Opinião

LSN: Lei do Silêncio Nacional? (Parte 1)

Autor

  • João Linhares

    é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul; mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona-Espanha; especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

21 de abril de 2021, 15h14

"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem"
(José Saramago, "Ensaio sobre a cegueira". São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 310)

Os compêndios de História revelam que os inesquecíveis e preciosos sermões do Padre António Vieira, retratos do melhor barroco, incomodavam muito àqueles que, tendo poder, não concordavam com suas ideias e por elas se sentiam atingidos. Com efeito, com a sua influente e persuasiva oratória, do alto do púlpito, o referido clérigo defendia os indígenas, os judeus, a abolição da escravatura, criticava alguns dos seus pares e questionava alguns dogmas. Por isso, ele foi julgado e condenado, em 1667, pelo Tribunal da Inquisição. Sua pena? Ser "privado para sempre de voz ativa e passiva, e do poder de pregar".

De igual forma, os ideais que embalaram a Revolução Francesa e que motivaram os inconfidentes mineiros, especialmente a implementação de uma República, com igualdade para todos, liberdade econômica e de expressão, entre outros valores, também fizeram com que seus maiores arautos fossem perseguidos pela coroa, degredados, e, no caso de Tiradentes, calado fisicamente no dia 21 de abril de 1792. Seus coveiros foram famintos urubus, que espreitavam os quatro quartos do herói plantados ao longo da Estrada Real e a sua cabeça, com a cabeleira e a barba longas, alçada num poste de Ouro Preto [1]. Sua voz, entretanto, ainda retumba entre nós e reverberou significativamente em nossa Lei Fundamental.

Felizmente, depois de séculos de avanço civilizatório e de consolidação de direitos fundamentais, quer na órbita internacional, quer sobretudo na nossa ordem jurídica endógena, a liberdade, em suas várias vertentes, como a de pensamento, é tutelada constitucionalmente e a sua manifestação é plena, sendo que a censura prévia está proibida, não subsistindo a "pena de silêncio". Aliás, este passou a ser um direito dos que são acusados desdobramento do nemo tenetur se detegere [2], e não mais uma sanção que possa ser infligida pelo Estado.

Contudo, o uso frequente e notório da Lei de Segurança Nacional (LSN), Lei nº 7.170/1983, contra críticos do atual governo parece indicar um hialino retrocesso democrático, mediante a pretensão de repristinar-se a "reprimenda de calar-se" para os atuais "Vieiras" e "inconfidentes". Estamos na inquisição ou sob o pálio de um governo absolutista? Não cremos nessa hipótese esdrúxula, embora ainda existam "Torquemadas". Tal diploma legislativo há de ser ponderado com olhos contemporâneos e até ser descartado naquilo que contrasta com a nossa Constituição Federal (CF). Para tanto, faço um breve apanhado de alguns tópicos que se me apresentam relevantes abordar acerca dessa mencionada LSN.

A Lei nº 7.170/1983 foi criada no governo de João Batista Figueiredo e teve como escopo definir os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e estabelecer o seu processo e julgamento.

Ela vem sendo acoimada de ser totalmente inconstitucional por ser dessa época, sendo considerada por alguns como entulho autoritário. De modo geral, não avalizo esse entendimento, visto que a invalidade de uma lei não deriva da quadra histórica em que ela foi confeccionada, muito menos do governo que a placitou. Sua higidez perdura se ela não foi revogada por outra norma posterior e se o seu conteúdo está em consonância com atual Constituição, tendo sido por ela recepcionado. Assim, exempli gratia, ocorreu com o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), com o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), com o Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965) e com Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), os dois primeiros da ditadura do Estado Novo e os dois últimos do governo militar, todos vigentes até os dias hodiernos.

A ação penal é pública, de atribuição do Ministério Público Federal (MPF), e o inquérito policial cabe à Polícia Federal, sendo sua instauração de ofício, por requisição do MP ou do Ministro da Justiça. A competência é da Justiça federal, nos termos do artigo 109, inciso IV, da CF, razão pela qual o artigo 30 da LSN não foi recepcionado pela nova ordem constitucional [3].

Nesse eito, a instauração de inquérito policial pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, baseado na citada norma, contra o youtuber Felipe Neto foi fulminada ab ovo [4] pelo Poder Judiciário, a despeito deste autor também reputar que inexiste qualquer crime na mencionada fala de tal personagem pública, conforme demonstrarei à frente.

Realmente, a LSN tem sido usada ora pelo Executivo federal, ora pelo STF, o que tem suscitado amplo questionamento. Há controvérsia sobre a sua recepção pela Constituição Federal. Por volta do ano 2000, foi criada uma comissão no âmbito parlamentar para revogação da aludida norma, bem como de juristas para análise do tema, todavia, ambas não prosperaram. O STF decidirá a matéria na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 797 e na de nº 799.

Releva reportar que está em tramitação o Projeto de Lei (PL) nº 3.864/2020, de autoria do deputado Paulo Teixeira [5], em defesa do Estado democrático de Direito, que visa a revogar a LSN. Esse PL foi elaborado pelos juristas Lenio Streck, Juarez Tavares, Pedro Serrano, Eugenio Aragão etc. Na justificativa, asseveraram que a atual LSN não foi recepcionada pela CF. Outra iniciativa, nessa toada, é o PL 6.764/2002 apresentado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior [6].

