Observatório Constitucional

Como defender a jurisdição (constitucional) do realismo predatório?

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17 de abril de 2021, 8h02

Cada vez mais o protagonismo do Judiciário se acentua. Há (ainda) Direito legislado ou o que temos é o que a jurisprudência diz que o Direito legislado é? Será que o que temos não é aquilo que o professor alemão Mathias Jestaedt chama de positivismo jurisprudencialista [1]? O Direito legislado vale enquanto Direito, ou vale  apenas e tão somente  aquilo-que-o-Judiciário-diz-ser-o-Direito-legislado?

Spacca
Vou tentar traçar uma linha do tempo brasileiro sobre isso. Desde o dia seguinte à promulgação da CF/88 — fiz meu primeiro controle difuso no dia 6 de outubro —, venho lutando dia a dia pela preservação do grau de autonomia do Direito minimamente necessário para que os predadores externos e internos não façam soçobrar o Direito legislado, desde que, é claro, esteja em conformidade com a Constituição.

Por isso, tenho insistido nos seguintes pontos: Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais etc. Só que essas, depois que o Direito está posto  nessa nova perspectiva (paradigma do Estado democrático de Direito) —, não podem vir a corrigi-lo. Esse é o busílis. A moral e a política e a economia ajudam a construir o império do direito. Uma vez que ele está posto, é o Direito que filtra e institucionaliza os juízos da esfera moral, econômica, política. Não o contrário. E é isso que faz um Estado de Direito ser… um Estado de Direito.

Face ao predomínio, anterior à Constituição, de um formalismo sustentado no positivismo legalista (clássico)  que, na época, servia a um status quo , os primeiros anos de vigência da CF foram palco de uma invasão de posturas, teses e teorias que visavam a matar o velho inimigo  imaginário ou não  até então identificado: o juiz boca da lei, que representava, no imaginário jurídico, o positivismo que atravessava o século 19 e ingressara no século 20. Registre-se, todavia, ser de difícil verificação o aludido formalismo, uma vez que, na cotidianidade das práticas jurídicas e na própria doutrina, esse fenômeno sempre foi de difícil detecção. Alguns indícios podem ser vistos no conceito de interpretação professado por muitos autores, tais como "interpretar a lei é desvelar o unívoco sentido da norma" ou "interpretar a lei é dela retirar tudo o que contém". De todo modo, o lema passou a ser: "com a nova Constituição, morreu o juiz 'boca da lei' e nasceu o 'juiz dos princípios". Isso foi deletério. Plateias eram levantadas por palestrantes-professores que assim faziam essa vulgata jus teórica. O custo foi e continua sendo extremamente alto. Vem com juros de cartão de crédito. Porque não se fez teoria do Direito: nasceu o juiz dos princípios, mas não nasceu um adequado conceito de princípio, com adequada epistemologia e rigor teórico.

O grande "anúncio": "não há mais subsunção". "Sentença vem de 'sentire'", dizia-se aos quatro ventos. O novo tempo passara a ter como protagonista uma coisa chamada "valores", com o fundamento de que, superado o positivismo, agora tínhamos de argumentar para sustentar o juiz protagonista. Claro: "desamarrado" da subsunção (sic), como que a lembrar os voluntarismos da Escola do Direito Livre ou da Livre Investigação Cientifica, nossa doutrina passou a dar a alforria para a livre criação do Direito, como se a nova Constituição não apontasse exatamente para o contrário: agora precisávamos fazer cumpri-la, sem que isso significasse "ser positivista". (E quem estudar o positivismo verá que é justamente o contrário.)

Dito de outro modo, promulgada a Constituição, ocorreu uma corrida buscando mecanismos que implementassem um novo "juiz dos princípios" que pudesse "derrotar" o juiz "boca da lei", sem que a doutrina explicasse o que era isso — o princípio (isso é dito até hoje, quando ainda se repete o enunciado performativo de que "princípios são valores"[2].

O grave: parcela majoritária da doutrina mais apostou em seguir o que a jurisprudência passou a dizer; isto é, em vez de prescrever o sentido da normatividade da Constituição, contentou-se em legitimar o uso de um ainda embrionário ativismo que foi se forjando a partir do início dos anos 90. O realismo jurídico aí fez morada. Já morava, mas agora ganhara usucapião. O realismo, forma de pragmatismo facilitado, é deveras fascinante. Denunciado por tantos autores, que vão de Dworkin a Bernd Rüthers, que mostram a revolução secreta (na expressão de Rüthers, die heimliche Revolution) que esse fenômeno acarreta à legislação. No realismo, juízes, em vez se rule-responsives (leis, Constituição) preferem o fact-responsives. Portanto, primeiro decidem; depois fundamentam. A própria Constituição passa a ser secundária diante dos fact-responsives. No fundo, é a destruição ou a confissão da inutilidade da doutrina jurídica. Uma vitória pírrica de um realismo jurídico tosco, que sequer se anuncia como realismo.

