Opinião

Considerações sobre o Projeto de Lei Animais Não São Coisas

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Daniel Braga Lourenço

    é coordenador do Centro de Ética Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Antilaboratório de Direito Animal da UniFG (Andira) professor adjunto de Biomedicina e Direito Ambiental da UFRJ professor titular de Direito Ambiental do IBMEC-RJ professor permanente do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da UniFG-BA doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela UGF-RJ e membro do Oxford Centre For Animal Ethics.

1 de setembro de 2020, 13h36

1) Introdução
As presentes considerações se referem ao Projeto de Lei (PL) nº 6054/2019, de autoria dos deputados federais Ricardo Izar (PSD/SP) e Weliton Prado (PROS/MG), iniciado e aprovado na Câmara dos deputados sob nº 6799/2013 e aprovado, com emenda aditiva, no Senado, sob nº 27/2018, conhecido como PL Animais Não São Coisas.

Em função da emenda aprovada no Senado, inserindo parágrafo único no artigo 3º do PL, o texto retornou à Câmara dos Deputados, onde tramita desde novembro de 2019, exclusivamente para manutenção ou rejeição do acréscimo.

A redação atual do projeto é a seguinte:

"Artigo 1º — Esta Lei estabelece regime jurídico especial
para os animais não humanos.

Artigo 2º — Constituem objetivos fundamentais desta Lei:

I — Afirmação dos direitos dos animais não humanos e sua proteção;

II — Construção de uma sociedade mais consciente e solidária;

III — Reconhecimento de que os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento.

Artigo 3º — Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.

Parágrafo único. A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.

Artigo 4º — A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 79-B:

Artigo 79-B —  O disposto no artigo 82 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), não se aplica aos animais não humanos, que ficam sujeitos a direitos despersonificados.

Artigo 5º — Esta Lei entra em vigor após decorridos 60 (sessenta) dias de sua publicação oficial".

2) Considerações prévias
2.1) Ainda que alguns juristas do Direito Animal, interpretando o texto constitucional (artigo 225, § 1º, VII, CF), concluam que os animais são sujeitos de direitos, isso está longe de ser consenso na comunidade jurídica. Aliás, praticamente nenhum jurista de outras áreas do Direito, inclusive do Direito Ambiental, compartilha dessa conclusão.

Mais do que isso, muitas leis e atos normativos federais enunciam exatamente o contrário, ou seja, tratam os animais como coisas, bens semoventes ou bens ambientais, como, por exemplo, o Código Civil, catalogando animais como bens móveis, a Lei Arouca (Lei 11.794/2008), em relação ao uso de animais em pesquisas científicas, a Lei 13.364/2016, alterada pela Lei 13.873/2019, e a EC 96/2017, em relação aos animais explorados em vaquejadas, rodeios e atividades afins, além de várias leis e atos normativos, editados sob o pálio do artigo 23, VIII, da Constituição Federal, em relação aos animais usados na produção agropecuária.

Embora existam julgados reconhecendo a natureza sensível dos animais e, por derivação, a sua própria dignidade existencial, ainda não se tem uma posição consolidada nos tribunais superiores ou dos tribunais de apelação afirmando categoricamente que animais são sujeitos de direitos.

Por essas razões, fica claro que o projeto em discussão não pode ser considerado inócuo, nem se pode dizer que está consolidado, no Brasil, de maneira pacífica, que os animais são sujeitos de direitos, não podendo ser tratados como coisas. A realidade fática e jurídica desmente isso.

2.2) Não basta dizer que os animais não são coisas, como enuncia, por exemplo, o PLS 351/2015, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), nem afirmar, apenas, que os animais são seres sencientes ou dotados de sensibilidade.

A experiência do Direito Comparado demonstra isso.

Os países europeus como a Áustria (1988), a Alemanha (1990) e a Suíça (2003), que alteraram seus Códigos Civis para estabelecer que "animais não são coisas" (tiere sind keine sachen), e França (2015) e Portugal (2017), que passaram a definir os animais "como seres dotados de sensibilidade" (les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité), continuam submetendo os animais ao regime jurídico da propriedade. Pouco ou nada mudou nesses países.

Aliás, até o momento, nenhum país do mundo editou lei para qualificar os animais como sujeitos de direitos.

2.3) Ainda que a competência legislativa sobre a fauna seja concorrente entre União e Estados (artigo 24, VI, CF), legitimando que os Estados possam afirmar que os animais são sujeitos de direitos, como forma de proteção em grau máximo (universalmente, como a Paraíba — Lei 11.140/2018 , ou para determinadas espécies animais, como Santa Catarina — Lei 12.854/2003, alterada pelas Leis 17.485/2018 e 17.526/2018 — e Rio Grande do Sul — Lei 15.434/2020), é possível objetar de que somente a União poderia legislar sobre essa requalificação, que seria matéria de Direito Civil (artigo 22, I, CF).

