Opinião

Novo crime de stalking: perseguição anterior, lesão à saúde e risco de morte

Autor

  • Valéria Scarance

    é coordenadora do Núcleo de Gênero MPSP mestre e doutora em Processo Penal especializada em Vitimologia pela IUC- Dubrovnik professora da PUC-SP e autora de artigos e livros.

13 de abril de 2021, 17h10

Ao redor do mundo e também no Brasil mulheres sofrem perseguição de parceiros e ex-parceiros. Em regra, essa conduta ocorre no momento do término do relacionamento, ou em razão da rejeição de uma proposta amorosa.

Embora mulheres e homens possam sofrer perseguição, a maior incidência do crime envolve vítimas mulheres.

Pesquisa realizada pelo National Violence Against Women (NVAW) com oito mil mulheres e oito mil homens americanos encontrou que 1% das mulheres e 0,4% dos homens haviam sofrido essa perseguição no último ano. Entre as vítimas mulheres, 62% dos perseguidores eram parceiros ou ex-parceiros e 43% das condutas ocorreram após o término do relacionamento [1].

Stalking pressupõe uma conduta reiterada (no mínimo, dois atos), não consentida pela vítima e apta a causar medo ou constrangimento. Esse crime "inclui repetidas condutas (duas ou mais) de física ou visual aproximação, comunicação não consensual, verbal, escrita, ou por meio de ameaças que podem causar medo em uma pessoa razoável" (Tijaden & Thoennes, 1998) [2].

No nosso país, a conduta foi tipificada no último dia 31 como "perseguição" e pressupõe uma conduta reiterada que provoque medo na vítima (ameaça à integridade física ou psicológica) ou atinja sua capacidade de locomoção, liberdade ou privacidade (artigo 147-A, CP). A pena de seis meses a dois anos reclusão é aumentada de metade se a vítima for criança, adolescente, pessoa idosa, mulher em razão da condição do sexo feminino, pelo concurso de pessoas ou emprego de arma (artigo 147-A, § 1º, CP).

A nova lei revogou expressamente o artigo 65 da Lei das Contravenções Penais, o que tem gerado inúmeras controvérsias. Tem prevalecido o entendimento de que essa revogação não importa em abolitio criminis para condutas que hoje estão abarcadas pelo tipo penal do artigo 147-A do CP como um fato mais grave. Isso porque o legislador não considerou um insignificante penal a perturbação reiterada à tranquilidade, mas, sim, elevou essa conduta à categoria de crime.

Rogério Sanches Cunha salienta [3]:

"Havia quem sustentasse que a própria contravenção penal, em qualquer circunstância, tinha como característica a reiteração de ações, pois um ato isolado não seria capaz de realmente importunar alguém ou de perturbar-lhe o sossego. As condutas que, praticadas reiteradamente, se revestiram das demais características do artigo 147-A sem dúvida continuam puníveis em razão do princípio da continuidade normativo-típica, modificando-se apenas a forma de punição. Nesse caso, deve ser respeitada a pena anterior, pois a atual, mais severa, é irretroativa".

Na mesma linha de entendimento, Alice Bianchini e Thiago Pierobom de Ávila [4]:

"A nova lei, ao tempo em que alargou o âmbito qualitativo (uma perseguição que gere ataques à liberdade, não apenas à tranquilidade), exigiu uma intensidade quantitativa maior (não basta um único episódio, é necessário que seja reiteradamente). Portanto, como já dito, para as condutas antigas de perturbação da tranquilidade que foram praticadas de forma reiterada, com acinte e motivo reprovável, e que tenham gerado uma perturbação da esfera de liberdade ou privacidade da vítima, não há que se falar em abolitio criminis".

Interessante questionamento diz respeito às condutas que se iniciaram antes do tipo penal do artigo 147-A do CP e permaneceram após sua vigência:

É possível considerar os atos anteriores de perturbação da tranquilidade como integrantes da conduta causal do artigo 147-A do CP?

Pensamos que sim.

Supondo, por exemplo, que um perseguidor contumaz tenha seguido a vítima por meses e, após a vigência do novo tipo, tenha seguido a vítima ao menos uma vez. Essa conduta, que configurava perturbação à tranquilidade e não foi abolida da legislação (nos termos acima expostos), soma-se à conduta posterior para configurar a reiteração necessária à caracterização do tipo penal.

