Opinião

Visitar a história, assumir o erro, permitir o futuro

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10 de abril de 2021, 14h50

O Brasil tem história relativamente recente. Aqui instituições com cem ou duzentos anos são raras. A faculdade de Direito do Largo São Francisco está perto do seu bicentenário. Seu Centro Acadêmico, o nosso XI, tem pouco mais de um século. Neste tempo há feitos e conquistas que, com razão, são lembrados e reverenciados. Mas há páginas tristes que devem ser iluminadas, ainda que nos envergonhem. Nenhuma nação, grupo ou instituição está infenso a ter momentos lamentáveis

Pesquisa da historiadora Suzane Jardim coloca luz sobre uma passagem desditosa das Arcadas. Mostra como, no começo do século passado, o professor Amancio de Carvalho, médico e Catedrático de Medicina Legal, fez um experimento de embalsamamento do cadáver humano da cidadã Jacinta Maria de Santana, que falecera nas ruas dias antes. O experimento, ao que parece, não teve relevo ou reconhecimento científico. Mas dele resultou que o cadáver conservado foi mantido por quase três décadas na Faculdade, sendo usado para “ilustrar” aulas de medicina legal.

Mais grave, ao longo do tempo o corpo de Jacinta foi constantemente desrespeitado por gerações de alunos. Utilizado em trotes e “brincadeiras” acadêmicas, algumas sob auspícios do Centro Acadêmico.

Importa menos ser um fato ocorrido faz mais de 120 anos. Relevante é que o episódio aponta desrespeito ao corpo de um ser humano e também o viés racista fortíssimo naquela sociedade (que perdura, infelizmente, ainda) recém saída formalmente da escravidão. Jacinta era negra, pobre e mulher. Foi desrespeitada em sua dignidade em vida e mesmo após a sua morte.

O fato não diminui a relevância dos abolicionistas, democratas, garantistas, transformadores, que passaram pelas Arcadas ao longo destes séculos. Nem torna o Largo São Francisco menos importante para todas as lutas democráticas e emancipatórias do país. também é fundamental para lembrarmos que falhamos muito no passado e temos páginas lamentáveis em nossa história.

Até o final do século passado, o trote aos calouros lembrava rituais medievais. Ainda nos anos noventa, inexistia sanitário feminino próximo à sala dos professores. Até tempo bem recente, ainda era comum professores proferirem comentários racistas e sexistas em sala de aula, sem repreensão. Alunos e alunas negras eram raríssimos até 2012. Isso vem mudando.

Vivemos páginas muito alvissareiras na última década. A entrada tardia da USP nas políticas de inclusão está transformando rapidamente o perfil racial, social e de origem geográfica dos nossos alunos. Alunos nos impelem a constantemente mudar, melhorar, transformar. Recentemente ampliamos as políticas de inclusão também para a pós graduação. Com isso, alteram-se as pautas, os interesses, o direito que aqui se ensina e produz.

Vivemos um contexto de diversidade inédito e entusiasmante. É urgente revisitarmos nossa história. Passagens pouco venturosas nos entristecem. Expô-las não nos fará menores. Sabemos de nossos méritos e de nossas desventuras. Olhar para quadras vexatórias, nos obriga a repensar o presente e a se comprometer com um futuro com menos erros. A Faculdade de Direito não tem só passado, nem se contenta em ser no presente a melhor do Brasil. Anima o futuro que estamos construindo.

Olhando o passado, mesmo a parte triste, corrigindo erros, acertando rumos, aprendendo com a diversidade e projetando dias de ainda maior orgulho. Em que Jacintas, Marias, L. Gamas, possam perfilar no panteão dos nossos ídolos e não num armário.

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