Opinião

Petição inicial e liquidação antecipada dos pedidos: o novo desprocesso do trabalho

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3 de agosto de 2021, 20h07

Recentemente, o tribunal pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, ao concluir o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 323/2020, decidiu que os valores indicados nos pedidos constantes da petição inicial limitam o montante a ser auferido em eventual condenação.

Não obstante a decisão tenha sido recebida com entusiasmo por alguns juristas que exercem atividade profissional junto à Justiça do Trabalho, o referido entendimento, caso mantido sem exceções à sua aplicação, pode trazer implicâncias pragmáticas involutivas ao Processo do Trabalho, e por via transversa, à atuação da Justiça do Trabalho.

Antes de mais nada, esclareça-se que não se pretende neste texto dizer se a decisão do tribunal pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região é (in) adequada ou (in) correta, nem tampouco proceder à análise dos argumentos utilizados no julgamento do referido Incidente ou no caso concreto, mas apenas trazer luzes teoréticas sobre tema tão caro ao Direito Processual Trabalhista.

Esclareça-se que esse artigo cuida basicamente de responder a seguinte pergunta: "Se há pedidos com valores especificamente atribuídos, como poderia o valor da condenação superar o teto do que foi postulado?". A resposta é muito simples, inobstante não seja intuitiva para leigos: O artigo 840, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), exige que os pedidos elencados em ação trabalhista tenham valor certo e determinado, muito embora nem sempre seja possível se apurar com precisão o valor eventualmente devido ao trabalhador que procura socorro na Justiça. Daí não seria razoável obrigar o obreiro postulante a arbitrar um valor para seu pedido, que seja apto a limitar eventual execução, especialmente quando a apuração do valor devido dependa de ato praticado por outrem. Essa regra, inclusive, não emergiu da chamada "cultura trabalhista", mas do Direito Processual Brasileiro "comum".

Ressalte-se que é muito comum nas lides trabalhistas o autor não conhecer de plano todos as consequências do ato ou do fato que corresponda a causa de pedir de determinada postulação. Por exemplo, é razoável que o trabalhador litigante não saiba previamente à propositura da ação o grau de insalubridade de sua atividade junto à empresa reclamada, ou exatamente quantas horas de sobrejornada e reflexos deixou de receber como extra. Para que tais fatos sejam aferidos com exatidão, normalmente é necessário, respectivamente, a apuração técnica, por perícia, das condições ambientais do trabalho e a apresentação, por parte do empregador, dos documentos e recibos relativos ao que teria sido pago ao obreiro, fatos que normalmente acontecem no curso de um processo trabalhista e por óbvio sempre após a propositura da ação. Desse modo, nessas hipóteses, exigir que o trabalhador, ao ajuizar ação trabalhista, indique com exatidão o valor que lhe entende devido pelo empregador, sob pena de limitação do valor da execução ou condenação ao pagamento de honorários advocatícios naquilo que exceder, mesmo se beneficiário da justiça gratuita, é transformar o processo do trabalho em insapiência jurídica.

Muito embora no âmbito do direito processual a determinação do valor do pedido de natureza pecuniária seja imprescindível à sua aptidão, pois pressuposto processual, admite-se, por óbvio, o pedido genérico quando não for possível determinar desde logo as consequências do ato ou do fato que corresponda a causa de pedir do objeto da lide, ou quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu (artigo 324, §2º, II e III, Código de Processo Civil), regras sem previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho, contudo aplicáveis ao Processo do Trabalho inobstante ignoradas pelos juristas porta-vozes do capital. Assim, considerando que o processo tem por fim qualificar o discurso da procedimentalidade fundante do Direito Democrático, só seria lícito que os valores atribuídos a cada pedido feito em ação trabalhista limitassem o valor da execução, quando se constatar a partir do conjunto da postulação que sua indicação não tenha sido feita por mera estimativa e em cumprimento à formalidade estabelecida no artigo 840, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho. Caso contrário, estaria se reforçando o projeto de um novo Desprocesso do Trabalho, novidade malfadada inaugurada pela Reforma Trabalhista.

