Tribuna da Defensoria

Uma análise constitucional e convencional da competência do juízo da custódia

Autor

  • Emerson de Paula Betta

    é defensor público titular do órgão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro junto à 2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu e pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP.

6 de abril de 2021, 8h02

O presente ensaio tem o objetivo fazer uma reflexão e analise inicial e não exauriente, acerca do campo e profundidade da competência do juízo da custódia (apresentação de presos) e sua possibilidade de analisar requerimentos libertários, para além de somente verificar a formalidade e legalidade do mandado de prisão em si, e a eventual existência de maus tratos por parte dos agentes de segurança pública no seu cumprimento.

Dada a exigência de síntese na apresentação dos artigos na presente plataforma, não iremos nos aprofundar nos critérios de fixação de competência, até porque a questão aqui posta em analise, sobrepõe-se a qualquer critério eleito em lei (como é o caso, em geral das regras definidoras de competência), eis que funda-se em normas de maior hierarquia, não limitando a tese aqui defendida. A analise aqui decorre de uma interpretação das normas constitucionais e convencionais, que estabelecem a nosso ver uma competência específica e ampla para os juízes da apresentação. 

Nada obstante, é bom frisar que critérios de fixação de competência, nada mais são do que normas feitas para organizar e entregar a melhor e mais efetiva prestação jurisdicional, que por si só é um direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, da CRFB/1988.

A questão surge de visualização de ordem prática no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde, após ordenada, por decisão do Supremo Tribunal Federal e regulamentada pelo CNJ, as apresentações dos presos decorrentes de mandados de prisões preventivas, temporárias, definitivas, recapturas e dívidas de pensões alimentícias, juízes atuantes no juízo de custódia têm se recusado a analisar alguns pleitos libertários (fundados em, por exemplo: ausência de contemporaneidade da decretação; ausência de requisito legal para decretação; conversão em prisão domiciliar etc.), ao fundamento da ausência de competência para reavaliar a decisão do juiz que expediu a ordem de prisão e/ou não serem competentes em razão da matéria.

Talvez, s.m.j, o fato de tal questão ainda não ter sido enfrentada, seja decorrente de que somente após mais de uma década da ratificação da CADH, e em relação às prisões por mandado, somente no presente ano, as audiências de apresentação dos presos por mandado, estarem sendo efetivadas.

Nada obstante as referidas prisões originarem-se de cumprimento de decisão de juízos diversos daquele o qual o custodiado é apresentado, considerando o valor maior a ser resguardado, qual seja, a liberdade de locomoção, e observados os ditames constitucionais e convencionais que servem de alicerce para o regramento e interpretação das normas infraconstitucionais que regem a matéria acerca da competência na hipótese ora em exame, verifica-se efetivamente a possibilidade do juízo da custódia analisar qualquer requerimento libertário desde que objetiva e/ou (sendo o caso) documentalmente viabilizado no ato processual.

Inicialmente cabe frisar que a presente ordem constitucional fundada em 5/10/1988 originou-se após longo período de autoritarismo estatal que vedava a efetiva observância e materialização das liberdades pessoais, dotando agora o Judiciário concretamente, tanto através do controle concentrado como também do controle difuso, de instrumentos e técnicas de interpretação, para efetivar os direitos fundamentais catalogados.

Já no seu artigo 1º, inciso III, a nossa Constituição Cidadã previu um dos, senão o principal, alicerces de observância obrigatória para a prática de qualquer ato, seja público, privado, judicial ou administrativo no trato social, a dignidade da pessoa humana.

Não se trata, diga-se logo de início, de trazer a baila este verdadeiro dogma constitucional banalizando-o, não. O que ser quer logo em entrada, é fazer observar, que o trato com o cidadão, quando em jogo sua liberdade, deve-se ter esta a frente de qualquer formalismo que não garanta efetiva e material implementação das garantias constitucionais e/ou convencionais.

Nesse diapasão é que o rol dos direitos e garantias fundamentais catalogados no artigo 5º da nossa Lei Maior prevê, entre outras, as seguintes garantias a preceituar a regra da liberdade:

"(…) Artigo 5º  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (…)".

Ainda, e de acordo com a jurisprudência da nossa Corte Constitucional, tem-se que a teor do previsto no artigo 5º §§§1º, 2º e 3º da Constituição, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais previstas em tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos não só têm aplicação imediata como gozam de caráter supralegal e portanto de observância obrigatória pelos atos normativos de menor hierarquia, seja lei complementar, ordinária ou atos administrativos.

E para o que aqui interessa traz-se a baila a seguinte garantia prevista na CADH (Decreto nº 678, de 6/11/1992):

"Artigo 7  Direito à liberdade pessoal:
5º Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo".

Na mesma linha é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 9.3)Decreto nº 592, de 6/7/1992:

"3º. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença".

Das garantias constitucionais e convencionais acima mencionadas, pode-se, em síntese, tirar a seguinte conclusão: todo cidadão preso, não importando a natureza e origem da detenção, tem o direito a ser levado perante um juiz, de forma rápida, para que, tomando ciência de sua prisão (artigo 5º LXII da CRFB/1988), se ateste a legalidade da restrição, bem como verificar a razoabilidade e proporcionalidade de sua manutenção e a possibilidade do restabelecimento de sua liberdade seja qual for o fundamento invocado.

Ou seja, para efetivar as garantias acima previstas, não pode o juízo, desde que devidamente comprovado, furtar-se a decidir acerca do requerimento feito pelo custodiado através de sua defesa técnica.

