Opinião

A ADPF 635 e a transmutação das práticas autoritárias

Autor

  • Rogerio Schietti Cruz

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

26 de abril de 2021, 15h09

Há pouco mais de três anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por duas chacinas na favela Nova Brasília, situada no Complexo do Alemão, onde, em 1995 e 1996, policiais mataram 26 moradores, incluindo quatro crianças. Passado um quarto de século, pouco mudou na realidade das comunidades e favelas cariocas, a despeito das enfáticas recomendações do Sistema Interamericano, voltadas não apenas a determinar que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, mas também a exigir que os responsáveis por homicídios causados por agentes públicos sejam investigados, processados e punidos.

E, poucos dias após a versão inicial deste texto ser publicada aqui na ConJur, o Rio de Janeiro é palco de nova incursão violenta da Polícia Civil — curiosamente uma instituição voltada mais à investigação e ao esclarecimento de crimes do que propriamente a operações com esse perfil — com a morte de quase trinta pessoas, incluindo um policial, sem que, de concreto, se possa extrair algum resultado útil e efetivo da incursão, além da dor e da revolta dos habitantes da comunidade e, especialmente, dos familiares dos mortos, cuja neutralização — expressão comumente usada em operações de guerra — apenas franqueará a porta para o recrutamento de novos operários de facções criminosas a que, alegadamente, pertenciam os abatidos.

Essa é apenas uma das facetas da conflituosa convivência entre polícias e comunidades no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro, onde práticas abusivas de toda espécie oprimem milhares de pessoas que, invisíveis aos moradores do asfalto, se veem impotentes e absolutamente vulneráveis diante da omissão estatal na oferta de serviços públicos básicos, de um lado, e da excessiva intervenção na esfera das liberdades públicas, de outro.

A lógica da guerra produz baixas nos dois fronts e não escolhe vítimas, mas os números acentuam o viés racista desse embate: o percentual de negros mortos, tanto civis quanto policiais, é bem superior ao número de brancos, o que faz lembrar Emicida ("80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo").

A seletividade do sistema repressivo e punitivo é precedida pela seletividade das ações policiais, quanto ao local das operações (CEP), ao grupo social visado (classe D) e às pessoas mais atingidas (cor preta).

As comunidades reclamam da ausência do Estado em serviços públicos em geral, mas o que verdadeiramente as sufoca é o modo-de-ser da atuação estatal na área de segurança pública. Sim, porque ao invés do policiamento comunitário, ostensivo, de aproximação, o que se vê são operações espetaculares, protagonizadas por fuzis, caveirões, helicópteros e demais aparatos dessa guerra civil instalada em alguns pontos da região metropolitana carioca.

Nessas ocasiões, lares são invadidos (sem mandado, sem consentimento do morador e sem justa causa), pessoas (mocinhos e bandidos) são mortas, crianças são baleadas na porta de suas casas (ou até dentro delas), corpos são desaparecidos, e tudo segue sua rotina, naturalizada e banalizada pelo mal. Não bastasse isso, o cenário é ocupado por facções criminosas e milicianos, em uma relação de aparente disputa de espaço e poder, permeada, no entanto, por acordos não escritos, em que, por trás da falsa oferta de segurança, comerciantes são extorquidos, moradores são coagidos e os que se opõem a tal espúria prática são eliminados.

Os números mostram não apenas uma tragédia permanente na vida dos habitantes desses territórios-sem-lei, cuja única esperança é a de terminar o dia com vida e com a intimidade de seus lares preservada. Efetivamente, é na sua humilde morada que cada um de seus ocupantes deveria poder descansar, após um dia de labuta sofrida; é ali que mães poderiam agasalhar seus filhos, educá-los, alimentá-los e mimá-los com tranquilidade; é no recôndito da morada que casais poderiam ter seus momentos de intimidade ou de troca de afagos, filhos poderiam brincar e todos dormirem sem o medo de serem surpreendidos por homens fortemente armados, sem pedir licença e sem modos, à busca de armas, drogas ou criminosos.

Esses detalhes — e dezenas de outros — foram explorados em depoimentos, relatos, avaliações e informações colhidas na histórica Audiência Pública realizada nos dias 16 e 19 deste mês pelo Supremo Tribunal Federal, sob a feliz iniciativa e condução do ministro Edson Fachin, com o propósito de ouvir a sociedade civil, especialistas, profissionais dos mais diversos setores, e de debater estratégias de redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro.

Esse encontro teve como referência a ADPF 635 (cognominada ADPF das Favelas), da qual se originou decisão — a meu sentir a mais importante da história do Supremo Tribunal Federal, para a preservação dos direitos humanos, nomeadamente o direito à vida de milhares de pessoas — em que a corte, chancelando liminar concedida, parcialmente, pelo ministro Edson Fachin, condicionou a realização de operações policiais armadas nas comunidades do Rio de Janeiro a uma série de providências, voltadas a reduzir o elevado número de pessoas mortas por forças estatais de segurança.

Durante dois dias inteiros, totalizando em torno de 20 horas de encontro, todos os inscritos tiveram suas falas ouvidas diretamente pelo ministro Fachin, que, pacientemente, acolheu críticas, sugestões, desabafos e apelos para que o Poder Judiciário se sensibilize com esse drama das periferias, não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas de todo o país.

Coincidentemente, a última pessoa a ter voz, a pesquisadora Monique Cruz, após nominar, emocionada, algumas das milhares de mães que perderam seus filhos nessa tragédia insana, concluiu sua fala dizendo: "Nós estamos convencidas de que poderá haver efetivamente um Plano de Redução da Letalidade no estado do Rio de Janeiro, se este plano vier da caneta e estiver sob o olhar do STF. O resto será mais uma estória para ninar gente branca".

Sem dúvida alguma, ao Poder Judiciário está reservado um papel decisivo na mudança de cultura das agências estatais que compõem o sistema de Justiça criminal. Nenhuma delas está a salvo de cobranças por uma melhoria da qualidade de sua atuação: polícias, Ministério Público, advocacia, Defensoria Pública, Judiciário, todos nós, que exercemos cargos ou funções estratégicas, temos nossa parcela de responsabilidade e dela não podemos nos esquivar.

O ministro Fachin, em uma de suas intervenções durante a audiência pública, foi muito corajoso ao asserir: "Não somos e não podemos ser, nenhum de nós, indiferentes à dor e à responsabilidade". Certamente, e parafraseando o mote dos movimentos antirracistas, é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso humanista e ações verdadeiramente transformadoras de certas práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir, apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa Constituição, de construção de um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Enquanto forem os fuzis a ocupar os espaços de cidadania, continuarão a morrer pessoas, e com elas a esperança.

*Texto atualizado às 17h55 do dia 8/5/2021, para acréscimo de informações.

Autores

  • é ministro do Superior Tribunal de Justiça, coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

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