Garantias do Consumo

A Lei 14.181/21 e o cartão de crédito consignado

Autor

  • Marcus da Costa Ferreira

    é especialista em Direito Ambiental pela Unigoiás e em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra-Portugal mestrando em Direito pela Universidade de Girona Espanha professor de Direito do Consumidor em cursos de pós-graduação em diversas universidades e escolas de magistratura desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás coordenador do Sistema dos Juizados Especiais do mesmo estado e diretor do Brasilcon.

18 de agosto de 2021, 8h00

Apesar da profusão legislativa que assola a nação, não se pode dizer que o Brasil seja um país dotado de arcabouço legislativo ruim, deficiente ou inexpressivo, sendo certo que temos ótimos diplomas legais, nas três esferas administrativas, capazes de regulamentar a existência e funcionamento do Estado, suas relações com os particulares e as relações entre estes.

O que talvez não sejamos capazes, com o necessário vigor, é de dar aplicação aos textos legais vigentes. Muitas vezes por se mostrarem contrários à visão não sempre aberta dos magistrados encarregados de sua aplicação; outras por comodismo, posto ser bem mais simples repetir as fórmulas e decisões que alguém usou em data pretérita, ou por e até mesmo porque alguns diplomas legais simplesmente "não pegam", em fenômeno tão nacional quanto a jabuticaba ou o pequi.

Boa prova disso é que a Constituição da República, desde 1988, garantiu a todos os litigantes, em juízo ou na seara administrativa, como um direito fundamental (artigo 5º, LV), o contraditório e a ampla defesa, com todos os recursos a eles inerentes, ou seja, com a real possibilidade de influenciar o julgador da veracidade de sua versão. E, mesmo assim, nos limitávamos a permitir à parte manifestação sobre o que o outro havia produzido nos autos, pensando que assim estaria cumprido o contraditório.

Anos a fio assim se procedeu no Brasil, até que foi editado o vigente Código de Processo Civil, através da Lei 13.105/2015, demonstrando a necessidade de efetiva aplicação do princípio do contraditório, rachando a redoma que envolvia o julgador, pela adoção de fórmulas simples como os princípios da não surpresa, da primazia de decisão de mérito e da cooperação processual, da distribuição dinâmica do ônus da prova, dentre diversos outros.

Ao comemorarmos os 30 anos de vigência do Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor, com reais e efetivas conquistas a serem celebradas em favor do ente vulnerável nas relações negociais, ainda nos deparamos com determinada dificuldade para sua plena aplicação, muito embora se cuide de norma de ordem pública e interesse sócia, bastando nos lembrar do teor do artigo 46 do CDC ao determinar que contratos não obrigarão consumidores, caso não lhes seja dada oportunidade de conhecimento prévio de seu conteúdo, ou sendo redigidos de modo a dificultar a real compreensão de seu sentido e alcance. Quantos são os contratos bancários em que o consumidor se limita a firmar cláusula em documento apartado, reconhecendo que tem "pleno conhecimento" do teor das cláusulas gerais que se encontram arquivadas em determinado cCartório de uma grande metrópole, na qual jamais esteve ou estará?

Não foi sem motivo que o artigo 6º do CDC estabeleceu os direitos básicos dos consumidores, criando, em contrapartida, deveres reversos aos fornecedores, os quais, nos dizeres de Bruno Miragem [1], seriam como espécies de direitos indisponíveis pelos consumidores, uma vez que integram a ordem pública de proteção do consumidor. Sem que haja uma prevalência entre os direitos básicos dos consumidores, tenho que o dever/direito de/a informação assume papel totalmente relevante, por nortear o direito de proteção a vida, saúde e segurança (artigos 8º a 10); a responsabilidade civil pelos vícios ou pelos fatos dos produtos ou serviços (artigos 18 e 20; 12 e 14); a formulação dos contratos e eficácia vinculativa da informação (artigos 30, 31, 33, 34 e 35); os princípios da publicidade (artigo 36); cuja ausência pode tornar nulas cláusulas contratuais (artigo 51), havendo deveres específicos para determinados contratos, nos moldes dos artigos 52 e 54.

Assim a informação correta, clara, precisa e ostensiva, nas palavras da grande mestra Cláudia Lima Marques [2] representa uma nova transparência que rege o momento pré-contratual, a conclusão do contrato, o próprio contrato e o momento pós-contratual, sendo mais que simples elemento formal por afetar a própria essência do negócio, por demonstrar a possibilidade ou não de uma decisão refletida do consumidor e seu pleno conhecimento sobre a eficácia e alcance do negócio jurídico realizado, inclusive tendo-se em conta sua condição particular de vulnerabilidade exacerbada, se for o caso.

Embora muito atual, apesar de seus 30 anos de idade, o CDC necessita de atualização em alguns pontos, de modo a aproximar-se aos fatos sociais posteriores à sua edição, e, após longos anos de luta, restou, por fim, editada a Lei 14.181/21, que alterou o CDC e o Estatuto do Idoso, no sentido de conferir prevenção e tratamento ao superendividamento, naquela que é chamada de Lei Cláudia Lima Marques.

