Opinião

É preciso desjudicializar ou descentralizar a execução civil

Autor

  • Juliana Melazzi Andrade

    é mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) pesquisadora do Grupo de Pesquisa Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo Civil–UERJ.

10 de abril de 2021, 15h10

A desjudicialização da execução consiste na retirada do processo de execução do Poder Judiciário para que outros sujeitos passem a ser responsáveis por auxiliar credores a satisfazer créditos contidos em títulos executivos. O objetivo precípuo dessa mudança é "desafogar" o Judiciário, haja vista a alta carga de processos executivos em trâmite por longos anos, e tornar a execução mais efetiva e eficiente para credores e devedores [1].

O tema da desjudicialização da execução vem se tornando mais comum nos debates jurídicos. Desde o início da pandemia da Covid-19, temos observado diversas lives e congressos virtuais sobre o tema, acompanhados de importantes contribuições e sugestões ao projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional (PL 6.204/2019).

Fato é que essas propostas em palestras, somadas a poucas reflexões teóricas mais elaboradas, evoluíram para que a desjudicialização da execução se converta em uma possibilidade real no médio prazo. o que exige a elaboração de propostas sólidas pelos juristas a fim de evitar que a alta carga de processos executivos no Brasil não seja apenas transposta para uma outra seara. Sem diagnosticar os problemas e sem propor soluções adequadas, desjudicializar poderia revelar-se mudar a ineficiência de lugar: do Judiciário para outra sede. É necessário pensar, portanto, como podemos efetivamente contribuir para a melhoria do dia a dia dos advogados, magistrados, promotores e procuradores.

O mencionado PL 6.204/2019 previu como responsável pela execução o tabelião de protestos, com o objetivo de retirar os processos de execução do Poder Judiciário.

Uma outra proposta foi por nós desenvolvida no Grupo de Pesquisa Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), coordenada pelo professor Antonio Cabral, com a elaboração de um anteprojeto de lei sobre o tema [2].

A proposta do anteprojeto da Uerj é no sentido de que o processo de execução seja iniciado perante o juiz, que exercerá uma cognição inicial para certificar se estão presentes os requisitos para a caracterização do título executivo de modo a autorizar a prática dos atos executivos [3] [4]; determinar que se prove a implementação de termo ou condição que interferem na exigibilidade do título; converter a execução em procedimento comum ou monitório; ou extinguir o processo sem a resolução do mérito.

Em seguida, haveria uma delegação da competência para a prática de atos executivos a um agente de execução por meio de livre distribuição, o que se diferencia do artigo 6º do PL 6.204/2019, que prevê que os títulos executivos seriam apresentados diretamente ao tabelionato, com prévio protesto do título. No modelo do anteprojeto da Uerj, portanto, o processo seguiria como um processo judicial normal, com número do CNJ, mas a condução dos atos executivos se daria por um agente de execução, sob supervisão do juiz. Há, assim, uma verdadeira descentralização da execução, sem que haja propriamente exclusão do juiz (descentralização sem desjudicialização, portanto).

De fato, pela óptica de uma execução conduzida por sujeitos externos ao Judiciário, muito se discute se a execução deveria ser conduzida por agentes públicos ou por agentes privados. Os formatos já existentes em outros países variam, havendo modelos em que órgãos administrativos públicos conduzem a execução, como Finlândia, Suécia, Polônia e Suíça; modelos em que são profissionais liberais, como Macedônia, Lituânia, Letônia, Portugal, Bélgica, Eslováquia, Holanda, França; e modelos mistos, como Ucrânia, Albânia, Bulgária e Cazaquistão.

Nesse sentido, já defendemos que a condução da execução pode se dar por agentes privados, o que não parece tão estranho à realidade brasileira. Temos, por exemplo, o administrador judicial na recuperação judicial e falência, que é um agente privado que efetivamente conduz o processo junto ao juiz. O administrador judicial atua desde o início da recuperação judicial e falência até o término do procedimento, sobretudo como responsável pela consolidação do quadro-geral de credores após a apresentação das habilitações, divergências e impugnações, mas também ao auxiliar na prática de outros atos. Inclusive, o administrador judicial adquiriu novas e importantes funções com a Lei nº 14.112.2020, como estímulo a autocomposição e resposta a ofícios e solicitações de outros juízos e órgãos públicos sem a intermediação do juiz (artigo 22, I, "j" e "m", da Lei nº 11.101/05).

Mas o CPC também prevê agentes privados para atuação pontual, como se vê na nomeação de um administrador, em processos de execução, quando há penhora de quotas e ações de sociedades empresárias (artigo 861, §3º, do CPC), de estabelecimento (artigo 862 do CPC), de percentual de faturamento de empresa (artigo 886, §2º, do CPC) ou de frutos e rendimentos de coisa móvel ou imóvel (artigo 868 do CPC),

Assim, admite-se no ordenamento jurídico brasileiro, sem maiores discussões, a atuação de agentes privados auxiliando o Poder Judiciário, com exigências de qualificação e controle sobre quem exercerá tais funções, como no caso do administrador judicial, pois deverá ser profissional "idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada" (artigo 21 da Lei nº 11.101/05), na mesma linha do que viemos defendendo em relação aos agentes de execução.

