Opinião

Eu, juíza Ruth Bader Ginsburg, respeitosamente, discordo

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30 de setembro de 2020, 17h11

A nova-iorquina, do Brooklyn, Ruth Bader Ginsburg, que nasceu entre a depressão e o new deal norte-americanos, e viveu para se tornar um dos mais relevantes membros da Suprema Corte dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século 21, saiu da vida, no último dia 18 de setembro, vítima de complicações de um câncer no pâncreas que parecera curar em 2009, para entrar na história. Saiu de cena como sempre viveu, isto é, suavemente.

Seu percurso de 27 anos pela Suprema Corte foi discreto, mas jamais irrelevante, pelo contrário. Desde 1993, quando assumiu um posto de juíza associada, esse tribunal vem sendo dirigido por juízes-presidentes de espectro político diverso do seu. Quando assumiu o cargo de juíza associada, o juiz-presidente dos EUA era William H. Rehnquist, nomeado pelo presidente Ronald Reagan; seu sucessor, e atual juiz-presidente, é John G. Roberts, nomeado pelo presidente George W. Bush, ambos do Partido Republicano. Ruth Ginsburg foi indicada por Bill Clinton, do Partido Democrata. Em um tribunal no qual é papel do juiz-presidente atribuir a redação de muitas das decisões aos juízes associados, essa circunstância é de enorme importância. Além disso, nos últimos anos, a Suprema Corte dos EUA tornou-se majoritariamente conservadora, campo com o qual Ruth B. Ginsburg não se identificava.

Outra razão para a discrição que caracterizou a passagem de Ruth B. Ginsburg pelo tribunal mais estudado do mundo foram suas características pessoais, de simpatia e coleguismo. Consta que seu melhor amigo, entre os membros da Suprema Corte, era Antonin Scalia, também já falecido e líder do campo originalista-conservador a partir de 2005. Foi também muito próxima de Sandra O’Connor, a grande figura da Suprema Corte dos EUA do começo do século 21, conforme registra o livro "Sisters in Law: How Sandra Day O’Connor and Ruth Bader Ginsburg Went to the Supreme Court and Changed the World", de Linda Hirshman (Nova Iorque: Harper, 2015).

Quando o juiz-presidente dos EUA é de orientação política diferente da sua e quando está na minoria, resta ao juiz associado redigir opiniões discordantes. Além disso, seu tema preferido era a igualdade de gênero, tema ao qual se dedicou durante a vida toda. Os casos mais notáveis de participação de Ruth Bader Ginsburg nesse campo, como juíza da Suprema Corte dos EUA, e do lado majoritário, foram United States v. Virginia, 518 U.S. 515 (1996), que discutiu a participação de mulheres em escola militar para homens no Estado da Virgínia, em que ela redigiu a opinião da corte, em uma decisão majoritária, para declarar a inconstitucionalidade da escola militar exclusivamente masculina, e Harris v. Forklift Systems, 510 U.S. 17 (1993), que discutiu os requisitos para se considerar um ambiente de trabalho sexualmente abusivo para as mulheres. Naquele redigiu a opinião majoritária, neste redigiu uma opinião concordante.

Quanto às opiniões discordantes, a juíza Ruth Bader Ginsburg redigiu-as, diversas vezes. O título desta modesta homenagem procura replicar como os juízes, na Suprema Corte dos EUA, manifestam suas opiniões discordantes na redação das decisões. No campo penal, destaco duas dessas discordâncias da eminente juíza Ruth Bader Ginsburg.

A primeira redigiu-a no caso Baze v. Rees, em que se abordou a questão da pena de morte. A Suprema Corte discutiu especificamente se, conforme a 8ª emenda à Constituição dos EUA (que proíbe punições cruéis e inusitadas), a pena de morte é um método cruel. Por mais estranho que isso pareça para nós, a jurisprudência pacífica da Suprema Corte dos EUA é de que a pena de morte não é, per se, um método inusitado, pois existia na Inglaterra ao tempo do descobrimento da América e é tradicional no Direito Penal norte-americano (McGautha v. California, 402 U.S. 183 (1971)). Conforme a jurisprudência da Suprema Corte, resta saber se ela é cruel.

Em Baze, os recorrentes procuraram demonstrar que a pena de morte por injeção letal, método adotado pelo estado do Kentucky, é cruel. A lei do Kentucky impõe a execução através de uma sequência de injeções: primeiro, o carrasco administra o anestésico tiopental sódico. Depois, injeta no executado brometo de pancurônio, substância que paralisa toda sua musculatura, menos o coração. Por fim, administra cloreto de potássio, que paralisa o coração e finaliza a execução. Os recorrentes levaram à corte relatos de extremo sofrimento para os réus que foram executados segundo essa metodologia, principalmente porque às vezes os anestésicos não são administrados em quantidade suficiente e a dor que eles demonstram, com a segunda e a terceira injeções, é excruciante.

