Opinião

A tutela coletiva em tempos de Covid-19

Autor

  • Gisele Mazzoni Welsch

    é advogada pós-doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) doutora e mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC-RS professora de cursos de pós-graduação lato sensu em Processo Civil e autora de diversas publicações entre elas os livros "Legitimação Democrática do Poder Judiciário no Novo CPC" e "O Reexame Necessário e a Efetividade da Tutela Jurisdicional".

9 de setembro de 2020, 6h34

A tutela coletiva possui função relevante na defesa de direitos e interesses de natureza transindividual e o microssistema legal prevê alguns instrumentos e meios para a adequada tutela jurídica por meio da iniciativa dos legitimados ativos. Contudo, é essencial que as ações sejam devidamente apresentadas e conduzidas, pois isso irá conferir a efetividade e maior abrangência da defesa dos direitos coletivos e individuais homogêneos.

No contexto de crise gerado pela instauração da pandemia da Covid-19 [1] e seus desdobramentos, emergiriam demandas judiciais relativas aos direitos coletivos, porém é preciso verificar se os manejos dos instrumentos de tutela coletiva [2] têm sido direcionados de modo correto por meio dos variados legitimados ativos, do ponto de vista técnico-jurídico, e efetivo, na perspectiva de preservação dos direitos e das garantias fundamentais.

Um fator de grande relevância para a otimização de resultados é a necessária definição quanto à questão da limitação territorial dos efeitos da decisão prevista no artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, e que representa o grande entrave de melhor performance da tutela coletiva brasileira.

Quanto ao controverso dispositivo legal, há o tema nº 1075 no STF constitucionalidade do artigo 16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator. O leading case foi o Recurso Extraordinário n° 1101937-SP (Provimento em 3/12/2018 agravo interno para repercussão geral da matéria em 29/11/2019 repercussão geral reconhecida por maioria em 14/2/2020 suspensão nacional em 17/4/2020 situação em 6/8/20: concluso ao relator ministro Alexandre de Moraes).

O STJ, em sede de recurso de Embargos de Divergência em Resp nº 1.134.957 SP 2013/0051952-7, relatora ministra Laurita Vaz —, decidiu pelo afastamento da limitação territorial prevista no artigo 16 da Lei nº 7.347/85 [3], sendo que agora aguarda-se a decisão do STF, com repercussão geral reconhecida, para a uniformização da questão [4].

A expectativa é de que a decisão do STF no Recurso Extraordinário n° 1101937-SP forme precedente para pacificar em âmbito nacional a controversa e problemática questão da coisa julgada na tutela coletiva, com o entendimento pela aplicação do regime previsto no artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), o qual apresenta-se mais adequado e consentâneo com a lógica e objetivos da tutela coletiva, além de tornar mais viável a garantia da celeridade processual.

No contexto da pandemia da Covid-19, o processo coletivo se apresenta como meio de proteção de importantes direitos, de forma preventiva e concentrada, comportando tutela de urgência. Muitas ações coletivas vêm sendo direcionadas no Poder Judiciário e a previsão é de que a quantidade de ações apresentadas aumente significativamente em razão das repercussões geradas pela pandemia e a crescente necessidade de proteção e restauração de direitos de natureza coletiva, sendo indispensável o emprego dos meios mais adequados e efetivos, além da atuação técnica e atenta dos legitimados ativos, com a viabilização da participação e dialogo democráticos na formação das decisões judiciais.

Refere-se o exemplo da Ação Popular nº 1019132-66.2020.8.26.0053-SP, com pedido de liminar em face do governador do Estado de São Paulo (João Agripino da Costa Doria Junior) com a alegação de necessária sustação imediata do sistema de monitoramento inteligente (Simi-SP). O pedido principal é a procedência total da ação popular, determinando o cancelamento do sistema de monitoramento inteligente por ofender a moralidade administrativa e a privacidade dos cidadãos paulistas, bem como por ofender a competência privativa do presidente da República em situação de estado de defesa.

O processo está em tramitação (informação de 16/8/20, obtida na consulta processual da página do TJ-SP), mas é importante referir que o Ministério Público proferiu parecer positivo, sendo que o órgão teria legitimidade ativa para propor ação civil pública com o mesmo pleito, porém o cidadão ingressou com a ação popular, já que possuía legitimação concorrente. No caso de eventual desistência ou abandono do processo pelo autor da ação popular, deverá ocorrer a sucessão processual, com o ingresso do Ministério Público ou de outro legitimado na posição de condutor do processo coletivo (artigo 9º da Lei n° 4.717/65; artigo 5º, §3º, Lei n° 7.347/85) [5].

