Opinião

A epidemia das denúncias genéricas no processo penal

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1 de setembro de 2020, 9h12

Já não é de hoje que os processos criminais padecem de muitos males. Uma dessas anomalias ganhou status epidêmico disseminado em todo o território nacional: são as denúncias genéricas e abstratas que, desde o início dos procedimentos penais, contaminam e levam à morte garantias constitucionais do cidadão. E o pior, passaram a ser aceitas pelo Poder Judiciário, que tinha a missão de extirpar esse mal. E o pretexto para a aceitação? O falso combate à criminalidade.

Essa questão ganhou contornos de dramaticidade quando os órgãos de persecução penal se enveredaram para o caminho do combate dos denominados delitos econômicos. Isso porque essa modalidade de crime exige uma atenção maior, tanto de quem acusa quanto de quem julga, dada a peculiaridade na demonstração de condutas criminosas praticadas, em sua maioria, no âmbito empresarial ou em decorrência da atividade comercial.

É preciso lembrar que a denúncia, além do caráter de instrumentalização do exercício do poder punitivo estatal, possui ainda duas outras e importantes funções: I) delimitar o objeto do processo; e, como consequência, II) garantir o exercício do direito à ampla defesa. Sem a delimitação clara dos fatos a serem discutidos naquela ação penal e sobre o que recai a imputação do Ministério Público, não é possível o exercício legítimo do direito de defesa do acusado. Portanto, a denúncia deve trazer os fatos com os seus devidos termos, ou seja, onde começou, quando terminou, quem praticou a conduta reputada como criminosa.

E o pior agravante para esse mal tão terrível das denúncias genéricas são os megaprocessos, que se tornaram uma regra no âmbito de grandes operações, principalmente, no período pós "lava jato". Diogo Malan, ao abordar esse tema, afirma com precisão que "os megaprocessos tendem a ensejar múltiplas e excessivas restrições à garantia da defesa penal, notadamente aos seus consectários dos direitos à defesa técnica efetiva, à livre escolha do defensor técnico e ao tempo e aos meios adequados para a preparação da defesa" [1].

Não se pode admitir sob a égide Estado democrático de Direito e das garantias constitucionais à ampla defesa e ao contraditório a aceitação de denúncias genéricas, sem as descrições básicas que possam possibilitar o exercício regular poder punitivo estatal mas, primordialmente, que possibilite o exercício pelo acusado do direito fundamental de se defender no curso processual.

Importante o destaque feito pelo professor Gustavo Henrique Badaró (2018, p. 207) ao afirmar que "para que a acusação possa ser objeto de julgamento, ela deverá estar descrita na denúncia, quer em atenção à regra da correlação entre acusação e sentença, quer em atenção aos princípios do contraditório e ampla defesa (artigo 5º, LV da CR)" [2].

A vacina para esta tão terrível epidemia já está há muito tempo produzida, testada e resta apenas a sua aplicação para que assim se criem os anticorpos necessários para o combate desse mal. Vejamos.

As denúncias genéricas no âmbito dos delitos econômicos
Não se pode perder de vista que o Código Penal e o Código de Processo Penal estabeleceram as diretrizes para a formulação da acusação, bem como as regras a serem observadas no momento de sua apreciação pelo Poder Judiciário. Essas regras são aplicáveis também aos delitos econômicos e praticados no âmbito de organizações criminosas. A dificuldade para identificação de condutas não pode servir de pretexto para a inaplicabilidade da norma, não se pode transpassar a disposição legal dada a complexidade da demanda.

Em primeiro lugar, é salutar relembrarmos a previsão do artigo 13 do Código Penal [3]. Ao estabelecer a norma para reconhecimento da relação de causalidade, o legislador reconheceu que é indispensável a existência de uma conduta, que se pode traduzir tanto em um comportamento positivo (comissivo) quanto negativo (omissivo) (Delmanto, 2007, p. 40) [4].

