Opinião

Brasil vive uma pré-reforma da Administração Pública

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29 de abril de 2021, 16h10

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 32/2020, que trata sobre a reforma administrativa, está no início do seu trâmite na Câmara dos Deputados. Entre abril e maio, serão realizadas pelo menos sete audiências públicas na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil, para qualificar o debate sobre a constitucionalidade ou não da proposta.

Mas, antes mesmo de a proposta ser debatida, emendada e votada, o governo já vem adotando uma série de medidas que antecipam como seria a realidade pós-reforma. Apenas nos últimos meses, o Executivo federal já vem operacionalizando ao menos três questões que estão previstas na proposta de reforma administrativa em tramitação: 1) contratações de pessoal com vínculo precário; 2) incremento de poderes do Executivo; e 3) fragilização da estabilidade dos servidores públicos.

Quanto ao primeiro ponto, a PEC n° 32/2020 amplia as hipóteses de contratação precária na Administração Pública em pelo menos dois dispositivos. É o caso da proposta de alteração do artigo 37, §8º, inciso IV, que prevê a contratação de pessoal por prazo determinado, mediante processo seletivo simplificado, com recursos próprios de custeio de cada órgão ou entidade da Administração direta e indireta.

Outro dispositivo que exemplifica essa pretensão é a criação do artigo 39-A, com o fim de estabelecer cinco tipos de vínculo público que poderão existir, quais sejam: 1) vínculo por prazo determinado; 2) cargos de liderança e assessoramento; 3) vínculo de experiência; 4) cargo com vínculo por prazo indeterminado; e 5) cargo típico de Estado. À exceção deste último, a característica comum entre todos os vínculos é a precariedade, ou seja, a ausência de estabilidade.

Relembre-se que hoje a regra para a contratação de pessoal é o concurso público. A modalidade da contratação temporária (redação atual do artigo 37, IX) existe apenas para casos de excepcional interesse público, em que se comprove a necessidade temporária e transitória de pessoal para uma demanda específica.

Desconsiderando a regra da excepcionalidade, o governo tem investido nas contratações temporárias.

No último dia 22, a Advocacia-Geral da União (AGU) deu início a processo seletivo simplificado para contratação de 110 profissionais temporários de nível médio e superior. O suporte é bem-vindo, mas o buraco é mais embaixo.

A escassez de pessoal na AGU tem se mostrado cada vez maior. Ao passo em que o volume de atividades realizadas pelos advogados da União aumenta exponencialmente, sobretudo após a crise advinda da pandemia, a AGU permanece com 26% de cargos vagos, conforme ata da 201ª Reunião Ordinária do Conselho Superior da AGU (CSAGU), de 17 de novembro de 2020 [1].

O caso era, claramente, de realização de concurso público para seleção de profissionais que integrassem o quadro de pessoal permanente do órgão, e não de forma transitória. A solução dada é uma tentativa de tapar o sol com a peneira.

Situação semelhante ocorreu em fevereiro deste ano, quando o Ministério da Economia abriu processo simplificado para ocupação de cem vagas imediatas e de outras 490 para cadastro de reserva. Em momento algum a pasta explicitou os motivos do excepcional interesse público nessa contratação. Na verdade, o edital prevê a execução de atividades ordinárias do órgão, em áreas como contabilidade, informática, economia e direito. Ainda sinaliza que a necessidade de pessoal não é tão transitória assim: os contratos iniciais são de um ano, mas podem ser prorrogados por até cinco, prazo máximo para essa modalidade previsto na Lei n° 8.745/1993.

E esse é apenas o início. Outra medida adotada previamente pelo governo, ainda mais alarmante, consiste na instituição de "superpoderes" para o chefe do Executivo.

Conforme exposição de motivos da PEC n° 32/2020, um dos objetivos da proposta é "ampliar a auto-organização do Poder Executivo", ou seja, torná-lo o verdadeiro dono das regras do jogo. Nesse ponto, a PEC visa a alterar o artigo 84, VI, da Constituição e conferir ao presidente da República prerrogativas de criação, extinção e transformação de cargos públicos por meio de decreto autônomo, dispensada a necessidade de lei formal. Isso subverte a lógica até então posta, em que o presidente pode dispor, mediante decreto, apenas sobre a extinção de funções ou de cargos públicos que estiverem vagos.

Mais uma vez adiantando o disposto na PEC n° 32/2020, o governo publicou, no último dia 15, a Medida Provisória n° 1.042/2021 [2], que "simplifica" a gestão dos cargos públicos. A medida dá ao chefe do Executivo poderes para, em uma canetada, criar, transformar e extinguir cargos em comissão, funções de confiança e gratificações, mesmo se estiverem ocupados, sem necessidade de chancela pelo Congresso Nacional.

Ou seja, um duplo drible no Legislativo. Ao invés de aguardar a votação da reforma, o governo impôs unilateralmente essa pretensão de maior controle sobre a organização dos cargos públicos. A medida abre margem para arbitrariedades, desrespeita a separação constitucional de poderes e viola o comando expresso do artigo 48, X, da Constituição [3], segundo o qual compete ao Congresso Nacional dispor sobre a criação, transformação e extinção de cargos públicos. Se essa é a regra constitucional válida no momento, não pode a Administração subverter a ordem porque está tramitando uma PEC que amplia os poderes do presidente da República: somente quando a PEC for promulgada, e se for promulgada com o texto proposto, caberá ao presidente tal prerrogativa.

Além das contratações precárias e do incremento de poderes do presidente da República, também é possível antever o cenário pós-reforma ao se observar os crescentes números de assédio moral e de perseguições políticas no âmbito do funcionalismo público.

Em reportagem publicada no último dia 11 [4], o jornal O Globo apontou que ocorreram ao menos 650 casos de assédio institucional apenas nos últimos dois anos, número esse que não pode ser normalizado. A matéria expõs casos de servidores que foram realocados, afastados ou aposentados compulsoriamente de forma estranha e alertou que já houve casos de demissão. Em geral, o motivo é a veiculação de críticas ao governo em redes sociais ou outros meios de comunicação.

A reforma administrativa agravaria esse cenário. A PEC n° 32/2020 propõe que apenas os ocupantes de cargos típicos de Estado façam jus à estabilidade; todos os demais estariam sujeitos à demissão pelos mais variados motivos, ou mesmo sem motivo algum.

Considerando-se o contexto atual, em que servidores já estão sendo perseguidos por manifestarem suas opiniões pessoais, o fim da estabilidade apenas serviria como mais uma forma de controle e manipulação política. Se o objetivo fosse aumentar a produtividade do serviço público, o foco da reforma seria a regulamentação da avaliação periódica de desempenho. No entanto, esse ponto foi estrategicamente deixado de lado, novamente sob a promessa de ser regulamentado em um segundo momento.

E assim, mesmo que o ritmo de discussão da PEC n° 32/2020 seja menos acelerado do que o esperado pelo governo, as pré-reformas vão se apresentando ao longo dos meses. A parte negativa disso é evidente, mas também é possível olhar para o copo meio cheio: quanto mais sentirmos o gostinho amargo dessas medidas, mais reunimos forças e argumentos para repelir a PEC n° 32/2020.

 


[3] "Artigo 48 – Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o artigo 84, VI, 'b'". 

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