Opinião

Direito ao esquecimento: a bola agora está com o Supremo Tribunal Federal

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  • Jeniffer Gomes

    é doutoranda e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora de Direito Civil sócia do escritório Galdino & Coelho Pimenta Takemi Ayoub Advogados.

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30 de setembro de 2020, 15h15

"Saio da vida para entrar na História" foi a frase escrita por Getúlio Vargas e se tornou uma das mais conhecidas do século XX no Brasil. Ao pensar na figura notória desse presidente da República, torna-se difícil imaginar uma limitação à divulgação de fatos que permitam a construção da cultura social e da memória de um povo. Insere-se, nesse cenário, o que se convencionou chamar de direito ao esquecimento.

O chamado direito ao esquecimento é oriundo de construção jurisprudencial, cuja matriz originária reside na Europa [1]. Não há consenso doutrinário acerca de sua conceituação, porém, inegável é o fato de que a alteração no modo como os indivíduos lidam com suas lembranças em uma realidade marcada por inovações tecnológicas foi determinante para a promoção desse direito [2]. O direito ao esquecimento consiste em um desdobramento dos direitos à vida privada e à intimidade, que possuem previsão na Constituição Federal. O Código Civil também faz menção ao direito personalíssimo à vida privada, mas é importante destacar que o rol dos direitos da personalidade na codificação civil é ilustrativo, e não taxativo [3]. Dessa forma, pode-se afirmar que o direito ao esquecimento possui o objetivo de proteger o desenvolvimento da identidade pessoal [4] daqueles que são relembrados por fatos pretéritos que não mais os caracterizam [5].   

O direito ao esquecimento, assim como o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de informação, integra o grupo dos chamados direitos fundamentais e não possui caráter absoluto. Dessa forma, há que se utilizar um remédio jurídico na hipótese comum de conflito entre esses direitos.

É possível identificar, atualmente, a existência de três correntes que se manifestam em relação ao conflito entre o direito à liberdade de informação ou de expressão e o direito ao esquecimento. A primeira posição se manifesta em prol da informação. Para os adeptos dessa corrente, em sua maioria representantes de entidades associadas à comunicação, não há o que se falar em direito ao esquecimento, uma vez não existe uma previsão expressa no ordenamento jurídico desse direito. A segunda posição se opõe à primeira. Seus adeptos sustentam que, além de existir, o direito ao esquecimento deve sempre preponderar. Há, ainda, a posição intermediária. Os defensores dessa teoria, baseados no entendimento acertado de que não há hierarquia prévia e abstrata entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de expressão, sustentam que a forma para solucionar o conflito é a aplicação do método de ponderação [6].

Todas essas correntes ficaram bem delineadas nos debates realizados em audiência pública promovida pelo ministro Dias Tofolli, em 2017, em razão da relevância do tema. A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário nº 1.010.606, que está pautado para julgamento nesta quarta-feira (30/9).

Trata-se do caso de Aída Curi, o qual remonta à década de 1950, especificamente o ano de 1958. A jovem Aída Curi foi lançada da cobertura de um prédio localizado na Avenida Atlântica, na orla de Copacabana, momentos depois de quase ter sido violentada sexualmente. Os irmãos da vítima foram procurados pela emissora TV Globo a fim de que consentissem com a divulgação da retratação do episódio trágico. Os irmãos não só não consentiram como também enviaram notificação extrajudicial com o escopo de impedir a encenação da "vida, morte e pós-morte" da irmã, fato que iria abrir feridas do passado.

Não obstante, a emissora divulgou o episódio. Os fins do programa com a divulgação da encenação não foram meramente informativos e históricos, pois se transmitiram cenas extremamente fortes, especialmente considerando o contexto de desconforto dos familiares em relação ao reavivamento desse evento. Mostrou-se não só o desespero dos irmãos e dos pais de Aída Curi com o homicídio, como também a reprodução do lançamento do corpo da jovem da cobertura de um prédio e, ao fim, a divulgação de uma foto original de Aída Curi estirada no chão com o corpo ensanguentado.

Diante disso, os irmãos de Aída Curi ajuizaram ação indenizatória a título de danos morais e materiais sofridos em decorrência da conduta da emissora TV Globo. Alegaram que os danos morais eram justificáveis pelo fato da dor de reviver o passado e os danos materiais, por outro lado, em virtude da exploração pela emissora da imagem de Aída Curi com o escopo de angariar lucros.

A 47a Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro julgou improcedentes os pedidos autorais. Tal decisão se manteve em sede de segunda instância na 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com a argumentação de que o caso de 1958 configura fato divulgado pela imprensa no passado e ainda é discutido e noticiado nos últimos 50 anos.

Os irmãos de Aída Curi interpuseram, assim, Recurso Especial — REsp nº 1.335.153-RJ —, cuja relatoria foi feita pelo ministro Luiz Felipe Salomão. De acordo com o ministro, o direito ao esquecimento não alcançaria o caso dos autos, uma vez que, com o passar das décadas, o acontecimento entrou para o domínio público e seria impraticável para a imprensa retratar o caso de Aída Curi sem Aída Curi. Segundo o ministro, não se verificou nesse caso artificiosidade ou abuso antecedente na cobertura do crime e, por isso, o caso concreto se insere nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos.

Nesse sentido, o relator asseverou que "na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um 'direito ao esquecimento', na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes". Dessa maneira, para o ministro, ao se ponderar o desconforto gerado pela lembrança e a liberdade de imprensa, mostra-se desproporcional o corte à liberdade de imprensa. Assim, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial.

Como supramencionado, os direitos fundamentais possuem o mesmo grau hierárquico [7]. Por essa razão, não faz sentido mensurar, no momento de ponderação em caso de colisão de direitos, a liberdade de expressão com uma posição preferencial. Em outros termos, deve-se utilizar a técnica jurídica da ponderação, a fim de se privilegiar no caso concreto o direito que mais responda à vontade constitucional.

É notório, portanto, que o tema do direito ao esquecimento ainda tem muito o que se desenvolver na doutrina e na jurisprudência, seja no que tange à sua conceituação, seja no que se refere à definição de parâmetros basilares para solução nos casos concretos de conflito entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de expressão ou qualquer outro direito que possua o mesmo nível hierárquico: direito fundamental. E agora a bola está com o STF.


[1] MOREIRA, Rodrigo Pereira; MEDEIROS, Jaqueline Souza. Direito ao Esquecimento: Entre a Sociedade da Informação e a Civilização do Espetáculo. In: Revista de Direito Privado, vol. 70, ano 17. São Paulo: RT, 2016, p. 72.

[2] COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento: a Scarlet Letter Digital. In: SCHREIBER, Anderson (Org.). Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 185.

[4] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.

[5] SCHREIBER, Anderson. Nossa Ordem Jurídica não Admite Proprietários do Passado. Consultor Jurídico, 12 jun. 2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jun-12/anderson-schreiber-nossas-leis-nao-admitem-proprietarios-passado).

[6] Sobre as três correntes do direito ao esquecimento, ver: SCHREIBER, Anderson. As Três Correntes do Direito ao Esquecimento. Jota, 18 jun. 2017. Disponível em: https://jota.info/artigos/as-tres-correntes-do-direito-ao-esquecimento-18062017.

[7] SCHREIBER, Anderson. Direito e Mídia. In: Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.

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