Sigo. Sem dúvida, era sedutor ver determinados juízes e tribunais assumirem a vanguarda da implementação dos direitos constitucionais, coisa que não se via antes da Constituição. Não esqueçamos que, no ancien régime decorrente do Golpe Militar de 1964, os juristas críticos buscávamos um acionalismo judicial, a partir de teses alternativistas (baseadas na filosofia da linguagem ordinária e, basicamente — ainda que implicitamente —, nos realismos jurídicos escandinavo e norte-americano) e em teorias marxistas que descontruíam o establishment jurídico-político-dogmático. Só que, uma vez promulgada a Constituição, esse acionalismo poderia ser prejudicial  como acabou sendo — dependendo o modo como se colocava o papel do Judiciário.

É evidente que nos primeiros anos da CF/88 era necessário absorver esse novo paradigma constitucional e fazer a transição de um imaginário jurídico que desconhecia o significado de Constituição em direção ao Estado constitucional.

De minha parte, posso dizer que pratiquei o garantismo cotidianamente como modo de implementar a melhor jurisdição possível no contexto de um Judiciário refratário a inovações, a partir da minha atuação como promotor de Justiça (depois procurador) e com o desenvolvimento de minha posição sobre tudo isso (registrada, principalmente, no meu livro "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise", hoje em sua 11ª edição).

O garantismo foi, desde o início, um excelente mecanismo para implementar a força normativa da Constituição, aos moldes do que falavam Hesse, Canotilho e Ferrajoli (não esqueçamos que, depois do segundo pós-guerra, dois braços se formaram: o ceticismo e o formalismo).

Sigo. Para dizer que já em 1990 eu dizia que garantismo era forma de fazer democracia no e pelo Direito. Não se tratava de falar apenas de um garantismo penal, por óbvio. Anos depois, quando Canotilho disse que a Constituição Dirigente morrera, de imediato propus que adotássemos uma Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia, sobre a qual escrevi um livro e vários textos. De todo modo, confesso a enorme dificuldade para superar o acionalismo que buscávamos antes da CF/88 — afinal, o Estado era autoritário, e a estrutura jurídica era produto de um paradigma liberal-individualista.

É possível dizer também que já na metade dos anos 90 os sintomas do neoprotagonismo começaram a aparecer. Não no sentido de uma efetiva judicialização da política, mas, sim, da implementação de ativismos judiciais. Como tudo no Brasil chega tardiamente, sobrevinda a Constituição, em um primeiro momento foi necessário desmi(s)tificar as posturas formalistas ainda sustentadas no positivismo clássico, o tradicional juiz boca da lei e suas vulgatas.

Só que isso não estava claro no âmbito da dogmática jurídica. Aliás, até hoje, nas salas de aula, em parcela da doutrina e nas práticas jurisprudenciais, ainda se pensa que positivismo é igual a juiz boca da lei. Esquecem-se de que o próprio Kelsen foi um positivista pós-exegético e olvidam o que foi produzido pelos positivistas pós-hartianos, que apontaram suas baterias para longe do velho exegetismo — isso porque o positivismo da era pós-Hart já não obriga(va) os juízes. Só que os juristas brasileiros (e falo apenas destes para não criar incidentes internacionais) não se deram conta deste "pequeno" detalhe, porque continua(ra)m a pensar que positivismo é(ra) cumprir a letra da lei. Claro: até hoje, não se entendeu o positivismo como tese conceitual descritiva. Até hoje, pensa-se que estamos na França do século 19.

Talvez por causa desses detalhes nebulosos é que, em um segundo momento, parte da doutrina se enebriou com certas teorias argumentativas e com uma vulgata da ponderação — o que provocou um verdadeiro estado de natureza interpretativo —, tornando necessário, então, que os juristas críticos começássemos a elaborar críticas aos diversos voluntarismos.

Mas a gravidade chega ao patamar de dramaticidade, uma vez que o projeto do CPP de 2010 insistiu na tese de que o juiz tem livre apreciação da prova — o que se repetiu no projeto apresentado em 2018 na Câmara dos Deputados. Nesse sentido, parece grande o déficit da dogmática processual penal (assim como da dogmática processual civil, que continua a insistir na subjetivista e voluntarista tese do poder de livre convencimento, mesmo que o Código de 2015 tenha expulsado o "livre convencimento"; aliás, passado tanto tempo, ainda se diz – sem nenhum recurso à teoria do Direito  que o livre convencimento está justificado em face da "superação da prova tarifada"; como é que funcionava mesmo a prova tarifada no Brasil?). Sintomas graves, pois. Em vez do remédio, foram pelo veneno. Que só faz agravar os sintomas da doença.

