Opinião

Ainda o artigo 142 da Constituição Federal

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19 de agosto de 2021, 20h33

Em nenhum Estado democrático de Direito as Forças Armadas exercem ou podem exercer o tal "poder moderador" a que estão se referindo o presidente da República e seu ministro Augusto Heleno, em razão do conflito institucional criado com os tribunais superiores (Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal). As Forças Armadas são órgãos de segurança do Estado e estão subordinadas ao presidente da República para a garantia da lei e da ordem, nos exatos termos do artigo 142 da Constituição Federal.

Sua redação é de absoluta clareza gramatical: "Artigo 142 — As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Portanto, a função precípua das Forças Armadas é a de garantidora das prerrogativas dos poderes constitucionais, cuja intervenção poderá ser invocada sempre que um órgão do Estado vier a sofrer grave violação que exija o uso coercitivo das armas. Jamais para violarem tais prerrogativas, como pretendem dissimuladamente os interlocutores da suposta "intervenção militar"  termo esse que não passa de um eufemismo para um golpe militar.

À clareza gramatical do artigo 142 se somam as mais diversas formas de interpretação constitucional. De J.J. Canotilho, importante constitucionalista português, extrai-se um leque de princípios reconhecidos internacionalmente, inclusive no Brasil, nomeadamente os princípios da unidade da constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade funcional, da concordância prática e da força normativa da Constituição. Todos eles formam um sistema coeso e coerente de exegese constitucional, e realçam o comando de uma ordem jurídica orientada por uma constituição balizada pelos direitos fundamentais. Não caberia neste artigo discorrer sobre seus conteúdos, cujo propósito se limita a demonstrar, com singelas e sumárias observações, que não há o mínimo fundamento para a tese espúria de poder moderador a ser atribuído a Exército, Marinha e Aeronáutica.

Referidos princípios orientam o Direito Constitucional, que, nos últimos 70 anos, firmou-se em tornou de um novo positivismo jurídico, calcado no imperativo categórico de Kant de dignidade da pessoa humana, invertendo a lógica de poder estatal reinante até o final da 2° Guerra. O velho positivismo havia fracassado com sua crença de que seria possível dar ao Direito a mesma metodologia certeira e mecânica das ciências exatas ou biológicas. O Estado autoritário que levou a humanidade à maior carnificina da história havia ruído e era preciso que os juristas fizessem um reencontro com a metafísica do Direito natural e resgatassem os filósofos que deram fundamento para as revoluções do Século das Luzes.

Como é sabido, o século 18 formou os alicerces do Estado de Direito inspirado em Rousseau e o princípio da "vontade geral" do povo como origem do poder; e em Montesquieu e o moderno princípio da tripartição e independência dos poderes. Aqui vale lembrar Kelsen, para quem só o Legislativo cria a lei; ao Executivo e ao Judiciário caberiam aplicá-la, sendo que a este caberia a palavra final para interpretar e dizer o que é e o que não é o direito em caso de conflito.

Como todos são "independentes e harmônicos entre si" (artigo 2º, CF), cada um contrabalança o poder do outro sem que nenhum usurpe ou interfira na função que é própria do outro.

Com efeito, a Constituição Federal deve ser interpretada como um sistema único e integrado de normas, pautado sobretudo por critérios extraídos da ciência do Direito. Não se pode pinçar uma regra fora desse contexto lógico e voltado para um fim superior, que é a garantia da liberdade e da democracia, para beneficiar interesses de grupos ou facções insatisfeitos com a lei ou as decisões judiciais.

Seria incrível que a Carta de 1988, cujas bases ideológicas vêm do "neoconstitucionalismo" do pós-guerra, sobretudo das Constituições alemã de 1949 e portuguesa de 1976, contivesse uma caixinha de pandora em um de seus 250 artigos autorizando o presidente da República a usar forças militares para suspender ou cassar prerrogativas constitucionais dos magistrados por se sentir prejudicado, ele e seus apoiadores, com suas decisões.

De resto, vale ainda lembrar outra obviedade: o ordenamento jurídico possui variados mecanismos para coibir o abuso e a ilegalidade, como o impeachment dos ministros do STF (artigo 52, II, CF). Não para constrangê-los quanto ao conteúdo de seus votos, mas para quando praticarem atos ímprobos ou criminosos.

Além de grosseira e de má-fé, a tentativa de golpe militar contra o STF  ou também o Congresso Nacional  caracteriza crime de responsabilidade do presidente da República, conforme singela leitura do artigo 85 da Carta: "Artigo 85  São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: II  o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos poderes constitucionais das unidades da Federação".

Ninguém que tenha lido e entendido o texto constitucional pode ignorar deduções tão comezinhas, a não ser aqueles que, a pretexto de defenderem o Direito estão, na realidade, tentando dar maquiagem jurídica ao velho golpismo de uma facção da sociedade, saudosa do golpe de 1964, herdeira ideológica daqueles que rasgaram a Constituição de 1946 para mergulhar o Brasil por 21 anos na violenta, espúria e desastrada ditadura militar, de cuja herança sinistra ainda colhemos frutos malditos.

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