Opinião

Dinheiro na mão é vendaval: a nova nota de R$ 200 e a criminalidade

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7 de setembro de 2020, 17h21

Os canais de comunicação noticiaram que na última quarta-feira (2/9) começou a circular a nota de R$ 200, aduzindo que serão colocadas em circulação 450 milhões de unidades da nova cédula [1].

Segundo justificativa do próprio Banco Central, a pandemia da Covid-19 aumentou o uso de dinheiro em espécie, sendo que no final de março a quantidade de dinheiro em circulação era de aproximadamente R$ 260 bilhões, sendo que esse montante aumentou vertiginosamente, alcançando o patamar de R$ 350 bilhões em 17 de agosto. Além disso, afirma que a emissão da nova moeda não impactará em qualquer facilitação no cometimento do crime de lavagem de dinheiro, pois o Brasil possui "arcabouço moderno para combate/prevenção à lavagem de dinheiro" [2].

A par do discurso oficial, com a devida vênia, tecendo uma análise criminológica e realista do sistema criminal brasileiro, há um descompasso entre o discurso oficial e a realidade prática.

Em primeiro lugar, pelo simples fato de que os crimes do colarinho branco no Brasil, diretamente ligados às malas de dinheiro vivo, têm reflexos mínimos nas estatísticas criminais, já que o Direito Penal no Brasil é seletivo tanto na criminalização primária quanto na secundária.

Em segundo lugar, a emissão de papel moeda em notas de alto valor não se ligam somente a crimes de lavagem de dinheiro, mas crimes de moeda falsa, tráfico de drogas, corrupção e diversos outros crimes contra a administração pública.

Ora, o combate à criminalidade, como quer o Banco Central em sua justificativa, não se faz somente com arcabouço normativo. Aliás, desde a Escola Criminológica de Chicago, que se desenvolveu a partir do início do século XX, sabemos que os controles informais são muito mais efetivos no combate à criminalidade do que os controles formais.

Sem contar a ineficiência do Estado brasileiro nas políticas de prevenção do crime. Como é cediço, a prevenção ao crime pode ser primária, secundária e terciária.

A prevenção primária atua nas verdadeiras causas do delito com fulcro na falta de estrutura social, desorganização, ausência de presença do Estado. Com efeito, a prevenção primária se dá por meio de prestações positivas do Estado nas áreas econômica, social, cultural, enfim, no cumprimento de políticas públicas, a fim de garantir os direitos fundamentais, através de programas de educação, habitação, segurança, emprego e outros.

Já a prevenção secundária atua em momento posterior, ou seja, no momento da ocorrência do crime ou na sua eminência tendo por alvo um grupo determinado de pessoas mais suscetíveis a sofrer crimes ou a cometê-los, isto é, consistem em ações policiais, campanhas preventivas, programas de apoio, políticas penais e sociais direcionadas.

E a prevenção terciária tem como foco o indivíduo, isto é, busca a ressocialização do criminoso ou da vítima com programas socioeducativos, reabilitação da vítima, diminuição dos efeitos da vitimização etc. Por ser uma intervenção tardia, não possui tanta eficácia como a prevenção primária.

Portanto, vê-se claramente que a prevenção primária é a mais efetiva no combate ao crime, sendo que a política econômica e monetária bem elaborada tem efeito crucial nesse cenário, principalmente na prevenção dos crimes do colarinho branco.

Ora, qual a necessidade real de emissão de papel-moeda no valor de R$ 200 sendo que já temos as notas de R$ 100, as quais são raras no bolso da população mais humilde e desprovida de condições socioeconômicas, que, diga-se de passagem, é a maior parte da população brasileira?

Sem contar que a emissão da nota de R$ 200 vai de encontro à teoria da prevenção situacional.

Essa teoria foi proposta por L. E. Cohen e M. Felson em 1979 e tem como principal objetivo reduzir as oportunidades para que o crime ocorra, portanto, ao contrário de outras teorias penais e criminológicas, não tem por objeto a punição ou a ressocialização do indivíduo, pois o foco é a diminuição de oportunidades, desmotivando o agente criminoso.

As bases para a aplicação da teoria da prevenção situacional são: agente motivado ou racional, disponibilidade do objeto e ausência de vigilância. Logo, o agente criminoso age como o homo economicus, isto é, faz uma análise racional e pormenorizada dos custos e do benefício que irá ter com a conduta criminosa e, para desmotivar o agente, a atuação deve recair sobre as outras duas variáveis.