Outro exemplo interessante é a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (Ação Civil Pública Cível Nº 5048987-22.2020.8.21.0001/RS) contra o município de Porto Alegre, com o requerimento de suspensão da eficácia de artigos de decreto municipal, que autorizou temporariamente o funcionamento do comércio (em sede de antecipação dos efeitos da tutela), determinando-se a obrigação de não autorizar a abertura dos estabelecimentos comerciais não essenciais. O requerimento foi apresentado em função do decreto municipal ter sido expedido em desconformidade com o sistema de distanciamento controlado previsto em decretos estaduais. A liminar foi deferida sem viabilizar vista à parte ré, em função da urgência, determinando à prefeitura municipal as medidas administrativas para o cumprimento da decisão e multa por ocorrência de R$ 5 mil pelo descumprimento das demais determinações. A decisão foi proferida em 8 de agosto em sede liminar pelo plantão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Embora a Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul também tivesse legitimidade ativa para a propositura da referida ação civil pública (legitimação ativa plúrima e concorrente), optou por acionar o Ministério Público em razão da imparcialidade, mas não neutralidade, em relação ao conflito. Observa-se, nesse caso, o protagonismo exercido pelo órgão ministerial na propositura e condução da ação civil pública em razão das suas atribuições constitucionais, organização e escopos institucionais.

Destarte, o enfrentamento do tema e lapidação da sistemática procedimental se mostram imprescindíveis nesse momento como forma de resguardo e efetivação dos direitos e garantias constitucionais e caros ao Estado democrático de Direito, especialmente em um momento de crise e dificuldades.

 


[1] A Organização Mundial da Saúde decretou o estado de Pandemia Mundial pela COVID-19 em 11/03/20.

[2] Teori Albino Zavaski promove importante separação entre a tutela coletiva de direitos e a tutela de direitos coletivos: “Ressalvadas as aplicações subsidiarias admitidas por lei ou impostas pelo princípio da analogia, pode-se identificar, em nosso sistema processual, um subsistema que delineia claramente os modos e os instrumentos de tutela dos direitos coletivos (que são as ações civis públicas e a ação popular) e os modos e os instrumentos para tutelar coletivamente os direitos subjetivos individuais (que são as ações civis coletivas, nelas incluído o mandado de segurança coletivo”. (ZAVASKI, Teori Albino. Processo Coletivo Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 59).

[3] EMENTA: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. ART. 16 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO COLETIVA. LIMITAÇÃO APRIORÍSTICA DA EFICÁCIA DA DECISÃO À COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO JUDICANTE. DESCONFORMIDADE COM O ENTENDIMENTO FIRMADO PELA CORTE ESPECIAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM JULGAMENTO DE RECURSO REPETITIVO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (RESP N.º 1.243.887/PR, REL. MIN. LUÍS FELIPE SALOMÃO). DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS. 1. No julgamento do recurso especial repetitivo (representativo de controvérsia) n.º 1.243.887/PR, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a regra prevista no artigo 16 da Lei n.º 7.347/85, primeira parte, consignou ser indevido limitar, aprioristicamente, a eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante. 2. Embargos de divergência acolhidos para restabelecer o acórdão de fls. 2.418-2.425 (volume 11), no ponto em que afastou a limitação territorial prevista no artigo 16 da Lei n.º 7.347/85. (Embargos de Divergência em Resp nº 1.134.957 – SP (2013/0051952-7) Relatora: Ministra Laurita Vaz).

[4] O Conselho Nacional de Justiça criou um grupo de trabalho para aprimorar a atuação do Poder Judiciário no processamento e julgamento das ações coletivas com sugestões de alterações legislativas no sentido de aperfeiçoar a regulação de todas as formas de tutela coletiva, inclusive dos direitos individuais homogêneos. O grupo destaca a necessidade de fortalecer as ações coletivas, garantindo a representatividade adequada e a eficácia da sentença, sem a limitação ao âmbito da jurisdição territorial do juiz prolator. Fonte: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/30072020-Grupo-de-trabalho-sugere-medidas-para-dar-mais-efetividade-as-acoes-coletivas.aspx. Acesso em 30/7/2020.

[5] DIDIER Jr., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 212.

Autores

  • é advogada, pós-doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), doutora e mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC-RS, professora de cursos de pós-graduação lato sensu em Processo Civil e autora de diversas publicações, entre elas os livros "Legitimação Democrática do Poder Judiciário no Novo CPC" e "O Reexame Necessário e a Efetividade da Tutela Jurisdicional".

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