Opinião

A Constituição e a interpretação no positivismo de Hans Kelsen

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3 de agosto de 2021, 7h13

O positivismo como uma teoria descritiva tem sofrido bastante nas últimas décadas devido a uma série má interpretações que envolvem a discricionariedade da qual o positivismo jamais abriu mão, até as absurdas atribuições de responsabilidades pelos massacres nazistas na Segunda Guerra Mundial.

São questões interpretativas que terminam por afastar métodos científicos na aplicação do direito, trazer insegurança para a prática judiciária com um elevado excesso de discricionariedade por parte dos julgadores e elevando o protagonismo judicial até mesmo em questões criminais.

É nesse contexto que seria salutar abordar as premissas de um dos expoentes da temática na ciência jurídica: Hans Kelsen, um dos juristas mais influentes do século 20. Entender seus ensinamentos é essencial para uma visão mais adequada sobre o positivismo jurídico.

Conforme salienta Miguel Reale, o ambiente cultural do século 19 foi o contexto vivido por Hans Kelsen para a construção de sua doutrina positivista, que somente veio a público em 1911, por meio da obra "Problemas Fundamentais da Teoria do Direito do Estado" (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre[1].

Influenciado pelo neopositivismo de Viena, que rejeitava conceitos metafísicos, como o de verdade e o de justiça, por estarem além da linguagem científica e da racionalidade, Kelsen passou a teorizar o direito como uma ciência autônoma, descrevendo seu objeto (a norma jurídica positivada) isolado de outras ciências.

Em suas abordagens, Hans Kelsen tece críticas aos rumos tomados pela ciência jurídica no decorrer dos séculos 19 e 20, ao argumento de que ela esteve longe de satisfazer a exigência de pureza, ao confundir-se com a Sociologia, a Psicologia, a ética ou a teoria política [2].

Procurando estudar o direito de uma forma neutra, Hans Kelsen elabora a obra "Teoria Pura do Direito" como uma proposta de investigação do direito positivo em geral, procurando analisar a norma jurídica positivada, tendo por princípio metodológico fundamental a libertação de tudo aquilo que não pertencer, rigorosamente, ao Direito [3].

É importante observar, como bem destaca Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que Hans Kelsen jamais teve a intenção de "negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista" [4]. Segundo Ferraz, a ideia de Kelsen era de que uma ciência que se preocupasse com tudo estaria arriscando-se a perder-se em debates estéreis [5].

Para Hans Kelsen, o direito regula sua própria criação, devendo o ordenamento jurídico ser estudado como um todo unitário e sistemático, constituído de forma escalonada, em que a norma inferior vai retirar o fundamento de validade de uma norma imediatamente superior, até chegar ao ápice do ordenamento positivado, que é a Constituição, que, por sua vez, vai retirar seu fundamento de validade de outra norma superior, mas dessa vez, pressuposta (pensada), cuja função é atribuir autoridade para que se manifeste o ato de vontade para a elaboração da Constituição. Essa norma pressuposta e hipotética é denominada por Kelsen de norma fundamental. A respeito do tema, Michel Miaille enfatiza que a norma fundamental "é, pois, uma norma hipotética, entendida como hipótese no sentido científico do termo: sem ela, a ciência não é possível. Ela é o começo da ciência, a sua condição; não faz parte do direito positivo, não é uma norma estabelecida: ela não pode ser senão suposta" [6].

Assim, é com base na norma fundamental que o legislador constituinte originário ou o costume (nos países de Constituição não escrita) são considerados fontes produtoras da Constituição [7].

Vale lembrar que a Constituição, que representa o escalão de Direito Positivo mais elevado, pode ser produzida pelo costume (constituição não-escrita) ou por ato de uma ou de várias pessoas (constituição escrita).

Nesse prisma, diante do caráter dinâmico do Direito, a norma somente vale por que foi produzida por uma maneira determinada por outra norma superior e não pelo seu conteúdo (caráter estático). Assim, uma norma superior que regula a produção de outra (inferior) é o fundamento imediato de validade desta [8].