E o protagonismo judicial foi se tornando cada dia mais intenso. As fragilidades do presidencialismo de coalizão (Abranches) foram ajudando a tornar o Judiciário cada vez mais proativo, passando a ditar "políticas" de forma ad hoc, sem a devida preocupação com os requisitos da judicialização, dentro da diferença entre esta e o ativismo. Já publiquei textos sobre judiciariocracia de coalizão, explicando que, do mesmo modo como o presidencialismo brasileiro é de coalizão, enredado em atendimentos de pleitos políticos ad hoc, circunstância que causa enormes problemas para a assim denominada "governabilidade", também o Supremo Tribunal Federal acaba ingressando perigosamente nesse terreno de (atendimento a) demandas de grupos. Até instalação de CPI tem de ser decidida pelo STF.

E também  e isso precisa ser dito — demandas provenientes da falta de resolução dos problemas das liberdades públicas no plano dos demais tribunais do país. Eles falham (por exemplo, o modo como os tribunais lidam com os Habeas Corpus) e tudo acaba no STF. Ele cresce. Mas sofre. E sangra na legitimidade. Assim como a presidência da República tem de atender aos pleitos dos partidos, o STF, durante esses mais de vinte anos, acabou por engendrar uma espécie de "julgamentos políticos". Daí os ataques. Daí como isso é autofágico.

Não somente a Suprema Corte, mas também as demais instâncias do Judiciário e do Ministério Público aos poucos foram institucionalizando uma disputa entre o Direito e a Moral, tendo dado ganho de causa aos argumentos morais: até mesmo nos casos em que a questão constitucional se apresentava como um easy case, houve já pronunciamentos invocando ponderações inexistentes. Criou-se, assim, uma via torta para levar artificialmente questões para exame da Suprema Corte. A ponderação (a sua vulgata) é-foi um meio para alavancar casos que deveriam ser resolvidos pelo estatuto epistemológico da lei ordinária. Isto é, criou-se, para além do pamprincipiologismo, um pa-(in)constitucionalismo. O paradoxo: as coisas colocadas nesses termos é que são positivismo. Pois separam Direito e Moral. Nada mais positivista do que aceitar que a Moral corrija o Direito. Porque não se preocupa com a decisão, porque entende que são dois "sistemas" diferentes e o juiz não está obrigado a aplicar a lei, porque a teoria é só descritiva. Logo…

Uma questão, portanto, que marca estes anos de Constituição pode ser resumida do seguinte modo: quando um magistrado diz que julga "conforme sua consciência" ou julga "conforme o justo", ou "primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento", ou ainda "julga conforme os clamores da sociedade", é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. Um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para "desnaturalizar". Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (cronofobia e factumfobia). O que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país. Daí a pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, melhor, ele é o que o Judiciário diz que ele é? Mas se isso é assim, se já se "naturalizou" essa concepção, por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito? Não seria melhor deixar que "quem decide é quem sabe"?

Esta é uma ode à jurisdição constitucional. Tentando preservá-la de seu maior predador, realismo (em suas variadas versões, retrôs ou não). Sempre fazemos jurisdição constitucional. O que não significa, como diz Otavio Luiz Rodrigues Jr., que não tenhamos de preservar o estatuto epistemológico do Direito ordinário, que não deve ser simplesmente colonizado ou apropriado por um pamprincipiologismo ou até um pam(in)constitucionalismo. Controle de constitucionalidade, jurisdição constitucional não dispensam parametricidade. Mesmo quando praticamos os clássicos critérios de antinomias, trabalhamos a partir de princípios e preceitos constitucionais, como igualdade, legalidade, isonomia etc. Venho desenvolvendo essas temáticas nestes mais de 30 anos de nossa Lei Maior a partir do que denominei, de há muito, de crítica hermenêutica do Direito. Ela é a matriz teórica que sustenta minhas reflexões. Por ela, devemos revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição e reconstruir a história institucional de cada instituto (lei, princípio etc.), descascando o fenômeno, para permitir que ele se mostre em sua inteireza hermenêutica. Sem a admissão de qualquer relativismo. Os conceitos jurídicos — e não é difícil perceber isso — vão sendo tomados por uma poluição semântica. Devem sempre sofrer uma desleitura. Ao lado disso, existe o perigo da anemia significativa (Warat). Essa é a tarefa da doutrina. Doutrina tem a tarefa de doutrinar. E realizar "constrangimentos epistemológicos" [3]Buscando sempre a preservação do necessário grau de autonomia do Direito.

Daí a necessidade de resistir e defender aquilo que o grande Elias Diaz chamava de "legalidade constitucional", que respeito em tantos livros e artigos. E o Observatório de Jurisdição Constitucional aqui se constitui em um importante espaço de resistência! Afinal, só modificamos um imaginário enraizado com muito debate, com boa teoria, com a sofisticação necessária para que esses constrangimentos enfim constranjam. Sigo no observatório. E com meu otimismo metodológico vivo e afiado.


[1] Essa discussão está em meu Dicionário de Hermenêutica – 50 verbetes fundamentais. 2ª. Ed. BH, Casa do Direito, 2020.

[2] Remeto o leitor para o verbete Valores, em meu Dicionário de Hermenêutica. BH. Casa do Direito, 2ª. Ed, 2020.

[3] Ver verbete no Dicionário, op. citt.

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