Opinião

Apontamentos sobre a revisão judicial das decisões do Carf

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13 de agosto de 2021, 9h21

A introdução do artigo 19-E à Lei 10.522/2002 tem causado grande reflexão e calorosos debates na doutrina e pela comunidade jurídica, na medida em que seria objeto de inserção de emenda que não guardava pertinência temática com a Medida Provisória 899/2019 convertida na Lei nº 13.988/2020. Isso porque esse dispositivo legal passou a dispor que, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

Em decorrência desses debates, inúmeros artigos já foram publicados, com opiniões diferentes e antagônicas sobre o tema e várias lives foram apresentadas por profissionais de diferentes áreas e respeitados especialistas. Além disso, foram ajuizadas as ADIs 6439, 6403 e 6415, nas quais o procurador-geral da República, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), respectivamente, apontam violação ao princípio democrático e ao devido processo legislativo.

Ocorre que esse tema ganhou novamente espaço de destaque no cenário jurídico ao levantar e dar força a mais uma grande polêmica. Isso porque o ministro Roberto Barroso, ao proferir voto-vista de divergência ao voto do relator ministro Marco Aurélio, inovou ao propor a fixação da tese de julgamento de que "é constitucional a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), significando o empate decisão favorável ao contribuinte. Nessa hipótese, todavia, poderá a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário".

Essa proposta de tese de julgamento ressuscitou uma velha reinvindicação da Fazenda Pública consistente na possibilidade de ser realizada a revisão judicial de decisão administrativa favorável ao contribuinte. De fato, antes mesmo da apresentação da proposta da tese de julgamento, já havia algumas manifestações no sentido de que fosse viabilizado o acesso ao Judiciário da Fazenda Pública para invalidade da decisão administrativa favorável ao contribuinte.

Sem querer ingressar no mérito se o artigo 19-E da Lei 10.522/2002 seria constitucional ou não, observa-se que parece ser um equívoco possibilitar a revisão das decisões administrativas desfavoráveis ao Fisco pelo Judiciário. Acontece que o fato de que a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) não significa, por si só, que seja uma decisão contrária ao interesse público. Muito pelo contrário, ao impugnar e apontar eventuais equívocos praticados pelo Fisco ao realizar um ato administrativo o contribuinte está auxiliando a Administração Publica em suas atividades.

Essa premissa está embasada no fato de que eventuais decisões administrativas eivadas de vícios que as tornem ilegais devem ser anuladas pela própria Administração Pública, conforme dispõe o artigo 53 da Lei 9.784/99 e nas Súmulas 346 e 473 do STF. Essa prerrogativa da Administração Pública está consagrada no fato de que ela detém o poder de autocontrole administrativo revendo seus próprios atos, quando eivados de vícios de nulidade ou de ilegalidade, independentemente da provocação do Poder Judiciário.

De fato, pensar que a Administração Pública possa se valer de um outro órgão para desfazer uma decisão que lhe é desfavorável e que foi proferida por ela mesma com todas as garantias constitucionais parece ser um contrassenso. Ademais, tornaria o processo administrativo inútil e limitado a ser uma despesa ao erário, já que somente seriam mantidas decisões favoráveis ao Fisco, sendo que as demais seriam possivelmente encaminhadas ao Poder Judiciário para sua revisão.

Logo, o requerimento de revisão dos atos administrativos proferidos pela Fazenda Pública, através da impugnação do contribuinte, não representa apenas um ato visando a resguardar interesses individuais do contribuinte, mas também atendimento ao interesses públicos e coletivos, uma vez que atos administrativos devem ser anulados pela própria Administração no exercício da faculdade de autotutela da ilegalidade, conforme dispõe o artigo 53 da Lei nº 9.784/99.

Como pode ser observado, a grande questão não é que estaria sendo vetado o acesso ao Judiciário pela Administração Pública, e até poderia ser discutida a constitucionalidade dessa vedação, mas tão somente debater se ela poderia provocar a jurisdição para desfazer a decisão proferida por ela mesma. Isso porque a possibilidade de o Judiciário reformar decisão que a Administração Pública proferiu por estar eivada de vícios de ilegalidade ou inconstitucionalidade estaria apresentando violação à própria Constituição, na medida em que são assegurados como garantias fundamentais individuais aos litigantes em processos judiciais e administrativos o contraditório e a ampla defesa, decorrentes do devido processo legal. Logo, se a própria Administração Pública tem o dever de assegurar a proteção de tais direitos e garantias fundamentais ao contribuinte, como poderia ela mesma ter sido vítima de tais violações?

Essa indagação, por mais simples que pareça, mostra uma grande impossibilidade de que a Administração Pública possa revisar o procedimento conduzido por ela mesma no âmbito administrativo, ao qual possui o dever de respeitar a Constituição, pois seria uma grande contradição. Ademais, a inafastabilidade da jurisdição é direito fundamental do contribuinte para protegê-lo contra o poder político do Estado e não o contrário, o que seria um contrassenso.

Portanto, a pretensão de que o Poder Judiciário realize a revisão de decisões desfavoráveis à Administração Pública acaba ferindo a vontade dela mesma e contradiz o mandamento do artigo 53 da Lei 9.784/99 e das Súmulas 346 e 473 do STF, que determinam que a própria Administração Pública possui o dever de anular decisões eivadas de vícios de ilegalidades. Assim, esse debate precisa ser muito bem aprofundado e analisado do ponto vista legal e dos princípios da Administração Pública.

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