Se aumento a disponibilidade do objeto, devo aumentar a vigilância para desmotivar o agente. A pergunta é: o Brasil tem alguma política pública de aumento de vigilância, principalmente no que tange aos crimes do colarinho branco?

Lembre-se que a disponibilidade do objeto atenta para o fato de que quanto mais disponível o objeto, mais facilidade de acesso ao objeto material do crime, ou seja, aumentando o número de papel-moeda em circulação com valor mais alto, como é o caso da emissão da nota de R$ 200, sem a corresponde vigilância efetiva, a criminalidade aumenta.

Como se não bastasse, o Brasil vai na contramão de países mais desenvolvidos, que pensam exatamente o contrário, ou seja, a retirada de circulação do dinheiro gera diminuição da criminalidade. Tais providências já estão sendo tomadas em diversos países, como a Suécia, em que os patamares de circulação regrediram ao ano de 1990, na China a maioria das movimentações financeiras são eletrônicas, sem contar o exemplo fantástico da Noruega, em que apenas 4% das transações são feitas em dinheiro, sendo que diversos estabelecimentos não aceitam papel-moeda. Será que esse é um dos motivos pelos quais Noruega, Suécia e Holanda têm fechado suas prisões?

Obviamente, estamos longe de uma realidade assim, ainda mais que por aqui temos o princípio do curso forçado da moeda (exemplo disso é o Decreto-Lei 857/1969 e o artigo 43 da Lei de Contravenção Penal — Decreto-Lei 3688/1941 — que criminaliza a conduta de "recursar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país") e a resistência em não vislumbrar as políticas públicas de combate à criminalidade de uma forma macrossociológica.

A emissão da nota de R$ 200 é um exemplo deste descompasso. Ora, em um governo que tem como plataforma política o combate ao crime, o lançamento da nova nota fomenta a criminalidade do colarinho, branco por meio da própria política monetária, ao aumentar a disponibilidade do objeto com aumento da circulação de dinheiro.

Alguns partidos políticos ajuizaram a ADPF 726 pedindo a anulação do ato do Banco Central e que "reconheça a inconstitucionalidade da decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN), vinculado ao Banco Central do Brasil (BC), que aprovou o lançamento e a circulação da cédula de R$ 200. (…) Para os autores, a criação da nova cédula viola os princípios da motivação e da eficiência da Administração Pública (artigo 37, caput, da Constituição Federal). Eles argumentam que 'sequer a utilidade e a necessidade da medida se encontram adequadamente esclarecidas' pelo CMN e alegam que o princípio da motivação decorre diretamente da proteção constitucional concedida ao cidadão" [3].

Também foi alegado o favorecimento à criminalidade e a ausência de diálogo com outros órgãos públicos interessados na medida como o Coaf, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e outros. A ADPF não foi julgada.

Todavia, tal discussão não é nova, já que o geputado Reginaldo Lopes já havia proposto por meio do PL 48/2015 o fim do papel-moeda no Brasil [4].

Acabar com a circulação do papel-moeda no Brasil parece ser uma utopia, tendo em vista a enorme população excluída digitalmente, todavia, nada nos impede que criemos mecanismos que diminuam paulatinamente tal circulação, pois, como já mencionado, a disponibilidade do objeto aumenta a motivação para o criminoso e facilita a prática de diversos crimes.

Portanto, a emissão da nota de R$ 200 vai na contramão do combate macrossociológico da criminalidade e confia em um arcabouço normativo que é falho, já que a teia da lei só pega os insetos pequenos.

Como diria o provérbio chinês: "Dinheiro perdido, nada perdido; Saúde perdida, muito perdido; Caráter perdido, tudo perdido".

Autores

  • é procurador federal da AGU, mestre em Ciências Penais, doutor em Direito Constitucional pela UFMG, autor dos livros "Direito Constitucional Fraterno", "Do Princípio da Coculpabilidade" e, em co-autoria, "Criminologia da Não-cidade", todos da Editora D’Plácido. É editor-chefe da Revista da Advocacia Pública Federal, editada pela Anafe, e conselheiro seccional da OAB-MG.

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