orçamento público que é definido o suporte financeiro para que o Estado adote ações para o atendimento das necessidades públicas, desde a promoção de direitos e garantias fundamentais ao combate às desigualdades sociais e econômicas [1].

Ocorre que os recursos públicos são limitados e, por isso, o orçamento público é finito. Assim, o Estado deve adotar uma gestão fiscal responsável, por meio de uma adequada e detalhada alocação dos recursos para fazer frente às ações governamentais necessárias para a promoção do interesse público.

Nessa linha, o planejamento orçamentário é um dos requisitos para uma gestão fiscal responsável (artigo 1º, §1º, da LRF). Ele pressupõe que o gestor adote estratégias que apontem para o equilíbrio das contas públicas e, ao mesmo tempo, que sejam efetivas para o atendimento do interesse da coletividade, tendo sempre como diretriz maior os ditames da Constituição Federal.

No entanto, após a aprovação da lei orçamentária, é possível que eventos internos e externos demandem mudanças na alocação dos recursos inicialmente previstos. Por exemplo, a pandemia decorrente da Covid-19 exigiu um aporte maior de verbas na área da saúde, havendo a realocação de recursos que inicialmente eram previstos para outras áreas, como educação, cultura etc.

Portanto, o planejamento orçamentário deve ser adaptável às necessidades públicas de cada momento. Para tanto, o Estado poderá valer-se do instituto da realocação orçamentária, instrumento pelo qual se modifica a destinação de determinada dotação orçamentária. Pode ocorrer por meio de remanejamento, transposição ou transferência orçamentária [2].

O remanejamento é a realocação por meio da destinação de recursos de um órgão para outro, dentro de um mesmo ente. Pode ocorrer, por exemplo, em uma reforma administrativa. A extinção de um órgão pode levar o poder público a decidir pela realocação dos recursos orçamentários para outros órgãos.

A transposição é a realocação de recursos entre programas de trabalho, dentro do orçamento de um mesmo órgão. É o caso, por exemplo, da utilização de recursos inicialmente destinados para a construção de um hospital e que, após a transposição, são realocados para a reforma de hospitais já existentes.

Por sua vez, a transferência consiste na realocação de recursos financeiros entre as categorias econômicas de despesas, no orçamento de um mesmo órgão e dentro do mesmo programa de trabalho. Verifica-se, por exemplo, quando o poder público, na gestão de determinado hospital, decide utilizar recursos inicialmente previstos no orçamento para a contratação de novos servidores (despesa corrente) para arcar com investimentos em novos equipamentos (despesa de capital).

Com efeito, a questão da realocação de verbas repassadas pela União a Estados e municípios é tema extremamente relevante e atual para a concretização de políticas públicas na área da saúde.

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), rege o princípio da descentralização, de modo que grande parte das políticas públicas da saúde é executada pelos entes estaduais e municipais (artigo 198, I, da CF). Para tanto, compete à direção nacional do SUS, exercida pelo Ministério da Saúde, prestar cooperação financeira aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional (artigo 16, XIII, da Lei nº 8.080/1990).

Diante dessa competência, significativa parcela do orçamento federal para a saúde é alocada para ações previamente pactuadas pelos entes da federação, especialmente por meio de deliberações da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), formada por representantes de União, estados, Distrito Federal e municípios.

Além do mais, parte do orçamento da saúde também é definido por meio das emendas parlamentares individuais e de bancadas estaduais. Segundo o artigo 166, §9º e §11, da Constituição, as emendas parlamentares ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2%, para emendas individuais, e no limite de 1%, para emendas de bancadas estaduais, da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade destes percentuais deve ser destinada a ações e serviços públicos de saúde.

A liberação de tais recursos para estados e municípios, comumente, ocorre por meio de repasses aos fundos estaduais e municipais de saúde, formalizados por meio de portarias do Ministério da Saúde, com vistas ao atendimento de objetivos previamente pactuados entre os entes.

