Opinião

Diálogo competitivo versus procedimento de manifestação de interesse

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15 de abril de 2021, 17h10

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou o "Édito de Roussillon" brasileiro, Lei nº 14.133/2021, já foi publicada e está vigente em nosso ordenamento jurídico. Entre as várias novidades que, inquestionavelmente, merecem ser analisadas nos próximos meses, o presente texto tem o intuito de contribuir com algumas distinções entre o diálogo competitivo, a nova modalidade licitatória e o procedimento de manifestação de interesse (PMI).

No que se refere ao diálogo competitivo, ao analisar o que dispõe o inciso XLII do artigo 6º da Lei 14.133/2021, verifica-se um conceito similar ao que foi pensado nas regulações do velho continente, berço da nova modalidade [1], como um instrumento empregado para a contratação de objetos que a Administração Pública não tem a aptidão necessária para definir e desenvolver, em outras palavras, objetos que não "comportam, a priori, soluções herméticas" [2]. Em apertada síntese, no diálogo competitivo, posteriormente à admissão dos licitantes por critério objetivos, são permitidas verdadeiras conversas entre o setor público e o setor privado, a fim de que se possa construir, de forma conjunta, a melhor solução ou as melhores soluções do problema exposto.

Aqui, impende destacar que a utilização do diálogo competitivo não pode se dar para qualquer contratação de obras, serviços e compras. Isso porque, da mesma forma que idealizado na Diretiva de 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, a Lei nº 14.133/2021 estabelece nos incisos I e II do artigo 32 as possibilidades de utilização do diálogo competitivo. O rito próprio da nova modalidade licitatória está descrito nos parágrafos do artigo 32 e deve ser fielmente analisado, a fim de guardar a lisura do procedimento e evitar o desvio de finalidade.

A título de curiosidade, registra-se que dos 26 vetos opostos pelo presidente da República dois envolvem dispositivos previstos no artigo 32 da Lei nº 14.133/2021. O primeiro deles diz respeito à possibilidade de utilização da nova ferramenta, quando os modos de disputa aberto e fechado não permitirem a apreciação adequada das variações entre propostas (artigo 32, inciso III, do Projeto de Lei nº 4.253/2020). O segundo se refere ao acompanhamento e monitoramento por órgão de controle externo do diálogo competitivo (artigo 32, inciso XII do §1º, do Projeto de Lei nº 4.253/2020). Em que pesem os vetos ainda possam ser revertidos pelo Congresso Nacional [3], é crível asseverar que ambas as disposições já vinham sendo fortemente criticadas pela doutrina pátria [4], razão pela qual é esperada a manutenção dos vetos.

O procedimento de manifestação de interesse (PMI), por sua vez, vem previsto no artigo 81 da Lei nº 14.133/2021 e, em suma, poder-se-ia compreender como um procedimento aberto que tem início com a publicação do edital de chamamento ao público, com o intuito de requerer "a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de regulamento" [5]. Ressalta-se que, com a previsão do PMI na nova lei, fica afastada sua vedação, que era estabelecida, na prática, pelo entendimento do artigo 9º, incisos I e II, da Lei nº 8.666/1993.

Quanto às distinções, fundamentalmente, pontua-se que o procedimento de manifestação de interesse se diferencia do diálogo competitivo por se tratar de um procedimento auxiliar à licitação (artigo 78, inciso III, da Lei nº 14.133/2021 [6]).

Nesse contexto, o procedimento de manifestação de interesse é visto como instrumento capaz de auxiliar o poder público, em etapa anterior ao procedimento licitatório, "destinado a divulgar o interesse da Administração em colher informações adicionais para a consolidação de ideias em torno do projeto que se deseja implantar" [7]. Em momento posterior à colheita de tais informações e a seleção do vencedor do procedimento, a Administração Pública fica livre para escolher se realizará o certame, não havendo qualquer garantia ou obrigatoriedade de sua realização, tratando-se, pois, de uma verdadeira sondagem do ente público ao setor privado.