Por se tratar de uma conduta que se alonga no tempo, em razão da reiteração, tem aplicação a Súmula 711 do STF:

"Súmula 711
A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência".

Além do crime de perseguição, responderá o agente pela violência praticada contra a vítima em concurso formal impróprio com aplicação cumulativa das penas (artigo 70, parte final, CP). Ainda que a violência não importe em marcas físicas, a conduta de perseguição pode gerar danos à saúde da vítima. É, aliás, o que ocorre com frequência.

Estudos apontam que vítimas de stalking sofrem impactos em sua saúde física e mental, por vezes tão severos que as impedem de trabalhar, estudar e praticar atos rotineiros.

Na Escócia, estudo realizado por Katy Proctor, professora de Criminologia da Universidade Glasgow Caledonian, revelou que a perseguição pode provocar danos psicológicos duradouros para as vítimas. Segundo a pesquisa, as vítimas de stalking "tiveram um impacto em todos os aspectos de suas vidas, desde sua saúde física e mental até o emprego e a vida social" . Como consequências mais comuns, aponta que "as vítimas relataram tentativas de suicídio, ansiedade, depressão, perda de confiança e sentimento de isolamento. Alguns mudaram de emprego e mudaram de casa" [5].

Se a conduta de perseguição causar danos à saúde psicológica da vítima que a impeçam de trabalhar, estudar e praticar atividades rotineiras por mais de 30 dias, haverá crime de lesão corporal de natureza grave em concurso com o crime de perseguição (artigo 129, § 1º, I, CP, e artigo 147-A, CP, c.c. artigo 70, parte final, CP).

Esse período deve ser aferido segundo critério funcional, tendo-se em conta não só o trabalho, mas também as atividades familiares, sociais da vítima e até atividades esportivas:

"Qualquer ocupação de natureza habitual está abrangida no inciso I. Assim, aquele que fica impedido de trabalhar por um período superior a 30 dias se amolda à modalidade qualificada de lesão corporal, da mesma forma que aquele que deixa de praticar suas atividades esportivas" [6].

Importante mencionar que a conduta de stalking, além de configurar tipo penal, constitui um indicador de risco de morte.

Em Portugal, o Manual de Avaliação e Gestão de Risco em rede, da Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV) menciona esse comportamento de perseguição como um grave fator de risco que aumenta em cinco vezes o risco de morte de mulheres[7].

No Brasil, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, aprovado pela Resolução Conjunta CNJ e CNMP nº 05, prevê diversas condutas que podem ser identificadas com o stalking:

"Bloco 1 — Sobre o histórico da violência
6. O(A) agressor(a) já teve algum destes comportamentos?
( ) disse algo parecido com a frase: 'se não for minha, não será de mais ninguém'
( ) perturbou, perseguiu ou vigiou você nos locais em que frequenta
( ) proibiu você de visitar familiares ou amigos
( ) proibiu você de trabalhar ou estudar
( ) fez telefonemas, enviou mensagens pelo celular ou e-mails de forma insistente
( ) impediu você de ter acesso a dinheiro, conta bancária ou outros bens (como documentos pessoais, carro)
( ) teve outros comportamentos de ciúme excessivo e de controle sobre você
( ) nenhum dos comportamentos acima listados" (grifos da autora).

A perseguição, ainda que não reiterada, configura violência psicológica contra a mulher prevista na Lei Maria da Penha e autoriza o deferimento de medidas protetivas para sua proteção.

Apesar de alguma resistência no universo jurídico, é certo que a medida protetiva não está vinculada à existência de um BO, ou mesmo de um procedimento criminal.

Trata-se de interpretação autêntica em razão do disposto no artigo 24-A, §1º, da Lei Maria da Penha: "A configuração do crime (de descumprimento de medidas protetivas) independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas". Assim, a própria lei dispõe que há medidas civis, deferidas por um juiz civil, fazendo cair por terra a alegação de que as medidas urgentes devem estar vinculadas a um procedimento criminal.

