Opinião

A civil law e o sistema de precedentes

Autor

  • Marco Alexandre Gonçalves dos Santos

    é advogado do escritório Brigagão Duque Estrada Advogados mestrando do programa de pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense e integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Política dos EUA.

13 de agosto de 2021, 10h38

No início deste mês de agosto, a comunidade jurídica brasileira foi presenteada com a estreia daquele que promete ser um dos maiores periódicos científicos brasileiros na área do Direito. O Supremo Tribunal Federal publicou a edição nº 1 da Suprema — Revista de Estudos Constitucionais, a primeira revista científica da corte em mais de um século de história.

Entre os 12 estudos cuja qualidade gera, certamente, enorme expectativa quanto ao potencial vanguardista da Suprema, o primeiro deles, assinado pelo notório constitucionalista Virgílio Afonso da Silva, é certamente um trabalho seminal.

Embora merecedor de resenhas propriamente ditas, hábeis a desenvolver com profundidade os debates deflagrados pela investigação do professor Virgílio, titular da Universidade de São Paulo, o presente texto pretende menos, limita-se a comentar trecho muito particular do artigo intitulado "Pauta, público, princípios e precedentes: condicionantes e consequências da prática deliberativa do STF".

O estudo inova em seu método, e nos traz uma valiosa perspectiva interna do Supremo Tribunal Federal. Num período marcado pela exacerbação da publicidade de opiniões dos membros da corte sobre as mais variadas questões, pouco se sabe sobre o que pensam nossos ministros e ex-ministros acerca de questões centrais para o tribunal, seu funcionamento e a estrutura sobre a qual se ergue nossa jurisdição constitucional.

Uma dessas questões fundamentais abordadas pelo artigo é o sistema de precedentes brasileiro, fortemente acentuado pelo atual Código de Processo Civil (CPC), movimento que não raro é associado à influência americana.

A recepção pelos atores institucionais desse sistema de precedentes recém-implementado é, contudo, frequentemente objeto de crítica. Uma dessas críticas recorrentes diz respeito ao uso intenso das ementas dos julgados, em contraposição a uma análise mais particularizada e refletida da íntegra do acórdão, e das circunstâncias do caso concreto.

A importação acrítica de desenhos institucionais norte-americanos, por outro lado, vem gerando distorções em nosso ordenamento jurídico desde o início da República, como podemos notar, por exemplo, nas críticas elaboradas por Alberto Torres no início do século 20 [1]:

"A nossa lei fundamental não é uma 'constituição'; é um estatuto doutrinário, composto de transplantações jurídicas alheias.
Seu grande modelo foi a Constituição dos Estados Unidos.
(…)
Como obra esthetica e de ideal politico é talvez o mais notável documento da cultura jurídica contemporânea
(…)

Desde que se sae, entretanto, do terreno puramente abstracto e da contemplação da forma, começam a surgir as lacunas, as imperfeições e incoherencias do systema. Não tendo por fim regular factos da vida publica do povo e do paiz, atender às suas necessidades positivas, faltou ao legislador o critério pratico, próprio de um trabalho legislativo assentado sobre o terreno da observação e da experiencia, único que póde dar às leis uma feição inteligível, porque reflecte as fórmas da vida real".

É justamente tendo em consideração a virtude da observação prática que se pode dimensionar a importância do estudo elaborado pelo professor Virgílio Afonso. Ao colher diretamente dos protagonistas da jurisdição constitucional as opiniões que possuem sobre a corte cuja direção lhes foi atribuída, passa a ser possível refletir com maior clareza sobre a práxis do sistema.

Após inquirir os ministros a respeito da normatização dos precedentes no Brasil, Virgílio Afonso obteve de um deles resposta que consiste em verdadeira sugestão para reformar a prática deliberativa do tribunal [2]:

"Uma primeira mudança, explicitamente sugerida pelo ministro E, diz respeito àquilo que hoje o tribunal chama de teses. Reproduzo aqui o trecho mais pertinente:
'Eu sou a favor (…) de que, ao final da votação, o relator para o acórdão produza uma ementa na qual fique explicitado qual foi a tese jurídica do acórdão, (…) e esta ementa deve ser aprovada pela maioria que se formou' (ministro E)
No momento das entrevistas, algo semelhante a essa proposta existia apenas na edição de súmulas vinculantes e na análise da repercussão geral em recursos extraordinários. A proposta do ministro E era transformar essa prática limitada em processo decisório padrão do tribunal. Embora não haja qualquer base constitucional ou legal para tanto (cf. SILVA, 2021, p. 581), a definição de teses tem se tornado cada vez mais frequente nas decisões dos mais variados tipos de ações e recursos".