Além de trazer nova esperança de resgate da dignidade para mais de 30 milhões de brasileiros em situação impossibilidade de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas sem comprometer o mínimo existencial, mencionada lei trouxe alento na perspectiva de aplicação efetiva da legislação de proteção e defesa dos consumidores, mesmo que não em estado de superendividamento.

Não se tem dúvidas que o crédito é uma das forças motrizes do desenvolvimento, da economia nacional e da manutenção do próprio mercado de consumo, em sua forma conhecida, e a democratização de acesso ao mesmo, que pode ter como efeito deletério o próprio superendividamento, por outro lado aproxima os consumidores do acesso a produtos e serviços, em consonância com a prática tupiniquim de não poupar para ter acesso aos sonhos, mas antecipar a sua realização com a prematura aquisição financiada de bens e serviços.

Para atingir seus objetivos positivos, com a percepção de lucros pelos fornecedores, e acesso a produtos e serviços pelo consumidor, necessário seja o crédito concedido de forma responsável. Se por um lado se deve exigir do consumidor parcimônia ao ir às compras, muitas vezes minada pelo assédio da publicidade ou das vicissitudes da vida, muito mais se deve requestar do fornecedor cuidados para a concessão do crédito, somente a quem tem efetiva condição de pagamento, não se podendo olvidar que os meios para tal verificação são de todo acessíveis, como preconiza inclusive o artigo 54-D, II do CDC.

De uma lógica, o sistema de crédito não foge: a proporcionalidade entre o risco da operação e a taxa de juros cobrada do tomador. Quanto maior o risco, maiores as taxas. E foi assim, com a ideia de democratizar o acesso ao crédito, que se permitiu o chamado "credito consignado" (Leis 8.123/91, 8.112/90 e 10.820/2003), através do qual ocorrem deduções diretas na folha de pagamento ou benefício da pessoa física, cujos riscos são irrisórios, e, portanto, sujeitos a menor taxação de juros, com modicidade das parcelas, tendo em vista o largo espaço de tempo para pagamento, tudo decorrendo de acerto prévio quanto a taxa de juros, valor de cada parcela e prazo para pagamento total.

O limite de comprometimento para tal modalidade de financiamento, que era de 30% da renda, acabou elevado para 35%, reservando-se 5% exclusivamente para saque no cartão de crédito consignado (atual e temporariamente, os limites são de 40%, mantidos os 5% para cartão consignado, nos moldes da Lei 14.131/2021, em virtude da pandemia).

Face ao arrocho econômico e a necessidade de crédito, a quantidade de operações de cartão de crédito consignado explodiu, gerando sem número de processos questionando a legalidade da contratação, a necessidade de devolução em dobro do que resultar em valores excessivos de desconto e indenização por danos morais.

A jurisprudência é vacilante quanto a matéria, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás editado A Súmula de nº 63, em 2018, cujo teor foi reafirmado pelo órgão especial em agosto de 2020, reconhecendo a abusividade da modalidade da contratação. Em apreciação do REsp 1.8333.475, o Superior Tribunal de Justiça, por sua 3ª turma, registrou empate na solução de contenda que objetivava conversão de contratação de cartão de crédito consignado para crédito consignado simples, em data de 14/4/2021, aguardando-se novo julgamento com a presença do ministro Moura Ribeiro [3].

Muito embora as taxas de juros do cartão de crédito consignado se mostrem inferiores às taxas do cartão de crédito tradicional, que chegaram até a 875% ao ano, em março de 2021 [4], o grande problema reside na ausência de informação e na forma de contratar, que acaba por contribuir para a ruína financeira do tomador.

Isto porque, enquanto no crédito consignado simples, o consumidor é informado do total de parcelas que deve adimplir, da taxa de juros que deve pagar, e da quantidade de meses para liquidação da operação, no cartão de crédito consignado, muitas vezes não existe informação sobre a modalidade de contratação, não sendo estipulados juros, que são variáveis, e muito menos prazo para pagamento.

Principalmente para os consumidores que já tem esgotada a margem de 30% passível de consignação, se "abre" nova linha de crédito, com a chamada reserva de margem consignável, equivalente a mais de 5%, e se oferece nova operação consignada. Só que desta vez é entregue ao consumidor um cartão de crédito (em muitos casos isso nem ocorre) e se dá o depósito do valor solicitado em sua conta via transferência eletrônica de dinheiro (TED). Daí em diante limita-se a instituição financeira ao débito mensal da parcela mínima de pagamento, promovendo a refinanciamento do saldo remanescente, ao qual são acrescidos juros mensais, tornando a dívida impagável, a menos que o tomador liquide de uma só vez todo o saldo devedor, sendo diversos casos de pagamento de parcelas por anos a fio, sem que se obtenha diminuição do débito principal.

