Opinião

A inconstitucionalidade da limitação dos efeitos territoriais da coisa julgada

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19 de abril de 2021, 6h36

Em 13/2/2020, o Recurso Extraordinário nº 1.101.937/SP foi afetado ao Tema de repercussão geral nº 1.075, envolvendo a discussão da constitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com a redação dada pela Medida Provisória nº 1.570/1997, que previa a limitação dos efeitos da sentença civil, julgada erga omnes, aos limites da competência territorial do órgão prolator: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

A redação original do dispositivo, vale lembrar, mitigava a coisa julgada nas ações civis públicas apenas secundum eventum litis, ou seja, de acordo com o resultado do processo e, assim, a declaração de procedência produzia coisa julgada erga omnes, sem limitação territorial de seus efeitos.

A lide levada à apreciação do Supremo originou-se de ação civil pública proposta pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em face de 16 instituições financeiras, na qual se objetivou a revisão de contratos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). O Recurso Extraordinário nº 1.101.937/SP foi interposto pelas instituições financeiras em face de decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que, reafirmando seu entendimento anterior, concluiu que uma decisão tomada em ação civil pública pode ter eficácia nacional, desde que proferida por juiz de capital de estado.

Com efeito, desde outubro de 2011, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça havia firmado entendimento pela mitigação da aplicação do artigo 16 da LACP com a redação conferida pela medida provisória, fixando a tese de que a "eficácia da sentença não está circunscrita a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo" [1].

Grande parte da doutrina já defendia a inconstitucionalidade da redação do artigo 16 da LACP por ofensa à isonomia, ao se permitir decisões contraditórias entre duas ou mais coisas julgadas e estimular-se o ajuizamento de várias demandas para tratar do mesmo fato; ao acesso à Justiça, permitindo que sujeitos atingidos pelo dano não sejam tutelados pela limitação territorial dos efeitos da decisão do processo coletivo; e aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pela imposição da necessidade de ajuizamento de tantas ações civis públicas quantas sejam as unidades territoriais em que se divida a respectiva Justiça.

Parte dessa corrente ainda sustenta que a alteração promovida pela medida provisória confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com os conceitos processuais de jurisdição e competência, como se, à exemplo clássico, a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado.

No caso, alega-se também o conflito normativo entre normas de mesmo status legal, tendo ocorrido a revogação tácita do artigo 16 da LACP pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), em especial pelo seu artigo 103, ao delimitar a coisa julgada no processo coletivo. Existiria, subsidiariamente, a incompatibilidade do artigo 16 da LACP com o sistema de tutela de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, estabelecido pelo CDC.

Além do mais, a alteração introduzida pela medida provisória, convertida em lei, seria inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional, conforme o dano ocorrido, devendo a ação ser distribuída perante a capital do Estado, quando da primeira hipótese. O que vem a determinar, ainda, o âmbito de abrangência da coisa julgada é o próprio pedido, e não a competência.

De modo contrário, a constitucionalidade do artigo 16 seria proveniente da competência da lei ordinária para limitação dos contornos da coisa julgada e da opção política do legislador de limitar territorialmente os efeitos da coisa julgada em tutela coletiva.

Em acréscimo, refutando o argumento da possível insegurança jurídica trazida pela redação atual do artigo 16, os defensores da constitucionalidade do dispositivo afirmam que o Código de Processo Civil de 2015 prevê instrumentos processuais eficazes para assegurar a segurança jurídica e a isonomia nas decisões, como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), a sistemática dos recursos repetitivos e a própria repercussão geral possível de ser reconhecida nos recursos extraordinários. Não seria, dessa maneira, o papel das decisões em processos coletivos assegurar segurança jurídica, diante da existência de institutos processuais muito mais eficazes para alcançar este fim.

Não menos importante, prosseguia-se com a afirmação de que, sem a limitação territorial trazida pela redação da Lei de Ação Civil Pública atual, permitir-se-ia ao demandante a escolha estratégica do juízo mais conveniente para propositura da ação, visando que a decisão alcançasse efeitos nacionais. Trata-se do chamado "fórum shopping".  Tal liberdade na escolha do juízo que mais convém aos interesses da parte propositora da ação coletiva caracterizaria ofensa ao também princípio constitucional do juiz natural (artigo 5º, LIII, CFRB/88).

No último dia 7, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.101.937/SP, afetado ao Tema de repercussão geral nº 1.075, declarando, por maioria, a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985). 

A tese fixada declara que em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o artigo 93, II, da Lei 8.078/1990, e que, "ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas". 

A inconstitucionalidade do dispositivo já havia sido defendida pela Procuradoria-Geral da República em parecer apresentado nos autos: "Interpretação em sentido diverso da inconstitucionalidade, de forma a admitir-se a limitação territorial prevista no dispositivo em causa, afetaria a efetividade do sistema de defesa coletiva, na contramão da tendência uniformizadora da função jurisdicional, de modo a incompatibilizar-se com o ordenamento jurídico constitucional".

Para o ministro relator Alexandre de Moraes, não é possível compatibilizar a restrição imposta pelo artigo 16 com a redação conferida pela Lei 9.494/1997 (conversão da MP 1.570-5), com a consagração constitucional da ação civil pública como instrumento de garantia dos direitos fundamentais de terceira geração. Com base nessa premissa, o relator decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 16, com efeitos repristinatórios, e, ao fim do voto, teceu considerações a respeito das críticas direcionadas pelos defensores da constitucionalidade do dispositivo. Nesse sentido, defendeu a necessidade de aplicação escorreita do sistema de definição de competência, a fim de impedir a escolha de juízos aleatórios (forum shopping) — devendo-se observar o artigo 93, II, do CDC; e ponderou que, fixada a competência, deve haver prevenção do juízo que primeiro conhecer da matéria entre os juízes competentes. 

Proferiram voto acompanhando integralmente o relator o ministro Gilmar Mendes, o ministro Ricardo Lewandowski, a ministra Rosa Weber, a ministra Carmem Lucia e o ministro Luiz Fux. Os ministros Edson Fachin e Nunes Marques acompanharam o relator apenas na declaração da inconstitucionalidade da atual redação do artigo 16 da LACP, divergindo quanto às demais teses relativas à prevenção e à competência. O ministro Marco Aurélio de Melo divergiu dos demais, restando vencido, tendo votado pela constitucionalidade do dispositivo. Os ministros Luis Roberto Barroso e Dias Toffoli declararam-se, respectivamente, suspeito e impedido e, por isso, não participaram do julgamento. 

Diante de tamanha discussão, apesar de todos os prós e contras, a expectativa é de que a decisão do Supremo Tribunal Federal pacifique o debate sobre o tema.

 

[1] Recurso Especial 1243887/PR, em sede de recurso repetitivo afetado aos temas 480 e 481, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão.

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