Opinião

O martelo da feiticeira e o Fogo de Chão: uma breve análise

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12 de abril de 2021, 10h35

Março é o mês no qual se comemora o Dia Internacional da Mulher. A data é uma referência à luta das mulheres por direitos como estudar, votar, ser votada, ter e administrar patrimônio, ocupar cargos públicos, enfim, pela conquista da cidadania, por muito tempo reservada exclusivamente aos homens. Trata-se de reconhecer a importância da luta coletiva das mulheres, ao longo de toda a modernidade e nas diversas partes do mundo, e não uma data comercial.

Acusadas de serem pouco racionais, frágeis, débeis, e ao mesmo tempo ardilosas, sedutoras e propensas ao pecado, as mulheres deveriam aceitar de bom grado a tutela masculina, como única saída para uma pretensa incapacidade inata de discernimento para gerir a própria existência. Foi exatamente em oposição a essa visão patriarcal, que reservava aos homens o domínio da esfera pública e da vida e dos corpos das mulheres, que elas se organizaram em diversos países do mundo. É essa luta de séculos que lembramos e comemoramos no dia 8 de março.

E foi exatamente no início de março, tão simbólico para a luta feminista, que foram publicados pela ConJur dois artigos de autoria do juiz do trabalho e professor Otávio Cavet, nos quais tece críticas à atuação de juízes do Trabalho que, sob a sua ótica, vêm se recusando a observar textos legais e precedentes vinculantes do STF, praticando "ativismo judicial" sob o pretexto de interpretar e aplicar as leis trabalhistas em conformidade com a Constituição Federal de 1988.

Não pretendemos aqui analisar questões legais e jurídicas, longe disso. Percebe-se que a forma de criticar do colega-colunista é representativa do machismo estrutural, logo, não vai aí nenhuma crítica pessoal, mas uma análise dos discursos presentes nas entrelinhas e dos valores defendidos pelo autor dos textos, a partir da perspectiva de duas mulheres, juízas do Trabalho.

No primeiro texto — "O 'caso MPT x churrascaria Fogo de Chão': R$ 17 milhões por cumprir a lei" [1] —, publicado no dia seguinte ao Dia Internacional da Mulher, o juiz faz críticas à sentença proferida por uma mulher, também juíza do Trabalho, em ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra a famosa churrascaria. Sem qualquer pudor, de forma irônica e debochada, o autor manifesta a sua integral discordância.

Inclusive, compara a juíza a uma assassina de filme de terror que surpreende suas vítimas na curva da esquina.  Em seguida, qualifica-a como voluntarista, acusa-a de causar transtornos psicológicos ao réu e de manipular todo o ordenamento jurídico conforme suas convicções pessoais. Por fim, afirma que, se prevalecerem decisões com iguais fundamentos, num futuro próximo, as pessoas morrerão de medo dos juízes. Nota-se que o autor assume o ponto de vista de pouco menos de meia dúzia de proprietários, os donos do negócio, em detrimento de mais de cem trabalhadoras e trabalhadores que perderam a fonte de sustento em meio a maior pandemia já vivenciada no país.

No segundo artigo — "A Lei de Gerson à luz do jeitinho brasileiro: o conceito de 'juiz Garrincha'" [2] —, as críticas são direcionadas a artigos escritos por homens, todos juízes do Trabalho. Apesar de discordar das conclusões dos colegas, desta vez o autor utiliza uma linguagem bem mais amena. Não há ironias e nem deboche.

Ao contrário, compara-os a duas lendas do futebol mundial, Garrincha e Maradona, mestres na arte do drible e exímios goleadores. Mais uma vez, o olhar do autor se volta à defesa dos empregadores e do "direito" de se beneficiarem da controversa decisão do STF sobre atualização dos créditos trabalhistas, em detrimento de trabalhadoras e trabalhadores que aguardam a recomposição de seu patrimônio, através do recebimento desses créditos.

Aqui já é possível notar que o Direito é sempre fruto de embates políticos, de certa visão de mundo e projeto social, embora essa dimensão fique, de certo modo, enevoada, obscurecida pelo pensamento hegemônico e pelo senso comum, que apresentam a aplicação das normas jurídicas, e a sua interpretação, como fruto de meras operações técnicas, apartadas das disputas sociais e, portanto, neutras em relação a elas. Porém, isso é uma grande ilusão, que normalmente serve para reforçar e manter os privilégios dos que já se beneficiam do sistema vigente.

O ministro Maurício Godinho Delgado [3] já constatou que todo o Direito, nele incluídas as leis e a intepretação que delas se faz, atende a fins preestabelecidos em determinado contexto histórico. Os diplomas jurídicos são resultado de processos políticos bem-sucedidos em determinado quadro sociopolítico. Todo o Direito, por isso, carrega consigo intenções, visões de mundo, na proporção em que incorpora e realiza um conjunto de valores socialmente considerados relevantes.

Portanto, a análise jurídica que se apresenta puramente racional e desinteressada talvez seja a mais ideológica de todas, pois busca esconder ou disfarçar o ponto do qual se parte e quais interesses se pretende enaltecer ou consolidar. A lei é composta de palavras, e estas sempre carregam ecos de outros significados que as colocam em movimento, que lhe dão sentido. Nesse processo de interpretar o que está escrito novas referências surgirão e subverterão nossas tentativas de criar mundos fixos e estáveis [4].

