Opinião

Algumas reflexões sobre doutrina e pesquisa empírica

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12 de agosto de 2021, 15h05

Pesquisadores de outras áreas muitas vezes se espantam com parte da literatura jurídica, que pode parecer um amontoado de lugares comuns escritos em tom pomposo, às vezes com referências rasas a outras disciplinas como História, Economia, Filosofia ou Sociologia.

Também causa estranheza a maneira como juristas chamam essa literatura de "doutrina", que é uma palavra utilizada para se referir tanto a um conjunto de obras, como a um conjunto de autores. Ao citar a doutrina, juristas comumente afirmam que ela é majoritária, unânime, ou está dividida, quase como se fosse o órgão colegiado de um tribunal.

Os leitores originários das ciências, "duras" ou sociais, podem ficar chocados com uma aparente falta de método, e é tentador prescrever para essa parte da literatura jurídica os métodos de pesquisa quantitativos e qualitativos usados em outras áreas. Afinal, esses métodos estão há muito sendo usados e aprimorados, com sucesso, para termos um entendimento mais preciso sobre o que acontece no mundo [1].

Há, contudo, uma especificidade da doutrina jurídica que dificulta a aplicação desses métodos. Ao contrário da pesquisa empírica em Direito, que é importante para aprender sobre como o Direito funciona na prática, e, portanto, parte de pressuposto semelhante ao das demais ciências sociais, obras de doutrina, em geral, são jurídico-dogmáticas.

A dogmática jurídica, enquanto espaço de reflexão do Direito sobre si mesmo [2], não tem o objetivo de entender melhor como o Direito funciona no mundo, mas visa a descrever, sistematizar e propor a melhor interpretação da norma de um ponto de vista interno ao Direito. Visa, a partir da norma, a orientar a ação e a decisão.

E vale destacar, conforme bem aponta José Reinaldo de Lima Lopes, que embora o Direito não seja "uma ciência positiva e empírica como outras", isso não significa que "o Direito como campo do saber ou o sistema jurídico como instituição não (possam) ser racionalmente abordados" [3].

É importante salientar que o discurso do professor de Direito é semelhante ao do profissional, criando uma espécie de interdependência que não existe em outras áreas [4]. Políticos profissionais, por exemplo, podem até ser influenciados por estudos feitos por cientistas políticos, mas não pautam suas ações por esses estudos da maneira como profissionais do Direito recorrem à doutrina jurídica para buscar fundamentos para sua atuação.

Isso, no entanto, não significa uma coincidência absoluta ou bis in idem entre os discursos dos doutrinadores e dos profissionais do Direito, o que levaria a uma perda de importância da atividade dos primeiros. Professores estão em uma posição privilegiada, pois não estão (ou não deveriam estar) sujeitos às constrições da defesa dos interesses da parte (caso dos advogados, privados ou públicos) ou da justificação de decisões (caso dos juízes) [5]. Isso significa que são mais livres das amarras institucionais para refletir sobre a melhor interpretação da norma jurídica.

Comumente, são reconhecidas deficiências na maneira como parte da doutrina de fato é feita. Entre essas deficiências, podemos destacar:

1) Um distanciamento da prática, resultante da produção de trabalhos que se limitem a reproduzir o que diz a lei, não atendendo às necessidades dos profissionais da área;

2) Uma falsa pretensão à neutralidade, consistente na apresentação de sistematizações e interpretações da lei supostamente "técnicas", mas que mascaram as possíveis consequências (jurídicas ou sociais) de sua defesa;

3) Uma empiria vulgar, ligada a uma interdisciplinaridade vulgar, que consiste em fazer afirmações sobre a realidade, muitas delas objeto de estudo de outras ciências, sem embasamento adequado.

Do reconhecimento dessas deficiências, no entanto, não deve resultar o descarte da doutrina jurídica como um espaço para pensar o Direito "de dentro". É preciso discutir a sério metodologia para essa parcela da literatura jurídica. E, para tanto, é preciso reconhecer suas especificidades.

Uma possível forma de encarar o desafio é reconhecer que, no ecletismo que frequentemente caracteriza a doutrina jurídica, encontram-se: 1) argumentos sobre fatos; 2) descrição/sistematização do direito; e 3) argumentos normativos. E esse ecletismo vai se refletir em uma diversidade de métodos.

Parece-me que adotar a separação entre esses três aspectos como uma chave de leitura seja uma boa forma de começar a avaliar metodologicamente a doutrina.

O 1 é o espaço em que muitas vezes os autores jurídicos fazem afirmações sobre a realidade sem embasamento, ou avançam sobre outras áreas do conhecimento sem o rigor necessário. Trata-se, aí, do campo em que se situa o aprendizado sobre o mundo, da pesquisa empírica e dos métodos de pesquisa quantitativa e qualitativa análogos aos utilizados nas outras ciências sociais.

Em relação ao 2 e ao 3, no entanto, esses métodos são de pouca utilidade, pois o objetivo é outro. Não se trata de avançar no entendimento sobre a realidade, mas de descrever, sistematizar e fornecer a melhor interpretação da norma.

A separação didática entre 2 e 3, entre o positivo e o normativo, é, em si, problemática, pois a descrição e a sistematização da norma embutem já a prescrição. Mas, sem dúvida, não avançaremos em metodologia para 2 e 3 recorrendo aos métodos para 1.

Talvez um bom ponto de partida seja aproveitar as semelhanças com o discurso dos profissionais do Direito, e, levando em conta as diferenças, encarar o desafio de avaliar metodologicamente a doutrina a partir da teoria da argumentação jurídica. Para os argumentos propriamente normativos, por sua vez, há uma rica experiência da Filosofia normativa que não pode ser desconsiderada em termos de método [6].

 


[1] Philippe Jestaz, « Doctrine » vs sociologie. Le refus des juristes", Droit et société 92, no 1 (2016).

[2] Marcelo Neves, "Pesquisa interdisciplinar no Brasil: o paradoxo da interdisciplinaridade", Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica 1, no 3 (2005).

[3] José Reinaldo de Lima Lopes, Curso de filosofia do direito: o direito como prática (São Paulo: Atlas, 2021), 33–34.

[4] Manuel Atienza, Las razones del derecho: Teorias de la argumentación jurídica (México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005).

[5] Meir Dan-Cohen, "Listeners and Eavesdroppers: Substantive Legal Theory and Its Audience", University of Colorado Law Review 63 (1992): 569.

[6] Joseph William Singer, "Normative Methods for Lawyers", UCLA Law Review 56, no 4 (2009 de 2008): 899–982.

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