Opinião

Considerações sobre a lacuna do RJET em relação à proibição de despejos liminares

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23 de setembro de 2020, 6h34

No que diz respeito às locações de imóveis urbanos, havia grande expectativa pela aprovação do Projeto de Lei nº 1.779/20, especialmente porque previa, inicialmente, a suspensão total e/ou parcial do pagamento dos alugueres vencíveis, quando fosse o caso, circunstancialmente, de modificação da situação econômica dos locatários residenciais.

Tantas polêmicas suscitou a referida proposição que o próprio senador Antônio Anastasia, relator do projeto, concordou com a supressão do respectivo dispositivo (então artigo 10º), sob a justificativa de "colaborar para deliberação e aprovação da proposta que cria o RJET".

Com isso, a legislação passou a contemplar matéria de natureza meramente processual, perdendo a oportunidade de dar uma solução mais contundente e satisfatória à problemática relacionada às locações nesse período de pandemia.

Oportuno registrar que mais de uma dezena de projetos de lei que versam sobre as relações locatícias ainda seguem tramitando no Congresso Nacional inclusive com propostas de moratória semelhantes ou até mais amplas do que aquela inicialmente albergada pelo PL nº 1.779/20 , de sorte que ainda se aguarda uma regulamentação mais abrangente pertinente ao assunto.

De toda sorte, o RJET, embora desidratado, trouxe, em um singelo e conciso artigo, disposição que prometia ter relevante repercussão no desenvolvimento das locações.

Ocorreu que o referido dispositivo legal fora, no curso do processo legislativo, objeto de veto presidencial, alegando-se, nas justificativas, que contrariaria o interesse público, "por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio".

Não obstante, ato contínuo, o Congresso, conforme rito do artigo 66 da Constituição Federal, derrubou o veto, restabelecendo a redação original prevista no projeto legislativo, promulgando a lei sob nº 14.010/20, com o seguinte teor:

"Das Locações de Imóveis Urbanos
Artigo 9º
Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o artigo 59, §1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020".

E, na prática, o que isso significa?

De início, a mais evidente consequência é a suspensão, temporária, da eficácia do artigo 59, §1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei de Locações, o que representa, pragmaticamente, impedir a concessão de despejos liminares nas seguintes hipóteses: descumprimento de mútuo acordo; em decorrência da extinção do contrato de trabalho, se a locação, de natureza residencial, tiver relação com o emprego do locatário; permanência do sublocatário no imóvel, após a extinção do contrato principal de locação; em razão do término do prazo de 30 dias para apresentar nova garantia para manter a segurança do contrato inicial; o término do prazo da locação não residencial, tendo sido a ação proposta em até 30 dias do termo ou notificação comunicando o intuito de retomada do imóvel; e, por fim, a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, em caso de estar o contrato desprovido de qualquer garantia.

Por seu turno, seguem inalterados sem qualquer impedimento, portanto os procedimentos de despejo cujos pedidos se fundem em: término do prazo da locação para temporada, tendo sido proposta a ação de despejo em até 30 dias após o vencimento do contrato; a morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação, permanecendo no imóvel pessoas não autorizadas por lei e retomada do imóvel para fins de realizar reparações urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário, ou, podendo, ele se recuse a consenti-las.

Em que pese a Lei de Locações sustentar-se na premissa de paridade entre os partícipes da relação jurídica, sem dúvidas, a norma emergencial — o que se evidencia principalmente por sua formatação original , visa à proteção dos locatários, diante da possível (e esperada) redução do poder de pagamento, decorrente do inegável impacto econômico da pandemia. Todavia, parece bastante salutar a tentativa de encontrar um equilíbrio ao não estender indistintamente o impedimento do despejo a toda e qualquer hipótese legal — como, inclusive, previa-se inicialmente , sob pena de penalizar demasiadamente o locador.

Acertada também julgamos a contextualização temporal da medida, impedindo investidas oportunistas, que poderiam buscar na crise econômica advinda da Covid-19 uma justificativa genérica para o inadimplemento perpetrado em momento anterior. Com a precisa delimitação do termo inicial, definido pelo RJET, no parágrafo único do artigo 1º, como 20 de março deste ano, pretende-se prestigiar tão somente as inexecuções contratuais que efetivamente tenham causa estrutural na situação de calamidade sanitária. Quanto ao termo final da suspensão, embora ainda seja impossível dimensionar os efeitos da crise e antever um desfecho, considerou-se a data de 30 de outubro, reputada suficiente, pelo legislador, ao menos a princípio, para recuperação da situação da economia do país, profundamente abalada com as determinações administrativas de restrição das atividades produtivas e de isolamento social.