Desse modo, diferentemente do que já se infere no início do diálogo competitivo, não há uma convicção de que a cooperação entre os setores resultará em um futuro contrato, o que, por vezes, desestimula a participação dos competidores privados [8]. Até porque estes somente serão ressarcidos dos seus dispêndios com os estudos, investigações, levantamentos e projetos pelo vencedor da licitação, a qual, ressalta-se, sequer é possível assegurar que acontecerá.

Apesar das sintéticas distinções assinaladas, entende-se que os dois instrumentos previstos na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos configuram diálogos público-privados formais, expressão designada a descrever "as comunicações realizadas entre agentes públicos e agentes econômicos cujas informações encontram-se devidamente registradas em processo administrativo  num cenário de potencial visibilidade" [9]. Nesse cenário, celebra-se tal alteração comportamental do legislador pátrio, pois se compreende que advém da constatação de que os diálogos são inevitáveis e indispensáveis à administração pública.

De todo modo, ressalta-se ainda que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos estabelece o acréscimo do artigo 337-O, no Título XI da Parte Especial do Código Penal, para que conste pena de reclusão de seis meses a três anos, para aqueles que frustrem o caráter competitivo ou a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública em procedimento de manifestação de interesse ou em diálogo competitivo [10]. Em conclusão, embora se examine nos dois institutos o reconhecimento de uma assimetria cognitiva por parte da Administração Pública [11], verifica-se que funcionam e trazem consequências distintas, devendo cada qual ter seu tratamento.

 


[1] HAAB, Augusto Schreiner. Uma análise histórica do diálogo competitivo. ConJur, [s.l.], 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/augusto-haab-analise-historica-dialogo-competitivo. Acesso: 09 abr. 2021.

[2] GARCIA, Flávio Amaral; MOREIRA, Egon Bockmann. A futura nova lei de licitações brasileira: seus principais desafios, analisados individualmente. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 18, n. 69, p. 39-73, p. 51, jan./mar. 2020. Disponível em: https://dspace.almg.gov.br/bitstream/11037/37469/1/Garcia%2C%20Fl%C3%A1vio%20Amaral.pdf. Acesso em: 08 abr. 2021.

[3] AGÊNCIA DA CÂMARA. Deputados querem rever alguns vetos à nova Lei de Licitações. 2021. [s.l.; s.n.]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/744833-deputados-querem-rever-alguns-vetos-a-nova-lei-de-licitacoes. Acesso em: 10 abr. 2021.

[4] AMORIM, Victor Aguiar Jardim de; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; PEDRA, Anderson. A hora e a vez da redação final do PL 4.253/2020 e a espada de Dâmocles: sanção versus veto. ONLL, [s.l.], 2021. Disponível em: http://www.novaleilicitacao.com.br/2021/03/16/a-hora-e-a-vez-da-redacao-final-do-pl-no-4-253-2020-e-a-espada-de-damocles-sancao-versus-veto/. Acesso em: 11 abr. 2021.

[5] BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 11 abr. 2021

[6] BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 11 abr. 2021

[7] LIMA, Cláudia Castello Branco. Uma análise comparativa entre o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) e o Diálogo Competitivo. 2014. Dissertação (Mestrado em Gestão e Políticas Públicas), p. 17. Fundação Getúlio Vargas Escola de Administração de Empresas de São Paulo. 2014. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/themes/Mirage2/pages/pdfjs/web/viewer.html?file=http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/12901/Trabalho%20individual.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 11 abr. 2021.

[8] Ibid, p. 19.

[9] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados: da opacidade à visibilidade na administração pública. Dissertação (Doutorado em Direito). 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, p.155, 2017. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4654174/mod_resource/content/0/Schieffler%20Tese-v25.pdf. Acesso em: 11 abr. 2021.

[10] BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 12 abr. 2021.

[11] CHAVES, Luiz Cláudio de Azevedo. Ensaios sobre o Projeto de Lei nº 1.292/95: um olhar sobre as inovações que serão trazidas pela nova lei de licitações e contratos. Ed. 5, Blog JML, [s.l.], 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=1498ab27bccce08d5afad141534278c7. Acesso em: 12 abr. 2021.

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