Opinião

A insuficiente virtualização do Judiciário brasileiro na crise da Covid-19

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8 de abril de 2021, 6h35

O final do ano de 2019 e todo o ano de 2020 foram desafiadores para todos os setores da sociedade, principalmente para a saúde da população mundial. Os países foram acometidos por uma pandemia causada pelo novo coronavírus, que trouxe várias mudanças no que diz respeito ao aspecto social da humanidade.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), já foram registrados mais de 120 milhões de casos de infecções causadas pela Covid-19. Sob esse viés, é possível mensurar a dimensão do problema e analisar como todos os setores da sociedade foram afetados pela forma de contágio, disseminação e possibilidades de contenção da doença.

Diante desse cenário, a Justiça brasileira precisou realizar boa parte de suas atividades através de sistemas eletrônicos, porém a existência de processos em autos físicos foi um dos empecilhos encontrados para o sucesso integral do novo formato de atuação, bem como a ausência de uniformidade de procedimentos dificultou o acesso à Justiça e mitigou o princípio do devido processo legal.

A informatização do Judiciário brasileiro se deu por meio da Lei nº 10.259/2001, porém, a sua efetividade ganhou uma nova perspectiva com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2005. Entretanto, apesar dos sistemas de processos eletrônicos estarem em vigor há mais de dez anos, ainda não há um padrão de utilização por todos os órgãos da justiça, cada estado utiliza um sistema diverso e ainda existe distribuição processual em autos físicos.

Para ratificar as alegações ora levantadas, pode-se verificar, através dos números divulgados pelo relatório do CNJ "Justiça em números 2020" [1], que, em 2019, do total de processos distribuídos, 10% foram em autos físicos e 13 tribunais ainda possuem menos de 90% do seu acervo eletrônico, entre eles: TJ-ES (21%), TJ-RS (23%), TJ-MG (31%), TJ-PA (38%), TJ-SP (53%), TJ-PE (62%), TJ-CE (79%), TJ-SC (84%); TRF-1 (37%), TRF-5 (86%), TM-SP (30%), TJM-MG (57%) e TRT 10 (83%). Assim, do total de processos em tramitação, o CNJ afirma que apenas "20% tramitam no PJE, 19% no SAJ, 9% no Projud, 7% no E-Proc, 2% no Themis, 17% em outros sistemas e 27% em autos físicos".

Com os dados acima mencionados, percebe-se que existe um grande déficit na tramitação dos processos por autos eletrônicos, porém, é possível afirmar que virtualizar 100% dos autos não é o principal fator para a atuação integral e satisfatória da Justiça durante a pandemia. Precisa-se levar em consideração que os diversos sistemas são os principais norteadores da falta de uniformidade e disseminação da atuação direcionada do judiciário. Cada sistema gera um andamento processual diferente, uma contagem de prazo diversa, locais de informações e guarda de arquivos completamente divergentes, e o advogado, como operador do Direito, ao buscar a prestação jurisdicional em várias esferas, seja ela estadual ou federal, precisa compreender os fluxos e diferentes formas de todos os sistemas existentes no Brasil. E é justamente esse tipo de conhecimento necessário que coloca em xeque o princípio constitucional do devido processo legal e dificulta a democratização do acesso à Justiça.   

Diante de tal realidade, restou prejudicada a atuação imediata do Judiciário em conformidade com os novos formatos impostos, assim o Conselho Nacional de Justiça, uniformizando o entendimento, editou a Resolução nº 313/19, a qual determinou a suspensão dos prazos processuais por aproximadamente 40 dias, assegurando os serviços essenciais através dos plantões extraordinários. Após o término do referido prazo, o CNJ passou a divulgar orientações a serem seguidas como o Ato Normativo nº 0004449-30.2020.2.00.0000, que permitiu e orientou os tribunais para a regulamentação do atendimento remoto e a Resolução nº 329/20, que instituiu as audiências por videoconferência e suas formas.

As referidas resoluções foram de suma importância para o regular andamento dos feitos, principalmente para o resgate da celeridade processual necessária e fundamental aos processos regidos pela Lei 9.099/95.

Porém, no que diz respeito à Resolução nº 329/20, nota-se a abertura de possibilidades e lacunas para a atuação dos tribunais, trazendo a falta de padronização e atuação diversificada das diferentes esferas do Judiciário e denotando a fragilidade e subsistência de direitos fortemente exercidos. Foi permitida a realização de audiências e sessões de julgamento por videoconferência através de diferentes aplicativos, a forma de solicitação foi instituída de maneira diferente em cada comarca, as intimações para a realização dos referidos atos virtuais passaram a ter formas mais abrangentes como cientificação por e-mail, telefonemas e até por aplicativos de mensagens.

Desse modo, é importante ressaltar as abrangências alcançadas pela resolução e concordar com a sua efetividade diante da situação eletrônica da Justiça brasileira e das necessidades sanitárias impostas pela Covid-19, possibilitando a efetivação do princípio do acesso à Justiça. Entretanto, acredita-se que as grandes abrangências colocaram em subsunção o princípio do devido processo legal e tornaram a atividade judiciária, em alguns locais, uma verdadeira incógnita ou até mesmo uma cansável corrida pela busca de informações e orientações de cada comarca judicial. Esse tipo de situação é reflexo de um Judiciário plural e pouco sistêmico e que ainda não detém de ferramentas adequadas para transformar a maior porcentagem da sua atuação em práticas virtualizadas.

Portanto, entender que o Judiciário precisa de paradigmas virtuais e padrão de atuação nada diverge para que a sua atuação seja frágil e passe a colocar em risco os princípios constitucionais estabelecidos. Ao revés, agregar ferramentas criadas para aperfeiçoar e possibilitar uma melhor atuação humana frente ao grande volume de demandas e as diversidades territoriais existentes é, no mínimo, necessário. Evolução tecnológica é preciso, porém, aliada à padronização nacional das ferramentas dispostas à prestação jurisdicional brasileira.

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