Opinião

A falácia da classificação fiscal e seus reflexos nas propostas de reforma

Autor

  • Sérgio Bezerra

    é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e advogado tributarista no escritório Telino & Barros Advogados Associados.

21 de agosto de 2021, 6h34

Recentemente um dos portais jurídicos mais famosos do Brasil divulgou matéria a respeito de casos tributários que chegaram ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre classificação fiscal de mercadorias. Em um dos trechos, diz que essas "discussões demonstram a dificuldade de se fazer negócios no Brasil". É sobre esse tipo de impressão, inexata, que trato neste artigo.

As citadas discussões tributárias acerca da classificação fiscal de mercadorias residem em torno da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), que atribui um código numérico as mercadorias, servindo como base para incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Programa de Integração Social (PIS), da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Imposto de Importação, tributos esses de competência da União, ainda com reflexos no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência dos estados.

A matéria cita vários casos conhecidos, principalmente para quem atua no âmbito tributário, sendo bastante utilizados por especialistas que criticam o sistema tributário brasileiro e que defendem uma reforma tributária ampla.

O Carf foi provocado a analisar, por exemplo, se o famoso "leite de rosas" seria desodorante ou loção embelezadora [1], como também se a barra de cereal seria produto de confeitaria ou flocos de cereal [2].

A discussão vem à tona em virtude de que a legislação do IPI, por exemplo, traz diferentes alíquotas para os produtos de acordo com a essencialidade da mercadoria. Com isso, no caso da barra de cereal, o produto poderia ser isento caso fosse classificado como uma preparação alimentícia obtida a partir de flocos de cereais. Contudo, o Carf decidiu enquadrar a NCM referente a "outros produtos de confeitaria", tributando-o com alíquota de 5%.

Em uma análise rasa, sumariamente é possível concluir que, de fato, as discussões no âmbito do tribunal administrativo sobre a classificação de mercadorias dificultam os negócios do país, sendo prejudicial também para arrecadação, vez que o litígio sequer teria sido iniciado caso a legislação fosse clara neste aspecto.  

Nesse cenário, pelo impacto social que traz os citados julgados do Carf, os especialistas utilizam esse discurso para criticar o sistema tributário brasileiro, demonstrando a necessidade de realizar uma reforma tributária profunda no Brasil, sem, contudo, indicar que o problema da classificação fiscal de mercadorias afeta vários países do mundo.

Um dos nomes mais fortes dessa corrente, o ilustre economista Marcos Lisboa, uma vez afirmou que: "Uma regra para tributar chocolate, outra para tributar cereal. E a barra de cereal com chocolate, é o que? Não sei, vai para o judiciário decidir…".

Pelo impacto dessas opiniões, o discurso vai se alimentado na sociedade até que vire uma constante. Basicamente, alguns estudiosos afirmam que nosso sistema tributário é um dos piores do mundo ou, como constantemente afirma o atual ministro da Economia, é um "manicômio tributário".

O intuito do presente artigo não é defender o atual sistema nem apresentar razões contrárias a uma reforma tributária ampla que fomente a atividade empresarial e diminua as desigualdades, muito menos exaurir o tema com as opiniões aqui lançadas. Pretende-se evitar que esses discursos com grande apelo social se espalhem pela sociedade, sem, ao menos, analisar o contexto em que eles estão inseridos.

Voltando ao tema sobre a classificação fiscal das mercadorias para fins de tributação, essa dificuldade de interpretação não ocorre só no Brasil. Do teor das matérias e entrevistas, os especialistas tratam o problema como se fosse só nosso, mas é uma constante no mundo inteiro, pelo fato de que é impossível o legislador (ou quem lhe faça as vezes) fixar um determinado enquadramento a todos os tipos de produtos ou situações que o mundo real pode trazer para a realidade jurídica.