Temos nos deparado com sem número de casos em que o consumidor se limitou a buscar crédito consignado, ou mesmo assim lhe foi ofertado, e recebe como gato, pela lebre que buscava, o famigerado cartão de crédito com suas regras infinitamente mais desfavoráveis. A falta de atenção ao direito/dever de informação é tamanha, que já julgamos (Apelação Cível n° 5270828.10, de 1/6/21) caso em que o agente financeiro buscou provar a contratação informada com a juntada de uma selfie do consumidor, posto que a contratação teria sido eletrônica, sem a utilização de qualquer meio idôneo que demonstrasse a efetiva participação de uma das partes contratuais, em flagrante desrespeito ao mínimo do básico das relações contratuais.

Certamente que existem casos em que o consumidor tem pleno conhecimento da forma de contratação e de se tratar de um cartão de crédito, tanto que o utiliza para efetuar compras e pagamento de despesas. Em tais situações, me parece autorizada a presunção de efetivo conhecimento da modalidade de contratação, nada havendo a reclamar quanto à rescisão do contrato, devolução de importâncias pagas ou indenização por danos morais.

Muito embora o princípio da informação já seja norte para a relação contratual consumerista desde 1991, agora se espera que condutas nefastas como as acima mencionadas sejam impedidas, tamanha a explicitude das novas normas decorrentes da legislação de prevenção e tratamento do superendividamento.

Primeiro com a determinação do crédito responsável e a avaliação das condições do consumidor mediante análise de dados disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, nos moldes dos artigos 6, XI, e 54-D, II CDC, e ainda a proibição do assédio e pressão do consumidor idoso, analfabeto, doente ou, de qualquer forma em vulnerabilidade exacerbada, para a contratação de produto ou serviço de crédito (artigo 54-C IV CDC), como as chamadas operações mata-mata, em que se contrai novo crédito para liquidação de um anterior, normalmente em condições mais gravosas, como o alargamento do prazo e também da taxa de juros.

O artigo 54-B robustece a necessidade das informações que já constavam no artigo 52 desde a edição do código, reafirmando, agora de forma explícita, para a validade do contrato, a obrigação de informação sobre os custos da operação com taxa efetiva, juros de mora e encargos; o número total de parcelas, evitando contratos perpétuos; e o direito do consumidor a liquidação antecipada.

De não menos valia as disposições constantes no §1º do artigo 54- B, que determinam que as informações sejam apresentadas de forma clara e resumida no contrato, fatura ou instrumento apartado e de fácil acesso ao consumidor, e, especialmente o que dispõe o inciso III do artigo 54-D, que impõe a obrigação ao fornecedor, de entregar ao consumidor, garante ou outros coobrigados cópia do contrato de crédito.

Muito embora pudessem alguns pensar que as novas regras de prevenção ao superendividamento. representasse o fim das contratações de crédito eletrônicas, assim não consigo ver, mesmo porque inexiste previsão legal direta, e ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei, como determinação a Constituição da República (artigo 5º, II). Mas, sem qualquer dúvida, os agentes financeiros deverão se adaptar às novas regras, que explicitam as que já existiam, comprovando de forma eficaz que exerceram sua obrigação de informação correta, clara, precisa e ostensiva, fornecendo cópia do instrumento contratual ao consumidor, não sendo mais possível a concessão de empréstimo ou crédito com um mero clicar de tecla em caixa eletrônico.

Caso não cumpra suas obrigações legais, estará o fornecedor sujeito à redução de juros, encargos e qualquer acréscimo ao principal; dilação do prazo de pagamento previsto no contrato, e, de conformidade com a gravidade da conduta, indenizações por perdas e danos morais e materiais, nos moldes do parágrafo único do artigo 54-D.

Concluindo, verifico que, face à nova legislação, confirmada está a posição da corrente jurisprudencial, que se posiciona no sentido de que caso não tenha o consumidor utilizado o cartão de crédito consignado para fazer compras e pagamentos de débitos outros que não o saque do valor inicialmente disponibilizado, e não se descurando o agente financeiro de seu dever de demonstrar haver prestado todas as informações necessárias a uma decisão refletida do consumidor, especialmente quanto aos juros cobrados e forma de pagamento, se devem converter tais operações em crédito consignado simples e consequente redução dos juros, além de restituição em dobro do eventualmente pago em excesso (artigo 52, parágrafo único) e a fixação de danos morais, decorrente da falta de informação e sujeição a contrato interminável.

 

Referências bibliográficas
[1] MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pág. 117.

[2] MARQUES, Cláudia Lima et al, Manual de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pág. 77

[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/343713/stj-julga-taxa-de-juros-em-emprestimo-de-cartao-de-credito-consignado. Acesso em 10 de ago de 2021.

[4] Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/juros- anuais-do-cartao-de-credito-chegam-ate-875. Acesso em 10 de ago de 2021.

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  • é especialista em Direito Ambiental pela Unigoiás, e em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra-Portugal, mestrando em Direito pela Universidade de Girona, Espanha, professor de Direito do Consumidor em cursos de pós-graduação em diversas universidades e escolas de magistratura, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, coordenador do Sistema dos Juizados Especiais do mesmo estado e diretor do Brasilcon.

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