Diário de Classe

Lawfare: Quando a lei (ou seu uso estratégico) aniquila o Direito

Autor

  • Jefferson de Carvalho Gomes

    é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes) mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes) especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

21 de agosto de 2021, 8h01

O presente texto tem como objetivo analisar o instituto do lawfare ante o complexo fenômeno que é o Direito. Para tanto, se buscará, em um primeiro plano, fazer uma análise do conceito de lawfare, o seu modus operandi e por conseguinte como é possível que tal fenômeno ocorra dentro de um Estado Democrático de Direito.

Desde 2016, o direito brasileiro tem passado a conviver com novos elementos em seu cotidiano. Um deles é o chamado lawfare, que passou a surgir com uma certa dose de protagonismo a partir do processo de impeachment da ex-Presidente da República Dilma Rousseff.

A partir daí, o tema vem sendo tratado recorrentemente tanto no âmbito da prática jurídica, como também na academia. Motivo este então que faz com que este texto venha tentar debater e pensar este tema a partir da teoria do direito, tentando compreender este fenômeno a partir de um prisma que seja possível mostrar suas raízes, ou como é possível que tal categoria possa surgir e se instalar numa estrutura que, em tese, é regida justamente por um Estado de Direito, ou seja, o que se busca ao fim desta breve reflexão é entender a seguinte questão: é compatível a existência do lawfare com o Direito?

Para que seja possível compreender este fenômeno, que é o lawfare, se faz necessário entender primeiro qual o seu conceito, de onde vem e por que veio. Classicamente, o lawfare é conhecido como o uso da lei como arma de guerra[1]. Esta construção teórica se dá justamente a partir das clássicas lições de Oder Kittrie, como mostram os Professores Antonio Santoro e Natalia Lucero[2].

Trazendo para o cenário nacional, o lawfare foi conceituado como sendo o "uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo"[3], o que automaticamente já coloca a se refletir: será suficiente este conceito para tratar do tema do lawfare?

Em um primeiro plano, há de se analisar respeitosamente o que se entende por uma incompletude conceitual do que vem sendo debatido sobre o tema, pois não se atém ao mais importante, que é tentar compreender o fenômeno histórico e a tradição que antecedem o próprio fenômeno que culmina no lawfare. Eis, então, a importância do método hermenêutico-conceitual, que é dado pela Crítica Hermenêutica do Direito para poder enfrentar o tema, pois só há como entender o lawfare se primeiramente for possível compreender como se chegou a este estado de coisas.

Pois bem: tentando pensar neste fenômeno somente a partir do direito brasileiro, há que se observar o que já vem sendo denunciado há décadas pelo professor Lenio Streck, que é o recorrente ataque ao Direito, pelos seus predadores, que são a moral, a política e porque não dizer a discricionariedade exacerbada que faz com que os juízes pensem dia após dia, que podem, por exemplo, decidir de acordo com a sua consciência.

Isto se dá claramente pela ausência de compreensão do próprio fenômeno complexo que é o Direito. Muito embora o debate sobre o que é o Direito seja deveras complexo, e que não cabe nas breves linhas desta coluna, há que se ter um mínimo do que é o Direito[4], para se ter justamente o norte teórico que será usado para combater o lawfare. Este recorte se mostra importante para que fique completamente delimitado sob qual enfoque está a se criticar o uso do lawfare como se fosse uma categoria do Direito.

Sendo assim, entende-se como mais acertada a compreensão do Direito como instrumento de contenção do poder, que é dada por Streck. Tal concepção se dá justamente pela necessidade de se reconhecer a autonomia do Direito, para que se consiga sustentar a democracia e por conseguinte o Estado de Direito. Ou seja, para dizer (ou tentar dizer) que o lawfare seja o uso do Direito (ou da lei) como instrumento de guerra, faz-se necessário primeiro tentar entender se de fato há Direito nesta categoria (o que de antemão já se afirma que não), pois o Direito como garantidor e elemento que sustenta o Estado Democrático pressupõe coerência e integridade, justamente tudo o que falta ao lawfare.