Pois bem. A própria norma penal estabelece que para que haja o reconhecimento do delito, é necessário haver a demonstração de causalidade entre conduta humana e resultado criminoso. Assim, esse é o ponto de partida para a denúncia: devem ser demonstradas a conduta humana, a sua consequência e a subsunção de ambos ao tipo.

Para que se alcance esse objetivo, o Código Processual Penal estabelece no artigo 41 que a denúncia conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime. Essa é a fórmula mágica. Para demonstração da existência de uma conduta humana que resultou na prática delitiva, a denúncia deverá expor com clareza e precisão todos os fatos e circunstâncias; identificará o agente e dirá qual foi o delito praticado.

Aqui, vale a menção de que descrever fatos pretéritos não é repetir o texto legal. O que se verifica em muitas denúncias é a transcrição literal da norma e, ao final, a afirmação de que determinada pessoa praticou a referida conduta. Para exemplificar: se o promotor acusa um cidadão pela prática de corrupção ativa, deverá a denúncia descrever, de forma detalhada e minuciosa, como se deu o oferecimento ou promessa de vantagem ilícita; qual foi a vantagem; quem era o funcionário público; qual era o ato a ser praticado ou retardado; e assim sucessivamente. 

Nos delitos econômicos, a regra é a mesma. Para se garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório, a acusação deverá conter todos os elementos que levaram o órgão acusatório a propor a demanda penal.

Cita-se ainda que a denúncia não pode ter embasamento em conclusões unipessoais do promotor. O acusado se defende de fatos, e não de interpretações. Assim, toda descrição da denúncia deve estar sedimentada em elementos concretos, ainda que indiciários, que deverão ser corroborados no curso da ação penal. E é justamente nesse ponto em que se reside uma grande dificuldade em diversos delitos praticados no âmbito empresarial. As acusações descrevem os fatos e os imputam, não raras vezes, aos sócios, diretores e afins sem que haja a demonstração da sua efetiva participação no delito. Ou seja, o órgão acusatório parte da premissa de que por ser sócio a ele deve ser imputada a prática criminosa.

E, ainda, é imperioso destacar a posição do ministro Gilmar Mendes sobre o tema. A expressão crimes societários cunhada pelo autor e utilizada amplamente nas cortes superiores, refletem a ideia de delitos econômicos. E o autor é categórico:

"Deve-se ter em mente, portanto, que, em matéria de crimes societários, a denúncia deve expor, de modo suficiente e adequado, a conduta atribuível a cada um dos agentes, de modo que seja possível identificar o papel desempenhado pelo(s) denunciado (s) na estrutura jurídico-administrativa da empresa" [5].

Conclusão
T
udo se resume à conclusão talhada pela professora Marta Saad: quanto mais precisa a acusação, mais se garante a defesa [6].

Portanto, a busca por um processo penal justo passa primeiramente por denúncias que se coadunem com as normas legais e principalmente com os direitos fundamentais do cidadão à ampla defesa e ao contraditório. Fins não justificam os meios. Punição a crimes deve se dar em respeito à lei e as garantias constitucionais do cidadão. Essa é a vacina.

 

[1] MALAN, Diogo. Megaprocessos criminais e direito de defesa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 159/2019, set./2019, DTR201939985, p.10.

[2] Badaró, Gustavo Henrique, Processo Penal. 6 ed. Ver. Atua. E ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

[3] "Artigo 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido".

[4] Delmanto, Celso Roberto e Fabio. Código penal comentado. 7 ed. Atual. e ampl. Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 40.

[5] Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Martires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 4. Ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 595.

[6] SAAD, Marta. Duas formas de ciência da acusação, premissa para pleno exercício do direito de defesa: acusação formal, certa e definida e acesso aos autos do inquérito policial. In: VILARDI, Celso Sanchez; RAHAL, Flávia; DIAS NETO, Theodomiro (Coords). Crimes econômicos e processo penal. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 255.

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