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Guerra à arraia-miúda: as desrazões do superencarceramento

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28 de setembro de 2020, 15h31

No conto “O Alienista”, de Machado de Assis, é narrada a história de Simão Bacamarte, ilustrado médico da vila de Itaguaí, que convencido da loucura dos habitantes daquele povoado vai encaminhando quase toda a população para tratamento no manicômio local (“Casa Verde”), e que, ao final da história, se autointerna diagnosticando a si próprio também possuidor da “loucura” carecedora de internação.

O conto me veio à cabeça, a propósito do julgamento no STJ do Habeas Corpus 596.603/SP, no qual o Tribunal fez passar ordem de natureza coletiva para beneficiar 1.018 homens e 82 mulheres condenados neste Estado, para permitir que esses pequenos traficantes possam descontar suas penas como dita a lei e a jurisprudência — a saber, no regime aberto — e não consoante a idiossincrasia do julgador [1].

O corajoso julgamento do STJ, capitaneado pelo ministro Rogério Schietti Cruz, já nasceu histórico antes mesmo da consagração do tempo e haverá de se constituir em marco institucional no país no respeito aos direitos humanos e à democracia.

Não apenas por repor de modo coletivo a liberdade de homens e mulheres indevidamente subtraída, mas por que aportou considerações que haverão de valer para uma reflexão sobre os rumos das coisas no sistema criminal.

O julgamento não se limitou à resolução de uma questão jurídica, mas elaborou crítica construtiva sobre a atuação de setores da justiça criminal, a de São Paulo em particular. Colocou a nu, de forma amplificada, a irracionalidade e a desrazão de o sistema criminal concentrar seus esforços no enfrentamento da arraia-miúda do tráfico de entorpecentes, o que se já era objeto de preocupação de estudiosos e de pesquisadores da área, passava ao largo do sistema judicial formalizado.

O caso permite um enorme conjunto de interpretações, em vista do espectro multidisciplinar que os inúmeros julgamentos pronunciados pelos colegiados criminais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suscitam, que vão desde a resistência institucional de se observar a jurisprudência mansa e pacífica dos tribunais superiores até o racismo estrutural. Permito-me explorar um aspecto que chamarei de dissonância cognitiva entre o fato e a realidade. Embora compreensivo e legítimo  o entendimento de que o tráfico de entorpecentes mereça punição exemplar afinal a nossa CF o trata como crime hediondo , desde sempre as leis de drogas procuraram distinguir o traficante mais profissional do traficante eventual.

No caso da lei em vigor, de n° 11.343/06, temos dispositivo expresso – art. 33, § 4º que distingue o pequeno traficante, primário e sem envolvimento com o crime, daqueles cujo contexto denotaria aspecto mais profissional do tráfico. Cuida-se aliás de dado intuitivo, separar o grande do pequeno, e se a lei não fizesse deveria o intérprete fazê-lo.

O problema não está exatamente na lei, mas nos aplicadores da lei. Está na falta de disposição de setores do Ministério Público e da Justiça paulista de tratar o tema na exata dimensão em que está posto: criminalidade de menor importância [2]. Há, com efeito, um indisfarçável componente ideológico e simbólico no tratamento dispensado à gente miúda do tráfico de drogas. Em pesquisa empírica, desveladora do discurso judicial em casos que tais, Machado et alii [3] menciona alguns que merecem destaque:

“Mas esses componentes institucionais não nos parecem suficientes para explicar o que pudemos observar em nosso material: o “verdadeiro mal do século”, que causa “intranquilidade para a população ordeira”, que fere “o equilíbrio social e desestabiliz[a] a sociedade” e, ainda, absolutamente interligado a outros crimes, sustentáculo de organizações criminosas, além de verdadeiro corrosivo de qualquer valor social. […] delito nefasto, que deturpa a sociedade, destrói seres humanos e lares, bem como ampara todo o mundo da criminalidade.

E, no tocante ao traficante, nosso material registra diversas formulações que o associam à ideia de periculosidade, que negam peremptoriamente a possibilidade de terem “boa conduta social e personalidade, enfim, que o descrevem como “indivíduo sem escrúpulos”, “destruidor da sociedade”.