Nessa sistemática, a ordem jurídica positiva é um sistema de normas formado em planos diferentes e dispostos de forma escalonada. A sua unidade resulta da conexão de dependência constatada nessa escala de produção normativa, em que a norma fundamental (que não se confunde com a Constituição), que é pressuposta e hipotética, é o fundamento de validade último do ordenamento, constituindo a unidade desta "interconexão criadora" [9].

No que diz respeito à aplicação do Direito, há a necessidade de fixação do sentido das normas por meio da interpretação que, para Hans Kelsen, trata-se de uma "operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior" [10]. Quando o legislador utiliza o processo legislativo para a elaboração das leis, ele aplica a norma superior (Constituição) e cria uma norma de caráter geral: a lei. Quando o juiz ou o administrador vai aplicar a norma geral ao caso concreto, ele cria uma norma individual, de forma que, quando se fala em aplicação da lei, a interpretação revelará qual o conteúdo a ser dado a uma norma individual de uma sentença ou de uma decisão administrativa [11].

Um ponto importante a se ressaltar é que comumente atribui-se aos ensinamentos de Hans Kelsen a aplicação mecanicista do Direito, que não dá ao aplicador qualquer margem para escolhas. É um equívoco, pois a aplicação mecânica do Direito não faz parte da linha de raciocínio de Hans Kelsen, para o qual o intérprete e aplicador do Direito cria a norma jurídica em meio a várias possibilidades de interpretação dentro da moldura construída pelo legislador.

Aqui, importa ficar consignado o seguinte: na obra "Teoria Pura do Direito" não se vê, em momento algum, pensamentos como os de Montesquieu, que desconsidera a força do Judiciário no âmbito dos três poderes e afirma que os juízes não possuem força criativa, sendo apenas pronunciadores das sentenças da lei [12].

Em verdade, segundo os pensamentos de Kelsen, a interpretação do juiz será construída dentro de uma moldura na qual existem várias hipóteses de interpretação, de forma que, do ponto de vista do Direito Positivo, não existe preferência por qualquer das possibilidades [13]. Nesse prisma, as normas produzidas pelo Estado oportunizam a criação de mandamentos por meio da interpretação, podendo ser extraídas várias possibilidades de aplicação, que não pode extrair do enunciado qualquer significado, já que é obrigatória a vinculação à moldura construída pelo legislador, não podendo ir além do que resulta a interpretação literal. Todavia, vale ressaltar que, dentro dessa moldura, qualquer interpretação é juridicamente possível, desde que respeite normas positivas de grau superior, sendo inadmissíveis quaisquer influências de postulados extrapositivos na escolha de um dos sentidos do texto.

Portanto, na linha do positivismo de Hans Kelsen, a escolha de uma interpretação dentro da moldura previamente estabelecida pela lei realiza-se segundo a livre apreciação do juiz e não por meio de qualquer espécie de conhecimento matafísico.

Interessante destacar que a análise da hermenêutica constitucional e do próprio controle de constitucionalidade não foi esquecida por Kelsen na obra "Teoria Pura do Direito". Nela, o autor já apregoava que o catálogo de direitos fundamentais seria uma tentativa de impedir que leis abusivas entrassem em vigor, existindo, inclusive, possibilidade de anulação [14]. Nesse contexto, a relação entre Constituição e lei, na visão de Kelsen, é descrita como uma relação de determinação ou vinculação, em que a Constituição regula os atos por meio dos quais são produzidas as leis, que não podem contrariar o conteúdo dela [15]. Todavia, o assunto é melhor abordado por Hans Kelsen no artigo "A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional)" [16], em que o autor aduz que "ao proclamar a igualdade dos cidadãos perante a lei, a liberdade de opinião, a liberdade de consciência, a inviolabilidade da propriedade, sob a forma habitual de garantia, dada aos sujeitos, de um direito subjetivo à igualdade, à liberdade, à propriedade etc., a Constituição dispõe, no fundo, que as leis, além de serem elaboradas da maneira por ela prescrita, não poderão conter qualquer disposição que atente contra a igualdade, a liberdade, a propriedade etc." [17].