No entanto, muitas vezes, o ente destinatário é obrigado a utilizar recursos próprios para arcar, parcial ou integralmente, com cumprimento de tais objetivos. Isso ocorre, por exemplo, quando há atrasos dos repasses por parte do Ministério da Saúde e o gestor estadual ou municipal não pode aguardar a regularização da situação. Foi o que aconteceu com muitos estados e municípios, ao se depararem com atrasos de repasses federais para da abertura de novos leitos de enfermaria e unidade de terapia intensiva (UTI), ao longo da pandemia decorrente da Covid-19 [3].

Também pode acontecer de o ente destinatário conseguir cumprir com o objetivo pactuado por meio de despesa inferior àquela prevista pelo Ministério da Saúde. É o caso de um estado que, recebendo R$ 5 milhões para a compra de cem respiradores, consegue adquiri-los em valor inferior ao inicialmente estipulado pelo ministério.

Tais circunstâncias formam saldos financeiros milionários nos fundos estaduais e municipais de saúde, decorrentes de verbas repassadas pelo Ministério da Saúde. Os recursos repassados, no entanto, estão "carimbados" para um objetivo que já foi integralmente cumprido. Com isso, é inviável a utilização de tais verbas para outras ações em saúde. Ou seja, recursos repassados a entes que foram eficientes, cumprindo com os objetivos pactuados, permanecem "ociosos", sendo, em muitos casos, devolvidos ao Ministério da Saúde.

Foi com o intuito de viabilizar a utilização de tais recursos por Estados e municípios que foi publicada a Lei Complementar n° 172, de 15 de abril de 2020, recentemente alterada pela Lei Complementar nº 181, de 6 de maio de 2021, que permite a transposição e a transferência de saldos financeiros constantes dos fundos de saúde estaduais e municipais, provenientes de repasses federais. Para tanto, é preciso o cumprimento de alguns requisitos.

O primeiro deles é que a realocação, por meio da transposição e transferência, deve ser destinada ao financiamento as ações e serviços de saúde delineados nos artigos 2º e 3º da LC nº 141/2012. Portanto, pode-se utilizar a verba para, por exemplo, aquisição de testes e campanhas de vacinação contra a Covid-19, ampliação de leitos, reformas de hospitais, capacitação de pessoal etc.

Segundo, é imprescindível que o estado ou o município comprove o cumprimento dos objetos e dos compromissos previamente estabelecidos em atos normativos específicos expedidos pela direção do Sistema Único de Saúde, o que ocorre, normalmente, por meio de portarias do Ministério da Saúde.

Ou seja, a realocação apenas será permitida se restar comprovado o absoluto e integral cumprimento do objetivo originário do repasse. Assim, por exemplo, imagine-se que uma secretaria estadual de saúde recebeu, até 31/12/2020, recursos do Ministério da Saúde destinados a custear serviços médicos, por seis meses, em determinado hospital. Porém, a secretaria comprova que, por atraso nos repasses federais, foi necessário custear a referida despesa com recursos do Tesouro Estadual. Isto é, a secretaria consegue comprovar que houve o atendendo integral e absoluto do objetivo estabelecido pelo ministério por meio de recursos próprios do Estado. Nesse caso, está atendido o requisito da LC nº 172/2020, que possibilita a realocação do saldo do repasse federal para outras ações em saúde, seja pela alteração da categoria econômica (transferência) ou do programa de trabalho (transposição).

Por outro lado, imagine-se, por exemplo, que houve repasse de recursos pelo Ministério da Saúde, por meio de emenda parlamentar, para o fundo estadual de saúde, com vistas à aquisição de equipamentos, e a secretaria estadual de saúde, por algum motivo, não adquiriu tais bens ou adquiriu menos que a quantidade inicialmente estipulada. Nesse caso, verifica-se que o objetivo inicialmente pactuado não foi cumprido. Logo, em tal hipótese, não está preenchido o requisito da LC nº 172/2020 e, portanto, não será possível a realocação dos recursos.