Afigura-se relevantíssimo o Congresso Nacional se debruçar sobre uma novel legislação acerca da defesa da democracia e das instituições, revogando-se, por inteiro, o quanto antes, a LSN em epígrafe. Contudo, enquanto isso não é implementado, não se detecta, ao contrário do que sucedeu com a vetusta Lei de Imprensa, "inconstitucionalidade" total do diploma em vigor (ou invalidade/não recepção dele), conquanto me caiba notar tal vício em alguns dispositivos como, por exemplo: o artigo 7º, caput, que prevê a aplicação do CP Militar, no que couber, para os delitos nela insculpidos; o que estipula a competência da Justiça Militar para processar e julgar os crimes estipulados na LSN (artigo 30) e a disposição de que o inquérito possa ser instaurado por requisição de autoridade militar interna responsável pela segurança interna (artigo 31, III), bem assim os artigos 32 e 33. A CF regulou o assunto no artigo 109, inciso IV, e repeliu da alçada castrense tais delitos, conforme já externado alhures (vide nota de fim de página nº 3). A atribuição da apuração cabe à PF e ao MPF. Também a prisão de qualquer pessoa, no âmbito criminal, somente pode dar-se por flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (artigo 5º, inciso LXI, CF) e está vedada a incomunicabilidade do preso (artigo 136, §3º, inciso III, CF).

Para mim, nos estreitos limites deste artigo e para os fins deste estudo, interessa mais perscrutar o artigo 26 da LSN, que estipula a criminalização, com pena de reclusão de um a quatro anos, de ataques à "honra" (calúnia e difamação) dos chefes dos poderes (artigo 26) e das casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal). E é sobre isso que gostaria de sopesar um pouco mais.

A Carta da República não erigiu direitos fundamentais absolutos, nem tampouco colocou, ao menos em princípio, uns em sobreposição a outros, conformando-se com o imbricamento e interpenetração de todos eles, que devem ter, cada qual, efetividade.

A despeito disso, não seria exorbitante assinalar que a liberdade de manifestação do pensamento da qual a liberdade de imprensa e de informação são projeções exsurge como de importe axiológico, num momento inicial, de maior realce do que os direitos da personalidade, mormente de figuras públicas, notórias ou envoltas, ainda que indiretamente, em fatos de interesse geral. Esses argumentos não são sinônimos da supressão ou do arredamento completo dos direitos de personalidade de tais pessoas, pois elas contam com o amparo constitucional, nesse ponto, apesar de sê-lo em menor abrangência. E essa extensão diminuta dos direitos de personalidade de indivíduos públicos ou notórios, mormente políticos, dá-se justamente por conta do império do postulado maior do Estado democrático de Direito, "princípio dos princípios" [7], que reclama o frequente e transparente fluxo de ideias heterogêneas, o debate e o controle do poder (político, jurídico, econômico e religioso) e, por conseguinte, o direito de emitir opiniões, exarar o pensamento, buscar informação, de ser informado e de informar, compreendendo o direito a expender críticas, mesmo que cáusticas e mordazes.

Ocorre que, no entendimento do Ministério da Justiça do atual governo, os direitos da personalidade têm incrivelmente tomado, sem maiores fundamentos, dimensão de superioridade, em detrimento do verdadeiro conteúdo semântico da liberdade de expressão, de tal arte que isso acaba por criar um ambiente nocivo ao debate público sobre a gestão estatal e sobre matérias de interesse social, prejudicando a informação pública e o pluralismo, ante a tendência de fazer instaurar contra jornalistas, youtuber, professores e outros críticos do presidente, inquéritos policiais para averiguar o crime previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional. Assim, personalidades como Ruy Castro [8], Hélio Schwartsman [9], Ricardo Noblat e o cartunista Aroeira [10], Felipe Neto e o sociólogo Tiago Costa Rodrigues ("pequi roído"), entre diversas mais, tiveram contra si inquéritos policiais instaurados porque haveriam incorrido em crime contra a honorabilidade do presidente da República.

Continua na Parte 2

 


 

[1]  RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. Ed. São Paulo : Global, 2015, p.116.

[2]Vide: STF – RE 971959. Tribunal Pleno. Relator Ministro Luiz Fux. Julgamento: 14.11.2018, publicado em 31.07.2020

[3] STF: RC 1468, Relator: Ministro Ilmar Galvão, Relator p/ Acórdão: Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/2000, DJ 16-08-2002, p. 89, EMENT VOL-02078-01, p. 41. No STM, veja: CC 316 DF 2004.02.000316-1, Relator: Ministro José Coêlho Ferreira, Data de Julgamento: 09.09.2004, Data da Publicação: 08.11.2004

[7] O Ministro Ayres Britto, relator da ADPF nº 130, manejada contra a Lei de Imprensa, dispôs no seu voto paradigmático: “A Democracia é o princípio dos princípios da Constituição de 1988. Valor dos valores, ou valor continente por excelência. Aquele que mais se faz presente na ontologia dos outros valores, repassando para eles a sua própria materialidade. Logo, o cântico dos cânticos ou a menina dos olhos da nossa Lei Fundamental, consubstanciando aquela espécie de fórmula política (…). Exatamente por se colocar no corpo normativo da Constituição como o princípio de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica é que nossa democracia avulta como síntese dos fundamentos da nossa República Federativa (“soberania”, “cidadania”, “dignidade da pessoa humana”, “valores sociais do trabalho” e da “livre iniciativa e pluralismo político”) e dos objetivos fundamentais desse mesmo Estado Republicano Federativo (“construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”)”.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em MS desde dezembro de 2000, especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ e mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha). Eleito, por unanimidade, integrante da Academia Maçônica de Letras de MS, é professor no curso de pós-graduação em Segurança Pública e Fronteiras da Universidade Estadual de MS.

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