É neste sentido, inclusive, que apontam as valorosas observações de Frederico Pessoa da Silva, Isadora Ferreira Neves, e Pietro Cardia Lorenzoni, quando afirmam[5] que:

Talvez o que precise ser reafirmado (pois já foi inúmeras vezes colocado por Lenio Streck) é o fato de que a autonomia do direito, pela Crítica Hermenêutica do Direito, está intrinsecamente ligada à democracia. Isso, porque a defesa de um direito autônomo inclui compromissos institucionais, que atravessam de forma geral a atuação do poder público e que atingem tanto o Judiciário como as demais instituições do Estado. Trata-se, sobretudo, da defesa do Estado Democrático de Direito, o que demanda, primeiramente, o fortalecimento de uma legalidade constitucional. Com isso se quer afirmar uma atuação estatal que tem o seu projeto definido constitucionalmente.

A partir daí, passado este necessário recorte, é que se entende como acertado o conceito para entender o lawfare, que é dado por Lenio Streck[6], que o define como sendo a “construção fraudulenta do raciocínio jurídico para perseguir fins politicamente orientados”. A reflexão acima é acertada por justamente entender o maior problema que envolve o tema: a falta de Direito no lawfare, pois só é crível conceber o surgimento do lawfare se não houver o Direito.

Superada então a tentativa de construção conceitual sobre o lawfare e partindo do paradigma dado por Streck — da construção fraudulenta do raciocínio jurídico —, é que se tenta responder ou refletir sobre como o lawfare conseguiu ser alçado a este certo protagonismo que vem alcançando no Direito brasileiro.

Esta construção fraudulenta do raciocínio jurídico pode ser vista como o (mau)uso da lei como instrumento de guerra, que visa aniquilar a quem se tem como inimigo. Mas a grande questão posta aqui é que o lawfare, como um agir estratégico, por assim dizer, só existe porque seguramente falta o Direito, pois se o Direito é o mecanismo de contenção do poder, jamais numa ótica de um Estado Democrático de Direito, poderia ser concebível a criação ou o uso do lawfare como estratégia.

O Direito, que tem o objetivo de conter o poder, surge justamente para evitar que se faça uso da lei como instrumento de perseguição, pois o Direito está para conter os anseios antidemocráticos de quem tem o poder de acusar, julgar ou investigar. Ou seja, se há lawfare é porque falta o Direito e por isso, o conceito de lawfare não pode passar pela concepção de que seria o uso da lei (ou do Direito) como um instrumento de guerra, e por isso que só há como conceber este fenômeno como sendo este sequestro retórico que tenta iludir que é possível manipular a lei, matando, por conseguinte, o Direito.

Nesta constante tentativa de se matar o Direito — afinal, quem tem o seu poder contido tenta sempre eliminar quem o limita — vem então o lawfare, entre tantos outros predadores que já existem, tentando assumir este protagonismo de tentar aniquilar o Direito. Tentando entrar nesta metáfora da Guerra, imposta pela gramática do lawfare, pressupõe-se que a Constituição é a arma (ou o antídoto) para que não se aniquile o Direito, pois a história sempre mostra o inevitável: quem hoje aplaude o tiro, amanhã é alvejado sem nem saber mais saber de onde vem a bala. Que a nossa guerra seja para que o Direito mais uma vez resista a estes ataques e consiga, ao fim, conter mais uma vez o seu mau uso, pois esta é a garantia intrínseca ao Direito e à sua autonomia.

[1] DUNLAP JR., Charles J. Lawfare today and tomorrow. International Law and Changing Character of War. Disponível em https://scholarship.law.duke.edu/faculty_scholarship/2465/

[2] SANTORO, Antonio Eduardo R., LUCERO, Natalia. Lawfare Brasileiro. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. p. 32.

[3] ZANIN MARTINS, Cristiano. ZANIN MARTINS, Valesta Teixeira. VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. p. 21.

[4] Para tanto recomenda-se a leitura do capítulo 2, do livro Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

[5] É perigoso (não) defender limites à atuação do Poder Judiciário nos dias atuais?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-19/perigoso-nao-defender-limites-atuacao-judiciario#_ftn14

[6] STRECK, Lenio Luiz. Enciclopédia do golpe – Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119.

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