Opinião

Levando a cláusula de tratamento nacional a sério

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5 de agosto de 2021, 17h04

O comércio internacional é regulamentado pelos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). O principal deles é o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), que visa, entre outros, a evitar a discriminação entre produtos importados e nacionais, conforme disposto na cláusula de tratamento nacional prevista no artigo 3.

O Brasil é membro da OMC e signatário do Gatt, o qual foi internalizado no ordenamento jurídico nacional pela Lei nº 313/1948, e alterações posteriores, e pelo Decreto nº 1.355/1994.

Na condição de membro da organização, o Brasil deve garantir que suas leis, seus regulamentos e suas políticas que afetem o comércio internacional estejam em conformidade com a cláusula de tratamento nacional e as demais regras da OMC. Já no âmbito interno, por força do artigo 5, §2º, da CF/88, e do artigo 98, do CTN, impõe-se a observância dos tratados internacionais pela legislação tributária nacional, de modo que as disposições do Gatt devem ser respeitadas. Consequentemente, as cláusulas do Gatt (e dos demais acordos da OMC) são passíveis de apreciação pelos tribunais brasileiros, devendo pautar a análise acerca da legalidade e constitucionalidade das normas tributárias nacionais.

Os tribunais brasileiros já reconheceram a prevalência do Gatt sobre normas tributárias conflitantes com os princípios estabelecidos no acordo. Nesse sentido, pode-se citar a Súmula nº 20/STJ e a Súmula nº 575/STF, que determinaram a extensão da isenção do ICM concedida ao produto nacional ao produto similar importado, em razão da cláusula de tratamento nacional do Gatt.

Entretanto, a jurisprudência sobre esse tema ainda é bastante tímida. De fato, muitas vezes, a aplicação da cláusula de tratamento nacional é abordada sem profundidade ou mesmo deixada de lado na análise de relevantes questões tributárias. Um caso recente foi o julgamento de repercussão geral do adicional da Cofins-Importação pelo STF (Tema 1047) que sequer abordou a discussão no sentido de que ele — aplicado exclusivamente ao produto importado — violaria a cláusula de tratamento nacional do Gatt.

Há, ainda, decisões de tribunais superiores conflitantes com aquelas proferidas pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, responsável por analisar as disputas entre os membros da organização relativas a violações de seus acordos, criando uma incompatibilidade entre os efeitos do Gatt no ordenamento jurídico interno e a aplicação do acordo no âmbito internacional.

A fim de melhor compatibilizar as esferas nacional e internacional, é necessário que os tribunais brasileiros analisem a aplicação do Gatt considerando as nuances da redação do artigo 3 e as inúmeras decisões proferidas no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, que abordam em detalhes diversos aspectos da aplicação do artigo 3 do Gatt ainda não discutidos nos tribunais nacionais.

Como primeiro passo, é preciso melhor entender como o princípio do tratamento nacional se insere na lógica de regulamentação do comércio internacional estabelecidos pelo Gatt e OMC.

O Gatt possui três grandes pilares: a cláusula da nação mais favorecida (artigo 1), as listas de concessões (artigo 2) e a cláusula de tratamento nacional (artigo 3), que visam a promover, paulatinamente, a liberalização do comércio internacional e, ao mesmo tempo, evitar práticas comerciais discriminatórias, que causam desvios de comércio.

A cláusula da nação mais favorecida determina, em linhas gerais, que um país deve conceder a suas importações originárias de um membro da OMC tratamento não menos favorável que aquele concedido a outro membro. Ou seja, ele impede que seja concedido um tratamento discriminatório entre importações de diferentes origens.

O artigo 2, por sua vez, estabelece que os membros da OMC não poderão aplicar tarifas (o que, no Brasil, equivale ao imposto de importação) em montantes superiores àqueles previstos na lista de compromissos desse país. O Brasil, assim como os demais membros da OMC, negociou uma lista contendo as tarifas máximas que podem ser aplicadas para cada linha tarifária (cada produto), não podendo estabelecer alíquotas de imposto de importação que superem esses limites. Busca-se, assim, garantir um determinado nível de acesso ao mercado nacional. Além dessas tarifas, é permitida apenas a cobrança de taxas e outros encargos aduaneiros, que devem estar diretamente relacionados aos serviços prestados.

Por fim, a cláusula do tratamento nacional (artigo 3) trata da discriminação entre o produto importado e o nacional.

O artigo 3.1 estabelece que:

"Impostos e outros tributos internos, assim como leis, regulamentos e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização de produtos no mercado interno e as regulamentações sobre medidas quantitativas internas que exijam a mistura, a transformação ou utilização de produtos, em quantidade e proporções especificadas, não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais, de modo a proteger a produção nacional".