Consequentemente, o juiz não tem como ser "neutro", uma vez que é portador de determinada subjetividade inextricável ao mecanismo de interpretação das normas jurídicas. Como lembra Hermes Lima [5], "os dispositivos legais não se aplicam automaticamente", pois precisam ser interpretados e aplicados às situações concretas da vida. Ao interpretar esses signos, as palavras, adota-se uma das diversas possibilidades ordenatórias de determinado texto legal. E essas escolhas estão relacionadas aos valores e à subjetividade da pessoa que interpreta.

Voltando ao vocabulário utilizado no segundo artigo por nós citado, vemos conotação agradável e elogiosa: os juízes são estrelas que nascem, são mestres, que dão alegria ao povo com sua "arte", as decisões são espetáculos, a mão é santa. Aqui nosso colega-colunista está a dialogar exclusivamente com homens. A divergência jurídica é articulada em termos bem diferentes do primeiro artigo, onde analisa a visão jurídica de uma mulher. Essas escolhas não são aleatórias, refletem o ponto de vista do qual parte o autor.

A diferença de tratamento destinada à mulher e aos homens, embora todos tenham sido alvos de críticas pelo autor, evidencia a cultura do machista, patriarcal, que está entranhada na sociedade brasileira e, em especial, no Judiciário. A tática de desqualificar e desacreditar a fala de uma mulher que ocupa posição de destaque e cuja fala goza de credibilidade não é nova e remonta aos primórdios da modernidade.

Silvia Federici, no livro "O Calibã e a Bruxa" [6], conta como no início da modernidade a "caça às bruxas", perpetrada pela Inquisição através dos Autos da Fé, ajudou a consolidar o poder patriarcal, ao perseguir preferencialmente mulheres. Nesses tribunais as acusações e condenações se guiavam pelo livro "Martelo da Feiticeira" ("Malleus Maleficarum"), compilado pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, com a intenção de ajudar na identificação e punição das "bruxas" que eram, basicamente, todas as mulheres do Velho e do Novo Mundo que recusavam o papel submisso que lhes reservava o sistema patriarcal articulado a partir de então. Em suma, as mulheres que "atrapalhavam".

Considerado o martelo como símbolo de julgamento, vemos que as mulheres, que compunham a quase totalidade das acusadas e condenadas pelos inquisidores, eram as destinatárias desse rigoroso martelo. Aquelas que ousavam descumprir, de algum modo, o destino de submissão aos homens, eram severamente punidas. Fazia parte dessa punição exemplar a humilhação pública dessas mulheres, expostas nuas ou com instrumentos de tortura que lhes perfurava a "língua afiada" e até a eliminação física de muitas delas, em fogueiras, no fogo de chão.

A narrativa desse macabro código construiu a imagem perigosa das mulheres, seres que seriam lindos, se não fossem trágicos. Belas, sedutoras, fúteis, fofoqueiras, irracionais, mentirosas, ardilosas. O medo em relação a elas levou ao ódio, à misoginia, que justificou a perseguição, a inquirição sob tortura e a morte de milhares de mulheres apontadas como "feiticeiras" entre o século 15 e meados do século 19. Os Autos da Fé caíram em desuso, mas os ensinamentos e conceitos contidos no manual dos inquisidores ainda estão presentes na memória coletiva, na cultura e nos discursos.

As mulheres estão expostas ao julgamento, podem e devem ser julgadas pelos "donos da razão". Precisam de punição e correção. Considerado esse legado patriarcal, a mulher dominar o martelo e ousar julgar livremente conforme sua interpretação constitucional e convicção fundamentada, tal como a lei faculta aos homens, legítimos donos do "martelo", deve, de fato, mexer com o imaginário daqueles que se beneficiam da manutenção do machismo estrutural, um grande desconforto para quem está acostumado a ser o dono da palavra. Só esses deveriam poder dizer o significado das leis e não qualquer um(a) que é aprovado(a) no concurso de provas e títulos.

É o mesmo mecanismo que faz esses homens se sentirem autorizados a debochar, ridicularizar a concepção jurídica daquelas que ousaram tomar o martelo nas mãos. É possível identificar essa narrativa, ainda que de modo sutil e subjacente, na forma como foi feita a crítica à decisão proferida por uma juíza, no caso da churrascaria Fogo de Chão.

Os aspectos categorizados negativamente compõem o grupo do "falso belo", que seduz os desavisados: razões etéreas, premissas ilógicas e contraditórias, voluntarismo, aventura jurídica, princípios genéricos que serviriam para justificar toda e qualquer coisa. Um verdadeiro ardil que leva ao "trágico": comunismo e socialismo, filmes de terror, assassinato, insegurança jurídica. Heresias do tempo presente.

Em oposição a eles, nos aspectos ressaltados positivamente, vemos a disciplina, a razão desprovida de emoção para interpretar e aplicar a lei, a responsabilidade com as consequências da decisão, garantia da liberdade ilimitada na gestão do patrimônio privado, "graças a Deus".

Não é difícil relacionar essa narrativa com a visão presente no martelo das feiticeiras, ou seja, ao poder das "feiticeiras" de encobrir a "verdade" com uma falsa beleza para induzir ao "satanismo", o trágico.

Pode até parecer análise "técnica, fria e neutra", mas é puro desespero de quem se vê ameaçado em seus privilégios, garantidos pela lógica misógina, autoritária e egoísta.

 


[3] DELGADO, Maurício G. Curso de direito do trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012, p.57.

[4] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015, p. 25-26.

[5] LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 29. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p.150.

[6] São Paulo: Editora Elefante, 2017.

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