Opinião

Sociedade Anônima de Futebol, um novo e peculiar tipo societário

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18 de agosto de 2021, 6h02

Foi sancionada no último dia 6 a Lei 14.193/21, que institui a Sociedade Anônima de Futebol (SAF), a qual entra para o mundo jurídico com diversas peculiaridades em decorrência da sua necessidade de ter como atividade principal a prática do futebol, masculino e feminino, em competições profissionais. A lei também dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística e tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas.

No presente artigo, analisamos essa nova figura jurídica sob a perspectiva exclusivamente societária, nos debruçando sobre suas particularidades e curiosas determinações.

Constituição
Inicialmente, destaca-se que a SAF pode ser constituída de forma originária e derivada. Na primeira modalidade, a SAF pode ser criada por iniciativa de pessoa natural ou jurídica, ou de fundos de investimentos; na segunda, ela pode resultar de uma transformação de clube ou de sociedade empresária dedicada ao fomento e à prática do futebol, ou da cisão de departamento de futebol de determinado clube ou pessoa jurídica, com a transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebolística.

Caso a SAF seja constituída mediante cisão do departamento de futebol de determinado clube, ela necessariamente deverá observar certas condições, quais sejam: 1) receber do clube que lhe deu origem todos os direitos e deveres vinculados à atividade do futebol; 2) acordar sobre a utilização e pagamento referente aos direitos de propriedade intelectual de titularidade do clube cindindo; 3) acordar as condições para utilização das instalações desportivas do clube, caso estas não sejam transferidas para a SAF; e 4) emitir obrigatoriamente ações ordinárias de classe A para subscrição exclusiva do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu.

Ações ordinárias classe A e suas prerrogativas
A criação obrigatória de ações ordinárias que somente poderão ser subscritas pela pessoa jurídica detentora original do acervo cindido é uma especificidade que apenas a SAF detém. Embora a criação de ações de classes diferentes possa ocorrer em operações societárias para acomodar interesses diversos dos acionistas, ela se restringe a companhias fechadas, por força do parágrafo primeiro do artigo15 da Lei das SA, e decorre do exercício da liberdade contratual das partes, não sendo imposta mediante força legal, como ora ocorre na SAF.

Tais ações ordinárias de classe A conferem a seu titular direitos excepcionais, na medida em que prevê que, independentemente do percentual que detenha no capital votante ou social, a sua aprovação é necessária para implementação de: 1) alteração da denominação da companhia; 2) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; 3) mudança da sede da SAF para outro município; e 4) qualquer alteração no estatuto da companhia que modifique, restrinja ou subtraia os direitos conferidos por essa classe de ações, ou para extinguir a ação ordinária da classe A.

Além disso, enquanto as ações ordinárias de classe A corresponderem a pelo menos 10% do capital social votante ou do capital social total da sociedade, a aprovação de operações e reestruturações societárias relevantes pela SAF ficam condicionadas ao voto afirmativo do titular de tais ações, nos termos do parágrafo terceiro do artigo 2º da Lei 14.193/21.

De qualquer forma, é questionável a obrigação de se emitir ações ordinárias de classe A, em especial considerando a liberdade contratual das partes, que podem eventualmente criar subterfúgios para alcançar a estrutura societária final desejada.

Estrutura societária
A estrutura societária da SAF, além de prever a existência de acionistas com ações "superordinárias", traz ainda outras peculiaridades. De acordo com o artigo 4º da Lei 14.193/21, o acionista controlador de qualquer SAF, de forma individual ou por meio de acordo de controle, não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra Sociedade Anônima de Futebol. Mais do que isto, caso determinado acionista detenha 10% ou mais do capital votante de outra SAF, ainda que não a controle, ele não terá direito de voto nas assembleias gerais, nem poderá participar da administração de referidas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada. Portanto, a lei admitiu como regra a existência de um conflito formal de interesse de tal acionista e, assim, criou proibições expressas a ele no exercício de seus direitos políticos em âmbito societário.

Além disso, pelo artigo 6º de referida lei, qualquer pessoa jurídica que detenha 5% ou mais do capital social da SAF deverá informar a ela, bem como à entidade nacional de administração do desporto, os dados da pessoa natural que a controle ou de seu beneficiário final, sob pena de suspensão dos direitos políticos e retenção de dividendos, juros sobre o capital próprio ou de qualquer outra forma de remuneração declarados até o cumprimento de tal dever.

Administração da SAF
Quanto à estrutura da administração da companhia, o artigo 5º da lei prevê que o conselho de administração e o conselho fiscal são, para a SAF, órgãos de existência obrigatória e funcionamento permanente. Assim, diferentemente do que é previsto atualmente na Lei das SA, criou-se a obrigação legal da criação e operação desses órgãos de forma perene; mais do que isso, foram criadas restrições às pessoas que podem ser eleitas para o conselho de administração, o conselho fiscal ou mesmo para a diretoria de uma SAF, conforme previsto no parágrafo primeiro do artigo 5º dessa lei, com o intuito evitar um conflito formal de interesses dos membros de referidos órgãos.

Uma outra obrigação legal da administração da SAF que chama bastante a atenção é o dever de manter em seu site o seu estatuto social, atas de assembleias gerais, composição e biografia dos membros do conselho de administração, conselho fiscal e diretoria e relatório da administração sobre os negócios sociais, incluindo o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, e os principais fatos administrativos, a serem atualizados mensalmente, sob pena de responsabilidade pessoal dos administradores da SAF.

Financiamento da SAF e as debêntures-fut
De acordo com o artigo 26 da Lei 14.193/21, as SAF poderão emitir debêntures, denominadas "debêntures-fut", que possuem como características: 1) remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitida a estipulação, cumulativa, de remuneração variável, vinculada ou referenciada às atividades ou ativos da Sociedade Anônima do Futebol; 2) prazo igual ou superior a dois anos; 3) vedação à recompra das debêntures-fut pela Sociedade Anônima do Futebol ou por parte a ela relacionada e à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários; 4) pagamento periódico de rendimentos; e 5) registro das debêntures-fut em sistema de registro devidamente autorizado pelo Banco Central do Brasil ou pela Comissão de Valores Mobiliários, nas suas respectivas áreas de competência.

Vale destacar que tais recursos estão marcados: de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 26, eles devem ser alocados no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da SAF previstas em lei como em seu estatuto social.

Conclusão
Embora a SAF possua regência subsidiária da Lei 6.404/76 (Lei das S.A.) e da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), é possível arguir que se trata de um novo tipo societário, em especial pelas diversas especificações trazidas pela Lei 14.193/21 sobre sua estrutura societária e de governança, quóruns específicos de deliberação de determinados tópicos, limitação de responsabilidade, entre tantos outros elencados acima. Assim, é provável que diversas modificações legais alterem ou regulamentem suas previsões ao longo dos anos, considerando os desafios jurídicos que esse novo tipo societário poderá enfrentar na prática.

Além disso, ressaltamos que, até o presente momento, tal estrutura se limita ao exercício de um esporte particular, o futebol, mas abre caminho para que novas discussões jurídicas de âmbito societário atinjam toda a estrutura desportiva no Brasil.

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