Essa razão também serve para apontar a importância do projeto, para que o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos se dê por lei federal, legitimando as iniciativas estaduais nesse sentido. Sem a aprovação do PL, há o risco de que as leis estaduais animalistas possam ser declaradas formalmente inconstitucionais, por invasão da competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil.

2.4) É importante ressaltar que o PL já foi aprovado em ambas as Casas legislativas federais, restando à Câmara de deputados apenas apreciar a emenda aprovada no Senado (parágrafo único acrescentado ao artigo 3º). Há pedido de tramitação em regime de urgência.

Dificilmente ter-se-á uma nova oportunidade histórica como essa, para a consolidação do Direito Animal no plano legislativo federal. Mesmo que, na atualidade, tenha-se um governo federal francamente hostil ao meio ambiente e aos animais, ainda assim o PL foi aprovado no Senado.

2.5) Para avaliar as virtudes e os defeitos do PL, é importante traçar uma base interpretativa baseada no próprio texto proposto.

O PL estabelece um regime jurídico especial para animais não humanos (artigo 1º), constituindo, como seus objetivos fundamentais: 1) a afirmação dos direitos dos animais não humanos e sua proteção; 2) a construção de uma sociedade mais consciente e solidária; e 3) o reconhecimento de que os animais não humanos
possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes,
passíveis de sofrimento.

O propósito de afirmar os direitos dos animais não humanos deve ser o parâmetro interpretativo dos artigos seguintes do PL. Não se pode limitar a apreciação do PL apenas aos arts. 3º e 4º, sem considerar os influxos normativos e interpretativos do artigo 2º.

3) Considerações gerais e críticas
3.1) O Brasil está prestes a despontar, no cenário internacional, como o primeiro país a reconhecer legalmente os animais como sujeitos de direitos.

Em primeiro lugar, é importante apontar a amplitude subjetiva dessa requalificação jurídica: todos os animais passam a ser sujeitos de direitos, ainda que sem personalidade jurídica, e abandonam o regime jurídico da propriedade móvel semovente, cumprindo-se, agora também no plano legislativo federal, os princípios constitucionais da dignidade animal e da universalidade, extraídos do artigo 225, § 1º, VII, da Constituição brasileira de 1988.

Nem mesmo a emenda aprovada no Senado, que incluiu o parágrafo único ao artigo 3º, modifica essa amplitude, pois a sua pretensão expressa é excluir determinados animais da tutela jurisdicional, nada tratando da exclusão da subjetividade jurídica afirmada no caput para todos os animais.

3.2) Afirmar que os animais possuem natureza jurídica sui generis (artigo 3º, caput) significa reconhecer, em primeiro lugar, que os animais não são como humanos, nem são coisas, dado o reconhecimento que possuem "natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento" (artigo 2º, III, do PL).

Em segundo lugar, significa dizer que o legislador optou por qualificar os animais como sujeitos de direitos, mas numa categoria distinta de coisas e pessoas, como sujeitos de direitos, sem personalidade jurídica. Não parece haver retrocesso nesse sentido.

3.3) O projeto também opta por qualificar os animais como sujeitos de direitos, sem personalidade jurídica, não podendo, por essa razão, ser referidos como pessoas.

Parece claro, em primeiro lugar, que pequenos reparos de redação merecem ser feitos no texto original do projeto. É necessário refinar a terminologia adotada, para dizer que os animais são "sujeitos despersonificados de direitos", ao contrário de "sujeitos com direitos despersonificados" ou "sujeitos a direitos despersonificados", dado que, evidentemente, a despersonificação se refere aos sujeitos e não aos direitos.

Mas esses defeitos de redação não parecem possibilitar qualquer interpretação em desfavor da condição atual dos animais. Parece evidente que, mesmo sem personalidade jurídica, há progresso em qualificar todos os animais como sujeitos de direitos.

3.4) A inclusão da expressão "dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional" é muito interessante porque, ao mesmo tempo que o PL requalifica os animais como sujeitos de direitos, também garante a eles o acesso à Justiça, dotando-lhes de capacidade de ser parte. A tutela jurisdicional é a possibilidade de fazer valer os direitos subjetivos por meio da jurisdição e do processo. Na verdade, essa expressão nem sequer precisaria estar escrita, dado que a garantia do acesso à justiça é de índole constitucional (artigo 5º, XXXV, CF). Mas não é inócua. Ela reforça que, para além das tradicionais formas de tutela jurídica dos animais, esses também ostentam capacidade de ser parte, ou seja, podem figurar em relações processuais como demandantes, ampliando, sensivelmente, as formas de proteção animal por meio do processo.

3.5) A expressão final, "vedado seu tratamento como coisa", de início remete às legislações europeias que modificaram seus Códigos Civis no mesmo sentido. Mas o PL foi além, para dizer o que os animais são: sujeitos de direitos, sem personalidade jurídica. Mais do que isso, o PL realiza, no plano legal, o princípio da dignidade animal, segundo qual, promove-se o "redimensionamento do status jurídico dos animais não-humanos, de coisas para sujeitos, impondo ao poder público e à coletividade comportamentos que respeitem esse novo status, seja agindo para proteger, seja abstendo-se de maltratar ou praticar, contra eles, atos de crueldade ou que sejam incompatíveis com a sua dignidade peculiar".