Na verdade, seja como agentes públicos externos ao Judiciário, seja como agentes privados ou profissionais liberais delegatários de uma função pública, deve ser buscado um modelo que melhor atenda às necessidades do processo civil brasileiro.

Nesse sentido, é importante termos um processo de execução efetivo, sendo absolutamente fundamental que o agente de execução tenha acesso a uma base de dados de bens do devedor  até mesmo para que se saiba se vale a pena prosseguir na execução , a fim de evitar que os processos de execução continuem sendo um encadeamento de tentativas frustradas de localizar e penhorar bens, sem que previamente se tenha certeza sobre a sua solvência.

Ao nosso ver, parece ser mais simples a implementação de um modelo em que continuemos com os processos judiciais, principalmente por hoje termos a maior parte dos processos eletrônicos, de modo que teríamos uma plataforma digital única (CNJ) com acesso igualitário pelas partes, juiz e agente de execução [5].

Na prática, o processo seria constituído e ganharia número no Poder Judiciário, e se seguiria a "abertura da conclusão" ao agente de execução, em vez do juiz, para a prática da maior parte dos atos processuais.

A manutenção de um único sistema eletrônico até mesmo facilitaria a supervisão judicial sobre a atuação do agente de execução. Já haveria um juízo para o qual distribuído o processo, caso fosse necessário que o juiz fosse chamado a decidir alguma impugnação dos atos praticados pelo agende de execução.

Além disso, seguindo o modelo proposto pelo anteprojeto da Uerj, o processo de execução continuaria a abranger e a dar um tratamento uniforme a todos os devedores, com exceção, é claro, da execução concursal regida pela Lei nº 11.101/05, o que não ocorre no PL 6.204/2019, que faz expressa ressalva a participação de incapaz, condenado preso ou internado, pessoas jurídicas de direito público, massa falida e insolvente civil.

Da mesma forma, a proposta do anteprojeto continuaria a abranger todas as obrigações, e não apenas a obrigação de pagar quantia líquida, certa, exigível, como consta no artigo 6º do PL ora em tramitação no Congresso Nacional.

Acrescente-se que entendemos ser impossível retirar por completo o processo de execução do Poder Judiciário. Embora desejável delegar a um agente de execução a prática concreta de atos executivos, inevitavelmente surgirão impugnações e embargos que deverão ser decididos pelo magistrado, lembrando ainda a impossibilidade de eliminar por completo as competências executivas do juiz para decretação de prisão civil do devedor de alimentos, sem falar nos questionamentos que podem surgir sobre a possibilidade de um agente de execução decidir pela implementação de medidas executivas atípicas (artigos 139, IV, 536 e 537 do CPC). Daí parecer ser mais correto falar-se em descentralização, e não propriamente desjudicialização.

De todo modo, um ponto que todos concordam é que o aprimoramento da execução civil, a fim de atribuir-lhe mais eficiência, deve estar entre as preocupações mais urgentes do legislador. A questão a ser debatida, nos próximos anos, é o modelo mais adequado ao Brasil, se um formato de maior exclusão dos juízes ou um modelo de descentralização e supervisão judicial.

 


[1] Sobre o tema no Brasil, por todos: RIBEIRO, Flávia Pereira. Desjudicialização da execução civil. 2. ed., Curitiba: Juruá, 2019.

[3] O anteprojeto teve como ponto de partida muitas das sugestões desenvolvidas pela autora deste artigo publicadas em: ANDRADE, Juliana Melazzi. A delegação do exercício da competência no processo executivo brasileiro. Revista de Processo, vol. 296, out./2019, p. 111-147; ANDRADE, Juliana Melazzi. A condução do processo de execução por agentes privados. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de; RIBEIRO, Flávia Pereira. Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020, p. 545-470. As ideias desenvolvidas nesses artigos constaram em Parecer do Conselho Federal da OAB sobre o PL 6.204/2019 e tiveram como importante referência teórica o tema da delegação de competências desenvolvido por Antonio Cabral em sua tese de titularidade na UERJ, recentemente publicada como livro: CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competência no Processo Civil. São Paulo: RT, 2021.

[4] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: RT, 2017, p. 191-192.

[5] Essa foi uma das sugestões feitas pelo professor Miguel Teixeira de Souza (Universidade de Lisboa) ao comentar o anteprojeto em discussão na academia.edu.

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    é mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora do Grupo de Pesquisa Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo Civil–UERJ.

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