Kelsen também vislumbrou meios de preservação da norma positiva maior por meio de garantias da Constituição, que são "garantias de regularidade das regras imediatamente subordinadas à Constituição, ou seja, no essencial, garantias de constitucionalidade das leis" [18].

Importante ponto a ser lembrado é que Kelsen não deixou de apreciar a questão dos princípios e das normas "suprapositivas". O mestre de Viena admite que se tais postulados vierem positivados na Constituição devem ser tratados como autênticas normas jurídicas constitucionais, podendo, inclusive, ser utilizadas como parâmetro no controle de constitucionalidade [19].

Mas Kelsen chama atenção para o fato de que princípios positivados que invocam ideais como equidade, justiça e moralidade, em nada contribuem para o estado real do direito, podendo desempenhar um papel perigoso ao conceder aos tribunais um poder insuportável do ponto de vista político [20]. Todavia, é necessário deixar frisado que essa crítica de Kelsen é construída sob uma perspectiva da política, pois, sob o ponto de vista jurídico-científico, não há problema algum.

Portanto, na linha dos ensinamentos de Kelsen, o tribunal constitucional está autorizado a utilizar-se de regras e princípios, desde que positivados na Constituição, podendo servir perfeitamente como parâmetros para o controle de constitucionalidade.

No entanto, atualmente, o que se passou a chamar de pós-positivismo com "inovações" como a normatividade dos princípios e a discricionariedade judicial, não está negando cientificamente o positivismo como muitos transparecem. O que ocorre, especialmente no Brasil, é a tentativa de elevação do protagonismo judicial para muito além de qualquer norma estabelecida pelo legislador, inclusive, o constitucional.

 


[1] REALE, Miguel. A visão integral do direito em Kelsen. In: KARAM, Munir; PRADO, Luís Regis (Coord.). Estudos de filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 18.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 01.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 01.

[4] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Hans Kelsen, um divisor de águas 1881-1981. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFSC. v. 03 n. 04. 1982, p. 135.

[5] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Hans Kelsen, um divisor de águas 1881-1981. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFSC. v. 03 n. 04. 1982, p. 135.

[6] MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Estampa, 1994, p. 306.

[7] No que se refere à constituição escrita, Kelsen menciona a primeira constituição histórica como a fonte de validade das constituições seguintes, desde que as constituições posteriores retirem seus fundamentos de validade das constituições anteriores, até chegar à primeira.

[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 246-247.

[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 247.

[10] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 387.

[11] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 387.

[12] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Ed. Abril, 1973. [1748], p. 160.

[13] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 390-393.

[14] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 249.

[15] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 388.

[16] Ainda de acordo com Kelsen, a noção de Constituição perpassa pela ideia de hierarquia das formas jurídicas e pela existência de um núcleo constitucional que resiste a diversas transformações ao longo do tempo. Esse núcleo envolve um princípio supremo que determina a organização do Estado em sua totalidade e estabelece a essência da sociedade constituída por essa ordem. Além disso, o autor ressalta que a Constituição é sempre a base da ordem jurídica do Estado, o equilíbrio das forças políticas do momento e a regulação da produção de leis e das normas gerais de funcionamento dos poderes. Adicione-se que Hans Kelsen denomina Constituição em sentido lato aquela que, além de conter regras relativas ao funcionamento dos órgãos (poderes) e ao processo legislativo, também trata dos direitos e liberdades fundamentais. KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 95-96.

[17] Como destaca Hans Kelsen, a inconstitucionalidade material é, em última análise, uma inconstitucionalidade formal, na medida em que se percebe que uma norma que fere algum dispositivo da Constituição deixaria de ser inconstitucional em caso de aprovação seguindo a forma e o caminho das leis constitucionais. Segundo o autor, se o direito positivo não fizer distinção entre as matérias que deverão obedecer aos caminhos das leis ordinárias ou das "leis constitucionais", "(…) o estabelecimento de princípios, orientações e limites para o conteúdo das leis não tem sentido jurídico, é apenas uma aparência motivada por razões políticas (…)". KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 96.

[18] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 93.

[19] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 118-119.

[20] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 119-120.

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