Mas não é só isso. Exigir a indicação de valor determinado para cada pedido de natureza pecuniária, sem exceção, conjuntamente a consideração dessa indicação como limitação do valor eventualmente a ser executado, gera uma regra sem precedentes no direito processual brasileiro, qual seja, a antecipação da fase de liquidação para o autor, para momento anterior à formação do processo, estabilização da lide e apuração dos fatos, situação que acaba por gerar um grave desequilíbrio processual e um desproporcional ônus para a maioria dos autores de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho. O trabalhador que busca seus direitos na justiça, nesse caso, se vê obrigado a escolher se ganha um valor menor do que eventualmente lhe é devido ou se assume um alto risco de pagar maior quantia de honorários de sucumbência, mesmo se beneficiário da justiça gratuita, situação que não encontra precedente no Direito Processual comum.

Ademais, o entendimento de que os valores dos pedidos iniciais limita o montante de eventual execução trabalhista ignora a Instrução Normativa nº 41/2018, do Tribunal Superior do Trabalho, que dispõe que para fins da regra do artigo 840, §§1º e 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, o valor da causa se trata de mera estimativa (artigo 12, §2º).

Inobstante a Subseção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Agravo em Recurso de Revista de nº 10472-61.2015.5.18.0211, já tenha decidido que ao formular pedidos com valores líquidos na petição inicial, sem registrar qualquer ressalva, o autor limita a condenação a esses parâmetros, a teor do disposto no artigo 492 do Código de Processo Civil (CPC), a partir desse julgado não é lícito concluir que a mera indicação de valores dos pedidos na petição inicial importa em limitação da condenação em qualquer hipótese. Explico.

No caso concreto sob análise, o autor requereu o pagamento de horas in itinere no exato valor de R$ 3.803,00, não fazendo qualquer menção de se tratar de mera estimativa ou requerimento de apuração em liquidação, como havia sido feito em outros pedidos no mesmo processo. Assim, a limitação da execução se deu pelo fato de que a partir do conjunto da postulação foi possível constatar que o valor do pedido de pagamento de horas in itinere não era mera estimativa.

Ressalte-se, ainda, que a estimação de valor de pedidos em ação trabalhista não pode ser confundido com liquidação, não obstante na prática trabalhista se utilize o termo "pedido liquido", quando se afirma acerca da exigência estabelecida no artigo 840, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho. Diferentemente da mera estimativa, a liquidação demanda uma apuração pormenorizada da obrigação exigível, a partir de critérios e circunstâncias previamente definidos. Por óbvio a Consolidação das Leis do Trabalho não estabelece a liquidação dos pedidos como pressuposto processual  nem o Código de Processo Civil  entretanto, determina que seja feita pelo autor uma estimativa do valor de cada pedido realizado. Essa exigência possibilita uma apuração mais fiel do valor da causa e das cominações que dela dependem, como arbitramento de custas e honorários sucumbenciais, por exemplo.

Ademais, o entendimento que aqui se coloca sob prova contribui para que advogados prefiram ajuizar ações trabalhistas em órgãos da justiça comum em detrimento da Justiça do Trabalho, instituição que detêm a competência constitucional para processar feitos desse tipo. Inclusive, em desobediência às regras de competência definidas no artigo 114 da Constituição Federal, já se têm visto inúmeras ações movidas por motorista de aplicativos em face às plataformas digitais, junto aos Juizados Especiais Cíveis, pois nesse caso não há risco de condenação, pelo menos em 1ª instância, ao pagamento de despesas processuais como custas e honorários de sucumbência, nem tampouco limitação do valor da execução ao limite de alçada estabelecido pela Lei 9.099/1995.

Os advogados, portanto, ao ajuizarem ações trabalhistas, devem procurar deixar claro, para evitar interpretações equivocadas, que os valores atribuídos a cada pedido, sendo este o caso, se trata de mera estimativa realizada com o fim de afastar a inépcia por pedido genérico, sendo que o valor exato da condenação deve ser apurado em posterior fase de liquidação (ser. 324, §1°, II, CPC), medida que certamente não seria necessária caso não estivéssemos vivendo um período de terraplanismo no âmbito do Direito Material e Processual do Trabalho.

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