A rigor discursos como esses são dispensáveis, conquanto reveladores. A existência de sanção própria para o crime de tráfico de drogas é a resposta civilizada e controlada para a conduta criminosa, o mais é exagero retórico. Além das pré-compreensões naturais de qualquer intérprete — as quais aliás os jurisdicionados poderiam ser poupados da sua enunciação escrita algumas preleções mais se aproximam de um certo autismo interpretativo que afasta o julgador do mundo real.

O caso julgado pelo STJ, a propósito, é paradigmático do duplipensar orwelliano: o Tribunal paulista para assentar o regime fechado no tráfico privilegiado afirma tratar-se de “quantidade considerável de entorpecente” a quantia inferior a 6,0 gramas de droga. Não é pois de estranhar que hoje ostentamos o galardão da terceira população carcerária do mundo [4], sendo que só a população prisional do Estado de São Paulo corresponde a 30% desse total, dos quais 28% se relacionam a crimes de drogas e quando esse percentual é perfilado por gênero, temos 62% de mulheres [5].

Noves fora a imensa tragédia social que o superencarceramento representa, objeto de inúmeros estudos, a irracionalidade punitiva produz, ela mesma, um efeito criminógeno indireto: alimenta o crime organizado. O ministro Schietti mais uma vez acerta a mão quando obtemperou no julgado que “a exposição dos usuários e dos pequenos traficantes ao sistema prisional, a impingir-lhes o convívio com criminosos experientes e violentos, e oferecê-los como mão-de-obra barata e de livre acesso às facções criminosas que dominam o ambiente carcerário, não se mostra a alternativa mais inteligente ou racional” (no original).

Não por acaso, a maior delas constituiu-se neste Estado. Um sistema de justiça criminal que se pretende eficiente deveria (no plano ideal) simplesmente a se recusar a processar esses casos, que, como se sabe, sequer fazem cócegas nos esquemas profissionais do tráfico de entorpecentes. Verdadeira autofagia institucional. O julgado do STJ também fere questão muito cara à democracia no país. Não se usou o termo arraia- miúda ou gente miúda por acaso. A pesquisa do instituto Conectas, que fundamentou o julgado, demonstrou que são pessoas “sem eira nem beira”, a maioria negras, que compõe a massa de encarcerados no país e no Estado.

E como essa quantidade enorme de pessoas,“(…) quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”, como diz a música, são escolhidos pelo sistema criminal? Sim, porque essa “seleção” está longe de ser neutra. Como disse o juiz Marshall, da Suprema Corte estadunidense, “não é impossível de imaginar, mas é impossível dizer com base em que é tomada a decisão de selecionar alguns (…)” [6]. O relator do STJ encarou a questão de frente e disse sem peias, “reproduz política estatal que se poderia, não sem exagero, qualificar como desumana, desigual, seletiva e preconceituosa” (no original).

Desumana, desigual, seletiva e preconceituosa…

“Bastilha da razão humana”. Era assim que o barbeiro Porfírio chamava as desarrazoadas internações na “Casa Verde”, onde os “doudos” de Itaguaí eram mandados pelo egrégio Simão Bacamarte.


[1] Idiossincrasia, aliás, é um termo da medicina que reporta a comportamento peculiar de um grupo ou de uma pessoa.

[2] O julgado está embasado em estudo da Conectas – “Conectas Direitos Humanos – Prisão a qualquer custo: como o Sistema de Justiça descumpre decisão do STF sobre penas para pequenos traficantes – 2019” – que em pesquisa de campo realizada em 2018 na Justiça do Estado de São Paulo detectou que 100% dos casos de tráfico apurados envolviam prisões em flagrante delito e média de dinheiro apreendido de R$ 383,00.

[3] MACHADO, Maíra Rocha; BARROS, Matheus de; GUARANHA, Olívia Landi Corrales; PASSOS, Julia Adib. “Penas alternativas para pequenos traficantes: os argumentos do TJSP na engrenagem do superencarceramento”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, nº 1, 2018 p.604-629

[4] https:/www.prisonstudies.org., acessado em 22/9/2020.

[5] Extraído da pesquisa referida na nota 3.

[6] apud, “A Nova Segregação. Racismo e Encarceramento em Massa”, Michelle Alexander, Boitempo: São Paulo, 2017, p 117.

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