Tanto a forma quanto o sistema de precedentes foram recepcionados pelo Direito brasileiro (jurisprudência ementada), como a sugestão elaborada pelo ministro entrevistado é decorrência natural de nossa tradição jurídica romano-germânica.

A questão é tão antiga quanto a máxima justiniana "cum non exemplis, sed legibus iudicandum est", algo como "deve-se jugar por leis e não por exemplos".

Enquanto a cultura anglo-saxã se desenvolveu tendo como ênfase o caso concreto e os costumes, o que inclusive é refletido nas faculdades de Direito dos Estados Unidos, cuja prática pedagógica envolve predominantemente o estudo de casos, os juristas formados na civil law voltaram seus olhos historicamente para as normas jurídicas abstratamente consideradas e sua interpretação textual, razão pela qual nossos alunos se debruçam principalmente sobre a redação dos códigos.

Não surpreende que os juristas da common law tenham desenvolvido o chamado case-law method para lidar com o fenômeno dos precedentes, e que na civil law exista uma abordagem do precedente que o encara de forma textual, abstraindo-o do caso concreto, quase como uma peça legislativa.

Foi justamente sobre essa diferença jurídico-cultural que Jan Komárek, pesquisador europeu ligado à Universidade de Copenhage e membro do corpo editorial do renomado periódico científico European Constitutional Law Review, desenvolveu fascinante estudo de Direito Comparado [3].

O argumento central de Komárek é que o sistema de precedentes não é uma particularidade anglo-saxã, pois a Europa continental possui sua própria forma de lidar com decisões prévias ao julgar casos subsequentes, não havendo de se falar numa hierarquia entre os dois modelos.

Essa forma própria envolve, disserta Komárek, o tão criticado uso intensivo de ementas. No mencionado estudo o pesquisador europeu critica nominalmente o professor da Universidade de Chicago Brian Leiter por caracterizar o uso de ementas como prática "medíocre" na advocacia.

As ementas, prossegue o autor, são uma consequência natural da textualização e abstração da jurisprudência, em contraste com o enfoque no deslinde do caso concreto e suas particularidades, próprios da tradição anglófona.

Não se nega no estudo o enorme protagonismo e influência da centenária e bem desenvolvida teoria dos precedentes no âmbito da common law. Não obstante, Komárek nota a tendência natural nos países da civil law em convergir para uma versão muito própria e característica que, apesar de frequentemente tentar emular a estrutura anglo-saxã, com o uso de conceitos como holding e obter dictum, melhor estão ao assumir sua própria vocação e adotar uma postura pragmática.

Nesse sentido, inclusive, Komárek registra a aproximação de ambos os sistemas, já que há nos Estados Unidos um movimento de análise quase-legislativa dos acórdãos, com a textualização da jurisprudência [4], e, por outro lado, um maior desenvolvimento das técnicas case-law na Europa continental, sendo comum a coexistência dessas práticas.

Ainda assim, é possível que a enunciação da tese jurídica geral, abstrata e, por isso mesmo, aplicável nos casos subsequentes, por parte do próprio STF ao concluir a deliberação de cada caso concreto, seja a melhor técnica para desenvolver um sistema coerente com nossas próprias tradições, sem com isso desprezar os elementos da common law que podem enriquecer nossa cultura jurídica.


[1] TORRES, Alberto. A Organização Nacional. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1938.

[2] A identidade dos ministros foi mantida em anonimato ao longo do estudo.

[3] KOMÁREK, Jan. Reasoning with previous decisions: beyond the doctrine of precedent. The American Journal of Comparative Law, v. 61, n. 1, p. 149-172, 2013.

[4] É curioso notar que os estados de Ohio e West Virginia atribuem às ementas – via Direito positivo – protagonismo notável.

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  • é advogado do escritório Brigagão, Duque Estrada Advogados, mestrando do programa de pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense e integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Política dos EUA.

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