Em Portugal, o Supremo Tribunal Administrativo [3] (órgão semelhante ao Carf) teve de decidir se a água sanitária misturada com detergente continuaria a ser classificada como água sanitária para fins de tributação ou deveria ser enquadrada como componentes gerais de limpeza. Nesse caso, o contribuinte defendia que sendo água sanitária os produtos deveriam ser tributados pelo IVA à taxa de 8% e não à taxa de 17%, alíquota utilizada para os produtos de limpeza em geral.

Assim, se há uma regra para tributar água sanitária e outra para tributar os detergentes, como classificar a água sanitária misturada com detergente?

Ainda no país lusitano, o Tribunal Central Administrativo Sul [4] foi provocado para manifestar se incide o imposto automóvel (IA), nosso IPVA, em um veículo importado. Isso porque em Portugal, à época deste fato, havia isenção para os chamados "automóveis ligeiros de mercadorias" que são as conhecidas minivans de transportes de mercadorias. O importador, nesse caso, importou um veículo Nissan Terrano II, do modelo KVPR 20, e pretendia obter a isenção do tributo sobre o automóvel por entender que era utilizado para transporte de mercadorias. A Fazenda Pública, por sua vez, entendia que se tratava de automóvel de passageiros. Nesse caso, o Nissan é veículo de cargas ou de passeio?

Na Malásia, por exemplo, há uma discussão quando o importador realiza uma operação com uma caminhonete cabine dupla. As picapes típicas são classificadas no código HS 87.04, "veículos motorizados para o transporte de mercadorias". Nesse caso, hipoteticamente falando, a caminhonete teria uma cabine dupla para passageiros; assim, pode-se argumentar que o veículo também pode ser classificado no Código HS 87.03, "automóveis e outros veículos motorizados principalmente concebidos para o transporte de pessoas".

A classificação é controversa porque uma caminhonete classificada sob o código HS 87.04 atrairia 30% de imposto de importação, enquanto uma que é classificada sob o código HS 87.03 atrairia apenas 10% de imposto de importação. Nesse caso, uma caminhonete que realiza o transporte de mercadorias e de pessoas estaria enquadrada em que alíquota?

Portanto, a discussão e os problemas de interpretação sobre a classificação de mercadorias para fins tributários não afetam apenas os negócios do Brasil, como os especialistas tentam passar à sociedade. É um dilema que afeta vários — senão todos — países.

As tentativas de criticar o nosso castigado sistema tributário, nesse aspecto, merecem maiores reflexões dos especialistas que frequentemente utilizam esse discurso para causar impacto social.

O tema é bastante relevante, pois esses argumentos vão se contaminando em meio à sociedade, fazendo com que, por exemplo, alguns especialistas defendam a tributação de dividendos nos moldes do Projeto de Lei nº 2337/2021 sob o argumento de que todos os países tributam a distribuição de lucros.

Acontece que o Brasil atualmente tem uma das maiores cargas tributárias corporativas entre os países em desenvolvimento e o pior retorno em serviços públicos de qualidade, segundo o IBDT [5]. Nenhum país que vislumbre desenvolvimento pretende tributar a soma do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e os dividendos no importe de 49%, como pretende o governo federal.

Não é pelo fato de o Brasil necessitar de uma profunda reforma tributária, que diminua a complexidade do sistema e a regressividade da tributação, que é facultado argumentar sobre determinado tema descontextualizando-o do cenário mundial. Utilizar esses discursos com grande apelo social sob o pretexto de defender uma reforma é consentir que as propostas apresentadas em Brasília visem, exclusivamente, ao aumento de arrecadação, como pretende o Projeto de Lei nº 2337/2021. Fica a reflexão.

 


[1] Processo: 12897.000581/2009­68. 2ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção.

[2] Processo: 10932.000075/2005-46. Câmara Superior do Carf.

[3] Supremo Tribunal Administrativo. Processo: 01174/04.

[4] Tribunal Central Administrativo Sul. Processo: 01130/06.

Autores

  • é pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e advogado tributarista no escritório Telino & Barros Advogados Associados.

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