A nota ao artigo 3 do Gatt (prevista no anexo I do acordo e, portanto, parte integrante desse) esclarece, ainda, que qualquer imposto ou outros tributos internos que se apliquem não só ao produto importado como também ao nacional e que sejam exigidos do produto importado no momento ou local da importação serão considerados como taxa interna ou tributo interno.

Trata-se de redação bastante abrangente, que busca evitar práticas protecionistas em geral [1].

A cláusula possui, ainda, relação direta com o artigo 2 do acordo. Isso porque, se não houvesse a cláusula de tratamento nacional, os membros da OMC poderiam facilmente anular listas de concessões por meio da aplicação de supostos tributos internos de modo a onerar mais o produto importado do que o nacional — atuando como uma barreira ao mercado nacional do mesmo modo que a tarifa antes de sua redução em decorrência das negociações internacionais.

O artigo 3.2 trata especificamente da tributação. O dispositivo estabelece que os produtos originários de um membro da OMC, importados por outro membro, não podem estar sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais similares. O dispositivo estabelece, ainda, que os membros não poderão aplicar impostos ou outros encargos internos a produtos nacionais ou importados contrariamente aos princípios estabelecidos no artigo 3.1.

Reitera-se aqui o caráter abrangente do princípio do tratamento nacional. O dispositivo não abrange somente a comparação entre alíquota de determinado tributo aplicável ao produto importado e nacional, mas também outros componentes que possam afetar indiretamente a tributação.

Nesse sentido, a jurisprudência da OMC já estabeleceu a necessidade de comparar a carga tributária efetiva suportada pelo produto importado e nacional, e não apenas as cargas tributárias nominais. Isso porque, mesmo se produtos nacionais e importados estiverem sujeitos a uma mesma carga nominal, ainda é possível que haja uma carga efetiva desfavorável ao importado em razão, por exemplo, da apuração da base de cálculo, taxação indireta (dos insumos e etapas do processo produtivo), entre outros [2].

A jurisprudência da OMC já esclareceu, ainda, que o tratamento do produto importado não poderá ser superior ao concedido ao nacional em cada operação individual. Como consequência, não é possível balancear tratamentos mais favoráveis concedidos ao importado em determinadas hipóteses com tratamentos menos favoráveis concedidos em outras hipóteses [3].

De outro lado, o STJ já entendeu que o princípio do tratamento nacional não se aplicaria ao PIS/Cofins-Importação (vide REsp 1.437.172/RS). Essa interpretação decorreu da leitura da cláusula de tratamento nacional do Acordo Constitutivo do Mercosul (Tratado de Assunção) [4], que, apesar de trazer o mesmo princípio, possui uma redação bastante simplificada se comparada com aquela do artigo 3 do Gatt.

Naquele caso, o STJ entendeu que a PIS/Cofins-Importação constituiriam modalidades de contribuição previdenciária, que não estariam incluídas na definição de "imposto, taxa ou gravame interno" estabelecida pelo Tratado de Assunção. Ademais, a PIS/Cofins-Importação seria tributo distinto do PIS e da Cofins internos, não se equiparando a essas, enquanto o princípio do tratamento nacional somente seria aplicável caso fosse demonstrado que tributos idênticos estivessem recebendo tratamento desigual.

Tal entendimento foi reiterado em diversas outras decisões (vide, por exemplo, o REsp 1.924.67/PR), sem que fosse feita uma análise detalhada da redação do artigo 3.2 do Gatt.

Ora, como já se viu, a redação do artigo 3.2 do Gatt é bastante abrangente, mencionando expressamente "impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie". Assim, não caberia a argumentação de que a PIS/Cofins-Importação, por se tratarem de contribuições previdenciárias, estariam excluídas da aplicação da cláusula.

Ademais, conforme apresentado, a noção de "tributo interno" se opõe às tarifas cuja aplicação é limitada pelo artigo 2 do Gatt. Desse modo, se a PIS/Cofins-Importação não fosse entendida como "tributo interno" para fins de aplicação do artigo 3 do Gatt, ela deveria, necessariamente, estar sujeita às obrigações do artigo 2 e aos limites aplicáveis conforme a lista de concessões do Brasil.

Não por outro motivo, no caso Brazil-Taxation (DS 472 e 497), apresentado por União Europeia e Japão contra o Brasil, não se rebateu o argumento de que a PIS/Cofins-Importação constituiria um tributo interno.

No caso, foram analisados, entre outros, os seguintes programas de tecnologia da informação e comunicação, que concediam benefícios relacionados a IPI, PIS/Cofins e PIS/Cofins-Importação: a Lei de Informática (Lei 8.248/1991), o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis) e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Equipamentos para TV Digital (PATVD — Lei 11.484/2007) e o Programa de Inclusão Digital (Lei 11.196/2005).

