Opinião

Acordo Mercosul-UE: perspectiva jurídica alvissareira, mas ainda só uma perspectiva

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27 de abril de 2021, 6h03

O acordo Mercosul-União Europeia é, ele mesmo, uma perspectiva. Uma perspectiva que se encontra bem encaminhada e de extrema importância. Uma perspectiva que tem uma longa história de sua consolidação.

A negociação desse arranjo remonta a 1995, quando foi assinado um acordo-quadro de cooperação inter-regional Mercosul-União Europeia, em Madri, gerando expectativas importantes para os Estados-membros, num momento em que a Organização Mundial do Comércio iniciava sua caminhada global. O avanço conjunto dos dois blocos encontrou dificuldades até que, em 1999, negociações definiram os três pilares sobre os quais deveria se assentar o futuro acordo: um pilar comercial, que ocupa e ocupará a atenção dos agentes econômicos e dos cidadãos das nações dos dois blocos em uma longa jornada de desoneração das "cestas" de produtos e serviços abarcados; um pilar político; e um pilar de cooperação entre as nações.

Do ponto de vista jurídico, o acordo se encontra numa fase em seu iter constitutivo caracterizada pela necessidade de revisão de seu texto, havendo consenso entre os dois blocos relativamente ao conteúdo, mas cuja revisão para fins de redação final se mostra essencial. Em seguida será necessário proceder à tradução do texto para as línguas oficiais dos dois blocos, com todas as dificuldades que a tradução traz para o mundo jurídico [1], dadas, inclusive, as peculiaridades linguísticas do português e do espanhol falados de um e de outro lado do Atlântico.

Só depois disso é que a assinatura — nos termos técnicos do Direito Internacional Público — poderá ocorrer. A assinatura, nesses termos, é essencial para se encerrar a fase de negociações no âmbito internacional, para, em seguida, dar-se início às providências internas que caracterizam a fase de aprovações. Essa fase de aprovações traz à baila um conjunto de peculiaridades que é preciso salientar.

No que concerne à União Europeia, partes separáveis do acordo, cuja temática se encontra abarcada pelo compartilhamento de soberania entre seus membros, poderão ser aprovadas por deliberação da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu segundo procedimento previsto no tratado constitutivo da União e no tratado sobre o funcionamento da União. Por outro lado, temas cujo compartilhamento soberano não se verifique, ou seja, temas que continuam na esfera de decisão individual dos Estados, exigirão a manifestação dos órgãos nacionais competentes, segundo o procedimento previsto em cada uma das legislações internas.

Já no que concerne ao Mercosul, dadas as enormes diferenças quanto aos aspectos econômicos, sociais, populacionais e outros, além das condições políticas internas aos Estados-membros do Mercosul, houve sempre alguma dificuldade para a construção de um mecanismo de tomada de decisão baseado nos votos ponderados de seus membros, o que facilitaria, por certo, a decisão de compartilharem sua soberania. Assim, pela própria estrutura do bloco, em que as decisões são atingidas por consenso, será preciso que se obtenham as aprovações dos órgãos internos dos Estados-membros, consoante os procedimentos vigentes em cada nação, o que abarcará a integralidade do texto convencional.

O legislativo brasileiro, especificamente, costuma aprovar acordos internacionais de interesse da União por meio de acordos entre as lideranças partidárias, procedimento que os regimentos das casas legislativas — Câmara e Senado — admitem. Ainda assim, há um histórico de tramitações bastante longas relativamente a importantes textos convencionais, o que tornará importante o estabelecimento de grupos de pressão política sobre os parlamentares quando se estiver a tempo e modo da aprovação.

A existência dos três pilares acima mencionados e as peculiaridades internas de tramitação fazem com que seja preciso e conveniente ter atenção redobrada e algum cuidado com temas que aparentam ser marginais ao acordo, como a questão ambiental, porquanto a cooperação política esteja, desde 1999, no radar dos blocos e na mesa de negociações. Além disso, de 1999 para cá, os Estados conseguiram avançaram na regulamentação ambiental global, o que não pode ser descurado. Nem se deve atribuir o protagonismo desse tema a alguma forma de oportunismo desta ou daquela nação europeia em face de uma política ambiental obtusa como a que vem sendo seguida pelo governo federal brasileiro nos últimos anos.

 


[1] A respeito, veja-se ECO, Umberto. Dire quasi la stessa cosa: esperienze di traduzione. 6. ed. Milano: Bompiani, 2015; OST, François. Le Droit comme traduction. Québec: Les presses de l'Université Laval, 2009; OST, François. Traduire: défense et illustration du multilinguisme. [s.l.]: Arthème Fayard, 2009; ROCHLITZ, Rainer. Le traduisible et l'intraduisible. In: MATTÉI, Jean-François (dir. du vol.). Encyclopédie philosophique universelle, v. IV (Le discours philosophique). Paris: Presses Universitaires de France, 1998; WHITE, James Boyd. Justice as translation: an essay in cultural and legal criticism. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1990.

Autores

  • é advogado, professor titular de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da USP, professor de Direito Internacional Público na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenador do Curso de Direito da Universidade Anhembi-Morumbi e membro da Comissão de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

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