Certamente, o impacto mais substancial se espera em relação à suspensão do despejo pela falta de pagamento, modalidade esta que, naturalmente, independente desta situação excepcional vivenciada, já é a mais recorrente na praxe forense cabendo aqui o esclarecimento de que tal suspensão tem aplicabilidade tanto em âmbito de locação residencial, como não residencial, já que o artigo 59, §1º, IX, é norma de natureza procedimental, aplicando-se, sem distinção, a todas as espécies de locação regidas pela legislação especial (salvo as expressamente excluídas da medida, como a locação por temporada).

O problema que se vislumbra, em primeira análise, é que, conquanto o RJET tenha o claro propósito de tornar o despejo, neste interregno, uma medida excepcionalíssima, ele não parece, por sua especificidade, ser suficiente a obstar a concessão de ordem similar de desocupação compulsória de imóvel em sede de tutela de urgência, fundamentada no CPC, o que já é amplamente autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça, por entender que o rol legal abarcado na lei especial não é taxativo [1].

Resta então a indagação: mesmo diante da demonstração da probabilidade de direito e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (requisitos do artigo 300 do CPC), ficará o magistrado impedido de conceder a ordem de despejo? Em nosso sentir, como dito, a lei não tem alcance suficiente para tal, na medida em que possui destinação específica, que não alcançaria a ponto de ensejar a drástica consequência da suspensão da eficácia artigos de lei não contemplados expressamente no RJET.

Possível também seria a interpretação de que a tutela de urgência pautada nas regras gerais do processo somente seria cabível nas hipóteses específicas não abarcadas pela lei especial a exemplo, falta de pagamento em contrato que contenha garantia, afastando sua subsunção ao inciso IX do §1º do artigo 59. Todavia, dar trânsito a tal entendimento significaria, casuisticamente, privilegiar locações providas de garantia contratual em detrimento daquelas que não possuem qualquer tipo de subterfúgio assecuratório, distinção que não parece ter qualquer sentido.

Certo é, com efeito, que essa nova regulamentação, conquanto não impeça — em nossa avaliação a ordem de desocupação compulsória de imóvel urbano fundamentada no CPC, exigirá dos tribunais uma avaliação rigorosa dos pedidos de tutela de urgência, sob pena de frustrar, em absoluto, a finalidade do RJET, no que toca às locações.

 


[1] AÇÃO DE DESPEJO. TUTELA ANTECIPADA. POSSIBILIDADE. Cabível, nas ações de despejo, a antecipação de tutela, como o é em toda a ação de conhecimento, seja a ação declaratória, seja constitutiva (negativa ou positiva) condenatória, mandamental, se presentes os pressupostos legais. Recurso não conhecido. (REsp 445.863/SP, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Quinta Turma, DJ 19/12/2002, p. 407)

RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO. ARTIGO 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CABIMENTO. 1. A antecipação de tutela é cabível em todas as ações de conhecimento, inclusive nas ações de despejo. 2. Recurso provido. (REsp 595.172/SP, Rel. Min. PAULO GALLOTTI, Sexta Turma, DJ 1º/7/2005, p. 662)

LOCAÇÃO. DESPEJO. CONCESSÃO DE LIMINAR. POSSIBILIDADE. ART. 59, § 1º, DA LEI N.º 8.245/94. ROL NÃO-EXAURIENTE. SUPERVENIÊNCIA DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. NORMA PROCESSUAL. INCIDÊNCIA IMEDIATA. DETERMINAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. 1. O rol previsto no art. 59, § 1º, da Lei n.º 8.245/94, não é taxativo, podendo o magistrado acionar o disposto no art. 273 do CPC para a concessão da antecipação de tutela em ação de despejo, desde que preenchidos os requisitos para a medida. 2. Ainda que se verifique a evidência do direito do autor, para a concessão da tutela antecipada com base no inciso I do art. 273 do CPC não se dispensa a comprovação da urgência da medida, tudo devidamente fundamentado pela decisão concessiva, nos termos do § 1º do mencionado dispositivo. A ausência de fundamentação acerca de todas as exigências legais conduz à nulidade da decisão. 3. Embora o acórdão recorrido careça de fundamentação adequada para a aplicação do art. 273, inciso I, do CPC, a Lei n.º 12.112/09 acrescentou ao art. 59, § 1º, da Lei do Inquilinato, a possibilidade de concessão de liminar em despejo por de "falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação", desde que prestada caução no valor equivalente a três meses de aluguel. Assim, cuidando-se de norma processual, sua incidência é imediata, sendo de rigor a aplicação do direito à espécie, para determinar ao autor a prestação de caução – sob pena de a liminar perder operância. 4. Recurso especial improvido. (STJ – REsp: 1207161 AL 2010/0150779-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/02/2011, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/02/2011)

Autores

  • é advogada do escritório Machado, Mazzei e Pinho Advogados, membro da Comissão de Direito Societário da OAB/ES e pós-graduada em Direito Imobiliário, Notarial e Registral.

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