União Europeia e Japão argumentaram que a PIS/Cofins-Importação seria tributo (interno), portanto, sujeito à aplicação do artigo 3 do Gatt. Subsidiariamente, alegaram que, caso o Brasil defendesse que a PIS/Cofins-Importação não fosse tributo, mas, sim, "outras taxas e cobranças sobre as importações", nos termos do artigo 2 do Gatt, que fosse analisada a compatibilidade de tais tributos com esse dispositivo. O Brasil não apresentou qualquer contestação acerca desse ponto e os benefícios relativos a PIS/Cofins e PIS/Cofins-Importação foram analisados à luz do artigo 3 [5].

O caso Brazil-Taxation também joga luz sobre outros pontos importantes da tributação nacional que devem ser analisados à luz do artigo 3 do Gatt.

Ainda com relação à Lei de Informática, União Europeia e Japão argumentaram que, apesar de a alíquota nominal do IPI aplicada aos produtos finais importados e nacionais ser a mesma, a carga tributária final dos produtos importados era superior àquela suportada pelos produtos nacionais similares, uma vez que esses recebiam isenções ou reduções no âmbito desses programas se manufaturados por uma empresa credenciada que cumprisse com determinadas etapas do processo produtivo no Brasil (processo produtivo básico — PPB) [6].

O painel concluiu que, diferentemente dos produtos nacionais, os produtos importados não poderiam se beneficiar das reduções e isenções (incluindo alíquota zero) no âmbito dos referidos programas, estando, portanto, sujeitos a uma carga tributária superior ao produto nacional similar, de maneira incompatível com a primeira sentença do artigo 3.2.

O órgão de apelação ressaltou os impactos da tributação até o último estágio da cadeia produtiva, no qual a tributação do produto importado seria superior àquela suportada pelo produto nacional. Nesse sentido, o órgão de apelação rechaçou o argumento brasileiro de que o sistema de créditos e débitos resultaria na mesma carga tributária para os produtos nacionais ou importados [7].

Com relação aos produtos intermediários, o painel analisou a tributação de maneira holística, a fim de identificar a efetiva carga tributária dos produtos nacionais e importados. Assim, foi considerada a concessão de créditos para os adquirentes dos produtos importados. O painel entendeu que a aplicação da regra de créditos e débitos para a aquisição de produtos intermediários importados (e, portanto, não objeto de incentivos) envolve o pagamento de um tributo que não é suportado pelas empresas adquirentes de produtos intermediários nacionais de empresas credenciadas, isentos da tributação. O mesmo ocorreria no caso das reduções, no qual o valor dos tributos a serem pagos na aquisição do produto nacional seriam inferiores à tributação do produto importado — que não recebe incentivos. Isso teria por efeito limitar a disponibilidade de caixa para empresas adquirentes de produtos intermediários importados, além de resultar em uma carga tributária efetiva maior para os produtos esses.

O painel também concluiu que o valor real do crédito gerado quando o tributo é pago diminui com o tempo, em razão da depreciação da moeda, em decorrência da inflação, já que o crédito é de natureza escritural e não admite atualização no seu valor. Assim, mesmo que os créditos decorrentes do pagamento de tributos sejam compensados no futuro, os produtos importados estariam sujeitos a uma carga tributária superior, em razão da depreciação da moeda ao longo do tempo.

Verifica-se, assim, que a aplicação da cláusula de tratamento nacional não se aplica apenas a situações nas quais o produto importado está sujeito a uma alíquota de determinado tributo superior àquela exigida do produto nacional, em decorrência da aplicação do mesmo tributo. O artigo 3 do Gatt tem um escopo bem mais amplo, que exige a análise da carga tributária efetiva sofrida pelo produto importado em comparação ao nacional, observando as alíquotas vigentes, os impactos dos créditos e até mesmo o prazo de pagamento dos tributos.

Tal abrangência está fundada na própria lógica da regulação do comércio internacional, pautada pelos três primeiros artigos do Gatt, que visa tanto a garantir que os membros da OMC não anulem as concessões de acesso mercados previstas no artigo 2 do Gatt, mas também evitem qualquer prática protecionista.

Faz-se necessário, portanto, que os tribunais brasileiros reconheçam a abrangência da cláusula de tratamento nacional do Gatt e passem a analisar a compatibilidade das normas tributárias brasileiras com o acordo, considerando todas as suas nuances e complexidades, e levando em conta a interpretação proferida pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.

 


[1] Relatório do Órgão de Apelação no caso Japan — Alcoholic Beverages II, para. 16-17.

[2] Relatório do Painel no caso Argentina — Hides and Leather, para. 11.182-11.184

[3] Relatório do Painel no caso Argentina — Hides and Leather, para. 11.260

[4] "Artigo 7 – Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional".

[5] Nota 494 do Relatório do Painel do caso Brasil — Taxation

[6] Relatório do Painel do caso Brazil — Taxation, para. 7.144

[7] Relatório do Painel do caso Brazil — Taxation, para. 7.154 e Relatório do Órgão de Apelação, para. 5.28

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