Opinião

O Direito Penal mínimo e o faz de conta do sistema prisional brasileiro

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10 de setembro de 2020, 13h33

A questão do combate à criminalidade, ou mesmo do que deva ser considerado crime, é algo que ultrapassa a discussão teórica, sendo tema recorrente em toda a sociedade e que sempre se torna o principal ponto de debate em qualquer eleição. Hoje, temos de admitir, não há como defender que a população ache minimamente eficaz a atual forma como o Estado lida com a violência e os diversos crimes.

Há várias causas para a ineficiência de nosso sistema criminal. Neste artigo, trago à discussão um dos principais fatores: a política desordenada de encarceramento no Brasil, onde se prende muito, mas se prende mal, e a omissão dos governos estaduais acabam por propiciar o crescimento do poder das facções criminosas.

É sempre recorrente no meio jurídico o debate sobre que tipo de sistema criminal deve ser adotado, quase sempre se remetendo a discussão a posições extremas: de um lado, os chamados abolicionistas (Michael Foucault, Thomas Mathiesen, entre outros), que, em uma síntese talvez excessivamente condensada — mas que é necessária às limitações deste artigo —, defendem o fim de qualquer tipo de encarceramento, afirmando que a resposta penal tradicional é seletiva, discriminatória, não gera prevenção e agrava o conflito na sociedade; e, de outro lado, os que defendem uma política que se convencionou denominar em âmbito político como de "tolerância zero", inspirada nas medidas adotadas por Rudolph Giuliani, que esteve à frente da prefeitura de Nova York de 1994 a 2002, e que prega a repressão severa a qualquer ilícito penal, mesmo os de menor gravidade, buscando, em uma síntese também exageradamente limitada, a redução da criminalidade pelo temor da punição.    

Como uma variante destas posições extremas, há quem defenda o chamado Direito Penal mínimo (no Brasil com a influência das ideias do notável jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni), que não exclui o encarceramento como uma resposta repressiva adequada, mas remete esse tipo de punição a apenas algumas condutas dotadas de maior lesividade à coletividade, reservando aos demais ilícitos a adoção de medidas sancionatórias alternativas, como, por exemplo, a suspensão do gozo de alguns direitos, a prestação de serviços obrigatórios em favor da coletividade e a aplicação de multas penais.

Não pretendo aqui discutir com profundidade as diversas teorias que, no plano acadêmico, tentam apresentar soluções para um sistema criminal adequado (isto é, eficaz) e justo no que diz respeito a um maior ou menor grau de encarceramento.

A discussão, no meu entender, deve ser traduzida em termos mais práticos e acessíveis para o público, evitando-se que o desconhecimento da questão não sirva para a adoção de práticas políticas demagógicas e deletérias para a solução do problema. Enfim, entendo que cabe ao interlocutor técnico, ao falar sobre a criminalidade e as diversas formas de se combatê-la, expor de forma clara, objetiva e pragmática o tema, bem como a resposta ou adequação que propõe e as suas possíveis consequências, e é nesta ordem de ideias que escrevo este artigo.

No Brasil, como já disse, a verdade é que se prende muito, mas se prende mal. Temos uma população carcerária de cerca de 800 mil pessoas, e somos o terceiro país com maior número de presos. Como então explicar a crescente criminalidade e a inafastável sensação de insegurança e de impunidade? Simples, essas prisões são qualitativamente ruins: as instalações presidiárias brasileiras são medievais, altamente insalubres e inseguras, com poucos agentes penitenciários e serviços precários de vigilância e disciplina; boa parte da população carcerária é de jovens, que, jogados em masmorras e sem a proteção do Estado, se quiserem sobreviver, têm de ingressar em facções criminosas, em que então aprendem a cometer delitos mais violentos e sofisticados; há, assim, o paradoxo de que o número excessivo de presos e as condições degradantes dos presídios incrementam a própria criminalidade, com as facções aliciando jovens que, na maioria das vezes, cometeram crimes não violentos, em especial o chamado pequeno tráfico.

Não discuto a necessidade ou não de descriminalização das drogas, ou do pequeno tráfico. Precede a isto a incapacidade do Estado de manter, com um mínimo de controle e dignidade, a atual população carcerária. Como disse, nossos presídios são superlotados, com fiscalização ineficiente, não havendo dentro dos pavilhões dessas masmorras qualquer vigilância efetiva, não só pelo baixo número de agentes penitenciários, como também pelas edificações precárias e a baixa tecnologia empregada.

Se não temos condições de manter os presos com dignidade e fiscalização, torna-se uma política insensata, para dizer o menos, manter-se o atual nível de encarceramento. O Estado acaba abdicando do controle e as facções criminosas, organizações cada vez mais poderosas, acabam assumindo o papel de manutenção de alguma ordem dentro dos pavilhões em troca do aliciamento criminoso dos detentos mais jovens e de suas famílias, o que potencializa a criminalidade cada vez mais crescente.

Mostra-se óbvio, a meu ver, que não temos, até mesmo por questões orçamentárias, como melhorar nossos presídios a curto prazo para se retomar o seu controle. Mais ainda, metade da população carcerária é composta de presos provisórios, sem julgamento definitivo, o que agrava ainda mais o problema de superlotação.

Como solução, ainda que paliativa, temos de diminuir a população carcerária para um nível em que os governos estaduais possam retomar o controle efetivo, inclusive interno, das unidades prisionais, coibindo-se, assim, a proliferação da influência das diversas facções criminosas no país. E isso nada tem a ver com Direito Penal mínimo, mas, sim, com a aplicação adequada e racional das diversas medidas, punitivas ou preventivas, de cunho penal.

Volta-se a perguntar: se prendemos tanto, como explicar o aumento crescente da violência urbana, como também o empoderamento das facções criminosas nas áreas periféricas de nossas cidades? Sendo mais direto, temos de sair do faz de conta que se tornou a aplicação da lei penal no Brasil, onde conseguimos ter uma população carcerária enorme sem que isso represente, ainda que minimamente, redução da criminalidade, e para isso deve-se adequar a resposta penal à capacidade do sistema carcerário. E tal adequação deve ser transparente, cabendo ao Poder Judiciário deixar claro que, em certos casos, faz-se a substituição da prisão por outras medidas em razão da incapacidade de absorção de mais presos pelo sistema penitenciário (ausência de vagas), fazendo com que o cidadão visualize, de forma objetiva, o problema. Essa fratura do sistema tem de ser mostrada para que o problema seja verdadeiramente enfrentado pela sociedade.

Digo isso porque não vejo nenhum governo estadual assumir publicamente a falta de investimento no sistema penitenciário e, assim, fica-se sempre na ilusão de que os presídios são efetivamente adequados. Se queremos continuar prendendo, temos de exigir de nossos governantes investimentos em presídios, forçando os governos estaduais a abandonarem essa política omissiva que transforma penitenciárias em masmorras, e que permite, em uma relação direta, o empoderamento das facções criminosas. Para isso, é necessário acabar com o faz de conta de nosso sistema prisional, mostrando-se, de forma crua e transparente, que não adianta somente prender, pois a restrição de liberdade implica responsabilidade do Estado, não só teórica, mas prática, em prender adequadamente — e que essa omissão resulta no crescimento do poder das facções criminosas.

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