Opinião

Um devaneio noturno, o PL nº 4.468/20 e a 'arbitragem' especial tributária

Autor

  • Marcelo Ricardo Wydra Escobar

    é advogado árbitro doutor (PUC-SP) e mestre (Mackenzie) em Direito Fellow do Chartered Institute of Arbitrators de Londres autor do livro "Arbitragem Tributária no Brasil" (Almedina 2017) ex-juiz do TIT-SP e conselheiro julgador do CMT-SP diretor e co-fundador do Ibat e diretor do CIArb Brazil.

4 de setembro de 2020, 21h39

Com o cair da noite desta quinta-feira (3/9), a Lua Minguante que delicadamente pairava sobre meus olhos ostentava um magnetismo especial, que me fez recordar sua sincronicidade rotacional com a Terra, o que nos permite visualizar sempre a mesma face do satélite.

Em um rápido devaneio refleti quantas poesias, canções e inspirações seriam enriquecidas com o vislumbre de outro ponto de vista, do lado negro da Lua, divagação essa que foi interrompida por uma dezena de mensagens encaminhando o Projeto de Lei nº 4468/20 [1], que visa a instituir a arbitragem "especial tributária".

Não tinha conhecimento do projeto e tão logo tive, a euforia inicial foi subitamente substituída, pelas razões externadas nestas breves linhas, ressaltando não se tratar de qualquer juízo em relação à sua origem, gestação, e muito menos quanto aos proponentes.

Sem desvios, tem-se que ao retirar o procedimento especial tributário sugerido do âmbito da Lei Brasileira de Arbitragem (LBA), não há razão para denominar esse novo instituto de arbitragem.

Não é demais reiterar que a LBA não é diploma destinado a arbitragem privada ou comercial, mas, sim, arbitragem lato sensu.

Não há uma lei para arbitragem comercial, outra para arbitragem trabalhista, e diploma diverso para arbitragem com a Administração Pública, pois todas se submetem ao regime da LBA.

A prática demonstra que os diversos tipos de arbitragem são customizados por regulamentos diversos, que refletem a peculiaridade de cada tipo de arbitragem. Desnecessário discorrer sobre a força dos regulamentos de arbitragem, haja vista que o sigilo é deles decorrente, e não da LBA, assim como ocorre em todo o globo, com exceção da norma neozelandesa de 1996.

Encerando essa questão, registra-se que há aplicação subsidiária prevista no artigo 13 do projeto, mas não da LBA, mas, sim, da lei de transação tributária.

Voltando os olhos ao projeto de procedimento especial tributário, extrai-se que ele dá azo a um proceder assemelhado ao existente processo de consulta, bem como cria uma forma de "quantificação de crédito reconhecido judicialmente e passível de compensação", ou, na verdade, um processo de arbitramento — e não arbitragem — na esteira do que previa o Decreto nº 2.647/1860 em seus artigos 559, 565, 566 e 570.

No que se refere à inclusão do processo de consulta no escopo do procedimento especial, apenas o fator custo — que nos termos do projeto será adiantado e suportado pelo contribuinte (artigo 3º, VII, VIII, IX) — dificultará a opção por este caminho, haja vista que o já existente processo de consulta não é oneroso.

Outro ponto que causa estranheza é a figura do "árbitro desempatador" (§7º [2] do artigo 4º) para os casos de decisões não unânimes, haja vista que o caput do artigo 4º aduz que "o tribunal arbitral será necessariamente formado por três árbitros". Ora, dois cenários se materializam em sentido contrário a essa previsão: I) se o tribunal contar com dois votos favoráveis e um contrário, e o desempatador votar com o entendimento contrário, haverá um novo empate, todavia, com a majoração dos custos pelo acréscimo do "desempatador" sem o deslinde da questão; ou II) o "árbitro desempatador" decidirá a controvérsia desconsiderando o resultado do tribunal arbitral, o que também não se justifica, posto que seria mais célere e menos custoso prever apenas a figura do árbitro único.

Os requisitos para o exercício da função de árbitro contidos no artigo 4º, §9º, II [3], além de atrair críticas de reserva de mercado com a criação de um sistema apartado e novamente diverso da LBA, ainda permite que cursos em instituições estrangeiras sejam requisitos na contramão do que existe em países onde a arbitragem tributária já realidade. O veto para a experiência internacional existe, por exemplo, no âmbito do CAAD de Portugal, instituição para a qual não basta deter profundo conhecimento tributário brasileiro ou americano, posto que a controvérsia que será dirimida versará sobre Direito português.

Há também imprecisão remissiva, haja vista que não há um inciso III no artigo 63 da Lei nº 9.430/96, tal como constante no artigo 8º, II [4], do projeto.

De se esclarecer, que não se advoga tese contrária a existência de leis sobre arbitragem tributária, mas desde que a competência dos entes federativos reflita questões como arbitrabilidade objetiva, bem como outras de relevo que não colidam com os conceitos já sedimentados da LBA, como no presente caso.

Por fim, importa salientar ser indiscutível a peculiaridade de uma eventual arbitragem tributária, bem como a imprescindibilidade de previsões além das contidas na LBA, entretanto, tais previsões podem em grande parte serem personalizadas em um regulamento de arbitragem tributária, a exemplo do que já ocorre com as arbitragens comerciais e trabalhistas.

Encerrada a leitura do projeto, retomei a apreciação da única face visível do luar minguante, bem como a conjectura acerca da riqueza e da beleza de pontos da diversidade de pontos de vistas e opiniões, recordando que o debate aperfeiçoa ideias e ideais. Arrematei essa quimera com votos de que essa iniciativa não mingue o instituto da arbitragem tributária, bem como de que a sigla "especial tributária" se relacione com as palavras em latim que indicam a pluralidade de autores, e não com um forâneo de orbe diversa.

 


[1] De autoria da senadora Daniella Ribeiro.

[2] §7º Poderá ser indicado um árbitro desempatador se a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral não for unânime, competindo ao presidente da instituição arbitral efetuar a designação respectiva.

[3] II – deter conhecimento técnico compatível com a natureza do litígio a ser dirimido, jurídico ou não, sendo essencial, no mínimo, dez anos de comprovada experiência profissional na área de atuação, bem como duas graduações em nível técnico ou superior ou uma graduação e uma pós-graduação em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras cuja titulação tenha sido reconhecida no Brasil;

[4] II – o laudo arbitral vinculará o julgamento do auto de infração lavrado nos termos do inc. III do artigo 63 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996;

Autores

  • é advogado, árbitro, doutor (PUC-SP) e mestre (Mackenzie) em Direito Fellow do Chartered Institute of Arbitrators de Londres, autor do livro "Arbitragem Tributária no Brasil" (Almedina, 2017), ex-juiz do TIT-SP e conselheiro julgador do CMT-SP, diretor e co-fundador do Ibat e diretor do CIArb Brazil.

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