Nos tribunais superiores também há decisões pela autonomia das medidas protetivas:

"2019-STF Agravo regimental em habeas corpus. 2. Vigência alongada das medidas protetivas. Lei Maria da Penha. Desnecessidade de processo penal ou cível. 3. Medidas que acautelam a ofendida e não o processo. 4. Agravo a que se nega provimento". (Ag. Reg. no Habeas Corpus nº 155187/MG, 2ª Turma do STF, Rel. Gilmar Mendes. j. 05.04.2019, unânime, DJe 16.04.2019 — grifo da autora)

"2018-STJ — A própria lei maria da penha não dá origem a dúvidas, de que as medidas protetivas não são acessórias de processos principais e nem a eles se vinculam. Assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou o mandado de segurança, não protegem processos, mas direitos fundamentais do indivíduo. São, portanto, medidas cautelares inominadas, que visam garantir direitos fundamentais e "coibir a violência" no âmbito das relações familiares, conforme preconiza a constituição federal (artigo 226, § 8º)". (DIAS. Maria Berenice. "A Lei Maria da Penha na justiça". 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 149 — grifos da autora). In casu, as medidas protetivas foram mantidas pelo Tribunal de origem, tendo em vista o seu descumprimento, o que não evidencia constrangimento ilegal. Recurso ordinário a que se nega provimento (Recurso em Habeas Corpus nº 87.613/MG (2017/0185001-5), STJ, Rel. Maria Thereza de Assis Moura. DJe 23.03.2018).

Em razão de todo o exposto e a título de primeiras considerações sobre a nova lei, pode-se concluir que:

1) Condutas anteriores de perturbação à tranquilidade remanescem como violência psicológica na Lei Maria da Penha e conferem à mulher o direito de proteção, ainda que não tenham correspondência típica;

2) Nesses casos, permanecem vigentes as medidas protetivas deferidas anteriormente como medidas civis, salvo expressa decisão em contrário;

3) A prática reiterada de perturbação à tranquilidade, anterior ao tipo penal do artigo 147-A CP, integra a reiteração de conduta exigida pelo novo crime;

4) Se a conduta de perseguição causar danos à saúde psicológica da vítima que a impeçam de trabalhar, estudar e praticar atividades rotineiras por mais de 30 dias, haverá crime de lesão corporal de natureza grave em concurso com o crime de perseguição (artigo 129, §1º, I, CP, e artigo 147-A, CP, c.c. artigo 70, parte final, CP).

Nosso país tardou a tipificar conduta tão relevante. Em outros países, desde a década de 90, difundiu-se o conceito de stalking como crime e fator de risco. Mas, como se diz, antes tarde do que nunca. Com o novo tipo, condutas que antes eram ignoradas, invisibilizadas ou até compreendidas como "coisas de namoro" ganham relevância penal e autorizam providências que podem resgatar pessoas e vidas. É mais um passo nesse longo — mas não infinito — caminho de enfrentamento à violência contra a mulher.

 


[1] Apud CAMPBELL, Jacquelyn et al. Stalking and Intimate Partner Feminicide. Disponível em: http://ncdsv.org/images/HomicideStudies_StalkingAndIntimatePartnerFemicide_11-1999.pdf f. Acesso em 5/4/2021.

[2] Op. cit.

[3] CUNHA, Rogério Sanches. Lei 14.132/21: Insere no Código Penal o artigo 147-A para tipificar o crime de perseguição. Disponível em:<https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/04/01/lei-14-13221-insere-no-codigo-penal-o-art-147-para-tipificar-o-crime-de-perseguicao/^>. Acesso em 6/4/2021.

[4] BIANCHINI, Alice; ÁVILA, Thiago Pierobom. A revogação do artigo 65 LCP pela Lei 14.132 criou uma abolitio criminis?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-05/opiniao-revogacao-artigo-65-lcp-criou-abolitio-criminis. Acesso em: 7/4/2021.

[5] GCU — Glasgow Caledonian University. Stalking victims reveal impact on mental health. Disponível em: <https://www.gcu.ac.uk/theuniversity/universitynews/2019-stalking-victims-reveal-impact-on-mental/>. Acesso em: 7/4/2021.

[6] GRECO, Rogério; DOUGLAS, William. Medicina Legal à luz do Direito Penal e do Direito Processual Penal. 14ª. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2019, p. 114.

[7] AMCV. Avaliação e Gestão de Risco em Rede: manual para profissionais, p. 60.

Autores

  • é coordenadora do Núcleo de Gênero MPSP, mestre e doutora em Processo Penal, especializada em Vitimologia pela IUC- Dubrovnik, professora da PUC-SP e autora de artigos e livros.

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