Em decisão majoritária anunciada em abril de 2008, a Suprema Corte, negou a tese da crueldade do método de pena de morte do estado do Kentucky e confirmou a constitucionalidade da pena de morte, embora tenha reconhecido que em alguns casos os executados demonstraram padecer de muita dor. A maioria considerou que, não sendo o sofrimento o objetivo do método adotado pela legislação estadual, a pena não pode ser considerada cruel. A juíza associada Ruth B. Ginsburg apresentou uma opinião discordante, à qual se juntou o juiz associado David H. Souter. Nela, admitiu, em tese, a constitucionalidade da pena de morte do estado do Kentucky, mas considerou que o protocolo adotado não assegura que a primeira injeção anestesia, de fato, o executado e impede o sofrimento pelas demais injeções. Considerou insuficientes as garantias dadas pelos responsáveis pela dosagem dos medicamentos e votou por uma conversão do julgamento em diligência, para maiores esclarecimentos. Ficou vencida.

Em 2008, Ruth Ginsburg escreveu outra importante opinião discordante, em Herring v. United States, 555 U.S. 135 (2008), na qual a Suprema Corte relativizou a regra de exclusão de provas. No caso, Bennie Dean Herring, um ex-condenado, foi até o Departamento de Polícia do condado de Coffee, no estado de Alabama, para retirar seus pertences de um caminhão seu que se encontrava apreendido no seu pátio. O agente Mark Anderson, que já conhecia Herring, teve convicção de que este era procurado pela polícia. Pesquisou, então, em vários computadores, por um mandado de prisão em aberto em nome de Herring, sem sucesso. Ligou para o responsável pelos mandados de prisão do condado de Dale, que achou um mandado em aberto. Anderson prendeu, então, Herring e, ao revistá-lo, encontrou com ele metanfetamina e uma arma de fogo. Minutos depois, o oficial de Dale telefonou para Anderson, revelando que o mandado fora revogado meses antes, sem que o sistema tivesse sido atualizado. Herring tentou a supressão dessas provas e, tendo perdido, recorreu à Suprema Corte para exclui-las. A Suprema Corte negou a exclusão, considerando que "quando enganos policiais que levam a uma busca ilegal são o resultado de uma isolada e atenuada negligência, mais do que de um erro sistêmico ou uma despreocupada consideração com os requisitos constitucionais, a regra de exclusão não se aplica" (555 U.S. 135, 2008).

Com isso, ao introduzir o erro sistêmico ou despreocupada desconsideração pelas garantias constitucionais como requisitos para a aplicação da regra de exclusão de provas, a Suprema Corte mudou substancialmente a disciplina da matéria.

A juíza Ruth Bader Ginsburg escreveu uma opinião discordante:
"A regra de exclusão, é necessário sublinhar, frequentemente é o único remédio para reparar uma violação da 4ª emenda. O efeito dissuasório aqui compensa os custos que impõe? (…) À luz da importância primordial da manutenção acurada dos registros pelas forças de segurança, eu responderia que sim, e em seguida explicaria o porquê penso que Herring representa um sólido caso para a exclusão da prova. (…) Bancos eletrônicos de dados formam hoje o sistema nervoso central das operações contemporâneas das Justiça Criminal. Nos anos recentes, sua abrangência e influência expandiram dramaticamente. A polícia pode hoje acessar bancos de dados que incluem não somente o Centro Nacional de Informação Criminal (NCIC) mas também listas de observação de terroristas, o cadastro de candidatos a cargos públicos e vários bancos de dados comerciais. (…) Mais do que isso, diversos Estados estão rapidamente expandindo o compartilhamento de dados entre as jurisdições. (…) Como resultado, as forças policiais têm hoje a seu dispor um crescente suprimento de informações ao alcance de uma simples busca eletrônica. O risco de erro decorrente do manejo desses bancos de dados não é insignificante (…) Imprecisões em expansivas e interconectadas coleções de informação eletrônica levantam sérias preocupações para a liberdade individual. (…) Erros decorrentes da manutenção negligente desses dados que ameaçam a liberdade individual são suscetíveis de dissuasão pela regra de exclusão, e não podem ser remediados eficazmente por outros meios. E definitivamente não representam a oportunidade mais adequada para erodir ainda mais a regra de exclusão" (555 U.S. 135, 154-157, passim, 2008).

Difícil pensar em um tema mais atual e mais relevante, entre tantos que a juíza Ruth Bader Ginsburg, pequena e gigantesca, produziu em seus 27 anos de Suprema Corte dos EUA. Sua discreta, gentil e indelével participação nesse tribunal ainda suscitará muitas reflexões da comunidade jurídica.

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