Outro não é o entendimento que se extrai da Reclamação nº 29.303, em que nossa Corte Constitucional assentou a obrigatoriedade da realização da audiência de apresentação independente da natureza e origem da prisão, fundando-se na nova redação do artigo 287 CPP trazida pela Lei 13.964/2019, bem como nos tratados e convenções acima expostas, destacando-se o seguinte trecho:

"(…)Essa realidade da audiência de custódia, como se vê, não se cinge à ambiência das pessoas presas em razão de flagrância, alcançando, como agora disposto no Código de Processo Penal, também os presos em decorrência de mandados de prisão temporária e preventiva. Aliás, as próprias normas internacionais que asseguram a realização de audiência de apresentação, a propósito, não fazem distinção a partir da modalidade prisional, considerando o que dispõem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Artigo 7.5) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 9.3). Tais normas se agasalham na cláusula de abertura do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal; (…)
Outra, a propósito, não foi a conclusão do Conselho Nacional de Justiça que, considerando o julgamento do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347-MC, editou a Resolução nº 213/2015, estabelecendo a necessidade de audiência de apresentação também às pessoas presas em decorrência de mandados de prisão cautelar ou definitiva: 'Artigo 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução. Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.' (…)".

Veja que a decisão do Supremo Tribunal Federal acima referenciada, na parte destacada que menciona a Resolução nº 213/2015 do CNJ, aponta o artigo 13, em que seu parágrafo único aduz que as pessoas presas em decorrência de mandados de prisão serão também levadas, em 24 horas, à presença do juiz que expediu a ordem de prisão ou, "nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local".

Veja que tal disposição normativa, de acordo com o STF, na interpretação da norma, previu expressamente que, a depender de como os tribunais locais organizarem e definirem, dentro de sua autonomia organizacional constitucionalmente prevista, qual juízo será responsável pela apresentação do preso, este será competente para a sua avaliação nos termos da garantia constitucional e convencional acima aduzida.

Ainda no que refere-se à Reclamação nº 29.303, colhe-se abaixo mais um trecho da decisão referenciada, em que demonstra de forma inequívoca a interpretação das normas constitucionais e convencionais que materializam o referido direito fundamental, não deixando dúvidas da efetiva competência do juízo ao que o preso é apresentado, para que examine qualquer pleito de liberdade, seja qual for o fundamento invocado:

"(…)A audiência de custódia, portanto, propicia, desde logo, que o juiz responsável pela ordem prisional avalie a persistência dos fundamentos que motivaram a sempre excepcional restrição ao direito de locomoção, bem assim a ocorrência de eventual tratamento desumano ou degradante, inclusive, em relação aos possíveis excessos na exposição da imagem do custodiado (perp walk) durante o cumprimento da ordem prisional. Não bastasse, a audiência de apresentação ou de custódia, seja qual for a modalidade de prisão, configura instrumento relevante para a pronta aferição de circunstâncias pessoais do preso, as quais podem desbordar do fato tido como ilícito e produzir repercussão na imposição ou no modo de implementação da medida menos gravosa. Enfatize-se, nesse contexto, que diversas condições pessoais, como gravidez, doenças graves, idade avançada, imprescindibilidade aos cuidados de terceiros, entre outros, constituem aspectos que devem ser prontamente examinados, na medida em que podem interferir, ou não, na manutenção da medida prisional (artigo 318, CPP). E esses aspectos, aliás, podem influenciar, a depender de cada caso, até mesmo as prisões de natureza penal (artigo 117, LEP). (…)".

E nem poderia ser de outra forma, pois o que está em jogo é a liberdade do cidadão, a qual é a regra no nosso ordenamento jurídico, sendo a prisão exceção, devendo, portanto, o juiz ao qual aquele é apresentado verificar de imediato a possibilidade e/ou necessidade de restabelecer sua livre locomoção.

Não há de se falar em vedação ao exame de requerimento de liberdade, seja por qual motivo for, se devidamente fundamentado e comprovado o direito, diante da argumentação de impossibilidade de revisão da decisão do juiz natural por ausência de competência.

Há, em nosso entender, efetiva competência, tanto material quanto funcional, do juízo da custódia, decorrente do que as normas constitucionais e convencionais asseguram, ter o preso o direito de o mais rápido possível ver analisado por um juiz investido de jurisdição seu requerimento de liberdade, seja qual for o fundamento. 

Uma suposta alegação de ofensa a norma constitucional do juiz natural prevista no artigo 5º XXXVII da Constituição da República não pode, a nosso ver, ser invocada pelo juiz ao qual o preso for apresentado (caso diverso do qual expediu a ordem de prisão) como fundamento da ausência de competência. Tratando-se também de direito e garantia constitucional, a garantia do juiz natural não pode ser invocada para negar a efetivação da liberdade do cidadão. Portanto nem se sustenta uma propensa colisão de normas constitucionais no caso.

Tal proceder, qual seja, retardar o exame de um direito alegado a momento posterior, esbarra nas garantias previstas no artigo 5º, incisos XXXV, LXII, LXV e LXVI da CRFB/1988, bem como faz letra morta todo o regramento previsto acerca da audiência de apresentação e seus objetivos.

Importante ainda mencionar para o que aqui se analisa que, quando se interpretam normas constitucionais, segundo a doutrina e jurisprudência das principais cortes constitucionais, não fugindo à regra o STF, devem ser usados os princípios e métodos de interpretação inerentes àquelas normas fundantes.

E no ponto sobreleva o princípio da máxima efetividade, que visa a extrair da norma eficiência e efetividade para a garantia lá assegurada, e no caso em analise com maior razão de ser, tendo em vista tratar-se de direito e garantia fundamental à liberdade.

Nessa ordem de fundamentos é que cremos verificar-se a efetiva e ampla competência e possibilidade do juízo da custódia, com juízes plenamente investidos de jurisdição, analisar e decidir os requerimentos libertários, seja qual for o fundamento.

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