Como terceiro requisito, tem-se a necessidade de inclusão dos recursos financeiros transpostos e transferidos na Programação Anual de Saúde e na respectiva lei orçamentária. Porém, não é necessária a aprovação de lei estadual ou municipal autorizando a referida movimentação de recursos. Isso fica claro ao se consultar a justificativa do PL 232/2019 (que ensejou a LC nº 172/2020), que expressamente prevê que tal norma dispõe-se a ser a "autorização prévia" prevista no artigo 167, VI, da CF, necessária para a transposição e transferências de recursos.

No mesmo sentido, por meio de nota explicativa, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) também esclarece que, com a aprovação da referida lei complementar, resta verificada a autorização legislativa necessária para a realocação dos recursos [4].

O quarto requisito é a ciência ao respectivo conselho de saúde, que, a depender da esfera, será o conselho estadual ou o conselho municipal de saúde. Tal condicionante fundamenta-se no necessário controle social das verbas de saúde.

O quinto requisito é previsto no artigo 3º da referida LC nº 17/2020, segundo o qual o ente que realizar a transposição ou a transferência permitida pela referida lei deverá "comprovar a execução no respectivo relatório anual de gestão".

O sexto requisito é a observância do prazo máximo para o ato de realocação dos recursos. A redação originária da LC n° 172/2020 previa que a transposição e a transferência de saldos financeiros aplicavam-se tão somente durante a vigência do estado de calamidade pública de que trata o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, o qual apenas produziu efeitos até 31/12/2020.

Ocorre que, após a chamada "segunda onda" da pandemia (no primeiro semestre deste ano), a LC nº 172/2020 foi recentemente alterada pela Lei Complementar n° 181, de 6 de maio de 2021, passando a prever expressamente que a "a transposição e a transferência de saldos financeiros de que trata esta lei complementar aplicam-se até o final do exercício financeiro de 2021". Portanto, até o fim deste ano, está permitida a realocação dos saldos de recursos repassados pelo Ministério da Saúde em anos anteriores, para utilização em novas ações na área da saúde.

Por fim, é importante esclarecer que LC nº 172/2020 não permite o remanejamento de recursos (realocação para outros órgãos), de modo que as verbas realocadas devem ser utilizadas integralmente no âmbito do orçamento das secretarias estaduais e municipais de saúde.

A possibilidade de realocação dos recursos "ociosos" nos fundos estaduais e municipais de saúde poderá conferir um relevante fôlego fiscal para estados e municípios na promoção de políticas públicas na área da saúde. O gestor deve estar atento para não desperdiçar essa importante janela de oportunidade para novos investimentos na saúde pública. Por se tratar de recursos de grande monta, chegando ao patamar dos milhões, eventual omissão poderá repercutir negativamente no julgamento das contas do gestor estadual e municipal, seja no momento da emissão de parecer prévio pelos Tribunais de Contas ou da apreciação final das contas pelo respectivo Parlamento (Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores).

 


[1] Sobre o tema do orçamento público como instrumento de combate às desigualdades, ver: SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual: ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

[2][2] FURTADO, José de Ribamar Caldas. Créditos adicionais versus transposição, remanejamento ou transferência de recursos, Revista do TCU, n. 106, out/dez 2005, p. 31.

[3] Veja, por exemplo, o caso do Estado do Rio Grande do Sul. Cf. Atraso em repasses do ministério faz Estado usar recursos próprios para pagar leitos de UTI. Disponível em: < https://www.estado.rs.gov.br/atraso-em-repasses-do-ministerio-faz-estado-usar-recursos-proprios-para-pagar-leitos-de-uti>. Acesso em 15/8/2021.

[4] CONASEMS – Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Nota Explicativa CONASEMS: Lei Complementar nº 181, de 06 de maio de 2021. Disponível em: <https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/05/NOTA-CONASEMS-LC-181-1.pdf>. Acesso em 15/8/2021.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito Financeiro pela USP, mestre em Direito do Estado pela UFPE, procurador do Estado de Pernambuco, atuando como procurador coordenador do Núcleo da PGE/PE junto à Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco.

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