3.6) Uma única objeção séria deve ser dirigida ao PL nº 6054/2019: a emenda aprovada no Senado, que incluiu um parágrafo único ao seu artigo 3º, para estabelecer que "a tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade". Essa exclusão é inconsistente do ponto de vista moral, na medida em que cria uma hierarquia arbitrária e injustificada entre animais: aqueles que são sujeitos de direito e podem fazer uso da tutela jurisdicional e aqueles que, embora sujeitos, não poderão fazer uso dessa mesma tutela.

Além disso, existe objeção de índole constitucional.

Mesmo considerando que o parágrafo incluído não exclui os animais nele referidos da qualidade de sujeitos de direitos (tanto é verdade que, na sua parte final, ordena que seja resguardada a dignidade desses animais), ele os exclui da tutela jurisdicional, ou seja, exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça aos direitos desses animais.

Essa exclusão da tutela jurisdicional dos direitos dos animais empregados na produção agropecuária, na pesquisa científica e nas manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro fere diretamente a garantia constitucional do acesso à Justiça, insculpida no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Sendo todos os animais sujeitos de direitos, como estabelece o caput do artigo 3º do PL, esses direitos podem sempre ser defendidos perante o Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, CF), pelo que o referido parágrafo, incluído no Senado, é inconstitucional e deve ser rejeitado pela Câmara dos deputados, a quem compete realizar a aprovação final do projeto.

3.7) Mas, mesmo na improvável hipótese de confirmação, pela Câmara dos deputados, dessa emenda do Senado, ainda assim o PL manterá o seu valor e a sua relevância, pois, repita-se, todos os animais passarão à qualidade de sujeitos de direitos, mesmo os animais da agropecuária, da pesquisa científica e das manifestações pretensamente culturais, com extraordinárias repercussões jurídicas, a serem mais bem determinadas pelo trabalho hermenêutico da doutrina brasileira.

Certamente, os juízes brasileiros, cônscios do seu dever de controle de constitucionalidade das leis, saberão repelir essa injusta e inconstitucional exclusão da tutela jurisdicional a certos animais, seja caso a caso, seja, de uma vez por todas, por decisão do Supremo Tribunal Federal, que já acumula importe acervo jurisprudencial de proteção da dignidade animal.

De toda forma, ainda que a inconstitucionalidade dessa emenda não seja declarada, os animais nela referidos continuarão podendo gozar da proteção jurisdicional, pelos meios tradicionalmente utilizados para a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado, com destaque à ação civil pública ambiental.

Isso tudo sem excluir a possibilidade das tutelas constitucional (regra da proibição da crueldade e princípio da dignidade animal), administrativa e penal dos animais, que não foram excluídas pela emenda.

3.8) Por fim, importante apontar que o PL, expressamente, por inclusão do artigo 79-B na Lei 9.605/1998, determina que "o disposto no artigo 82 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), não se aplica aos animais não humanos, que ficam sujeitos a direitos despersonificados".

É do artigo 82 do Código Civil que se tem deduzido que os animais são bens móveis, qualificação que é definitivamente afastada pelo PL.

Não parece que a inclusão desse artigo, nas disposições finais da Lei 9.605/1998, lei essa que não tem natureza apenas penal, mas também administrativa, enseje qualquer interpretação quanto à criação de uma excludente de criminalidade ou de antijuridicidade para os crimes contra a fauna.

4) Considerações finais
O Direito Animal, do ponto de vista do direito positivo, é o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica.

Pelas razões expendidas, a aprovação do PL 6054/2019, conhecido como PL Animais Não São Coisas, além de representar a consolidação definitiva do Direito Animal no ordenamento jurídico brasileiro, ampliará significativamente a tutela jurídica dos animais não humanos no Brasil.

O trabalho doutrinário que deverá se seguir à aprovação do projeto não se limitará ao Direito Animal, exigindo esforços hermenêuticos de outras áreas, especialmente do Direito Civil (persistirá a possibilidade de compra, venda e penhor de animais?), Direito Penal (animais passam a ser alguém para tipificação criminal?), Direito Tributário (continuam a incidir tributos sobre animais, que não podem ser tratados como coisas?) e, evidentemente, Direito Ambiental (será o fim da sua visão antropocêntrica?).

É importante, no entanto, insistir na rejeição da emenda do Senado que incluiu o parágrafo único ao seu artigo 3º, dada a sua flagrante inconstitucionalidade, por violação à garantia do acesso à Justiça (artigo 5º, XXV, CF).

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor permanente do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da UFPR, doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR e líder do ZOOPOLIS – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR.

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, da Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas, da Pós-Graduação da Pace Law School (Estados Unidos) e pesquisador do Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

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