Opinião

Afinal, quem decide sobre a Coronavac?

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30 de outubro de 2020, 18h21

Somos frutos de uma árvore plantada por liberais em solo permeado pela separação dos poderes e a supremacia da lei e da constituição. Dentro de um Estado de Direito, todos se submetem ao império da regra legal, mas, vejam bem, assim como não há indivíduos absolutos, inexiste, também, lei absoluta, ou seja, até a norma posta se curva aos princípios liberais trazidos em nossa Constituição.

A certeza de que até as leis podem ser anuladas, quando reconhecida a sua inconstitucionalidade, acirra o debate acerca da legitimidade de se impor a obrigatoriedade legal da Coronavac. Afinal, o Estado pode ou não pode interferir na nossa esfera individual, atingindo a liberdade de decidir sobre o nosso próprio corpo?

Pode, mas desde que devidamente justificado e comprovado de que, naquela situação, por meio da ponderação dos valores em jogo, o valor vida prevalece sobre o valor liberdade, por exemplo. É o caso da Coronavac?

Para o presidente da OAB-SP, Caio Augusto Silva dos Santos, sim [1]. Silva dos Santos afirmou que a obrigatoriedade, por lei, da vacina, não atenta contra a liberdade individual. É que, segundo explica, inexistem direitos absolutos, logo, na situação em que a não vacinação expõe o outro a risco, o Estado deve tornar a vacina obrigatória, protegendo, assim, todos os membros da coletividade.

Para o presidente da República, por sua vez, não. Jair Bolsonaro entende que não há espaço numa democracia para a imposição obrigatória de uma vacina, de maneira que a possibilidade de se adotar a vacinação compulsória para o enfrentamento do novo coronavírus, nos termos da alínea "d" do inciso III do artigo 3° da Lei 13.976, de 6 de fevereiro de 2020, não ocorrerá neste primeiro momento.

Há, no cenário internacional, uma discussão acerca da tendência irreversível ao totalitarismo, que, todavia, exige hoje uma vestimenta de acordo com a democracia, de maneira a fazer parecer que o que prevalece é, não a vontade da autoridade política, mas, sim, a liberdade de decidir. O grande problema é conseguir identificar que liberdade é essa passível de ser exercida dentro de um ambiente de manipulação, onde o medo confere o tom das nossas escolhas.

Bruce Ackerman, constitucionalista estadunidense e professor de Yale, afirma que os últimos 40 anos revelam o "desenvolvimento de instituições que permitem que os presidentes sejam eleitos com a manipulação da mídia, o emprego de uma burocracia altamente politizada e a interação direta com as Forças Armadas também politizadas, tornando-se, sistematicamente, mais populares que o Congresso", indicando o declínio e a queda da república, reflexão que ultrapassa a realidade norte-americana e alcança a de outras democracias liberais ocidentais, com destaque para a brasileira.

A preocupação de Ackerman com o presidencialismo contemporâneo em conjunto com a progressiva perda de legitimidade popular dos poderes majoritários, faz com que compreendamos o porquê de o Judiciário emergir como o poder capaz de resolver os problemas não solucionados pelo Legislativo e pelo Executivo. Há uma tendência irreversível de constituir o Judiciário como o sujeito legítimo a decidir sobre todos os interesses da nação?!

Não há dúvidas de que o impasse sobre a Coronavac pode ser levado a apreciação e decisão pelo Supremo Tribunal Federal. A questão que se coloca na ponta da caneta, ou melhor seria dizer, agulha, é quem pode impor a obrigatoriedade da vacina?

Vimos que o nosso Estado de Direito não convive com a ideia de indivíduos absolutos ou de leis absolutas. É possível, então, justificar a figura de juízes absolutos, para que haja a proteção e guarda da nossa Constituição?

A necessidade de resgate do Estado, do projeto constitucional, pode ser feita pela substituição do espaço da política pelo espaço judicial, dentro de um contexto em que o Judiciário se investe numa tarefa de tornar a Constituição uma realidade efetiva a partir de uma leitura cada vez mais ampliada?!

Néviton Guedes [2] afirma que há de se fazer sempre como o juiz da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes Jr. e reconhecer que, muito embora o magistrado não esteja amarrado "à letra fria da lei", os juízes atuam, necessariamente, dentro de um "tribunal de Direito", e não em uma "corte de Justiça", ou seja, o Judiciário, muito embora enfrente discussões envolvendo valores e interesses que não devem ser solucionados por uma visão estritamente positivista, não pode, também, se distanciar de fundamentos técnicos e jurídicos, ocupando um espaço que não é seu, mas, sim, dos poderes com representantes eleitos majoritariamente.

Isso leva à pergunta, no caso da Coronavac, se o STF, numa situação em que o presidente da República decide não optar pela vacinação compulsória ou mesmo pela compra das vacinas com a finalidade de serem distribuídas pelo SUS aos "livremente" interessados, pode substituir o juízo de valor do chefe do Executivo pelo seu próprio.

Isso é implementação de política pública ou concretização da Constituição?!

A título de ilustração, lembremos que o ECA, instituído com a finalidade de proteger a criança e o adolescente, dispõe que a vacinação é obrigatória sempre que houver orientação neste sentido das autoridades sanitárias. Há, assim, um poder de decisão da autoridade administrativa que pode ou não ser exercido pelo Poder Executivo e, uma vez exercido, pode ou não ser reconhecido como constitucional pelo Poder Judiciário, sem que haja espaço, todavia, para a implementação de políticas públicas pelos juízes, ainda que a isso se chame de "concretização da Constituição", diante da tendência irreversível de se camuflar qualquer lampejo autoritário com um formato democrático.

O Nobel de Economia Paul Krugman alerta no artigo "On The Economics Of Not Dying" que a pressão para o retorno das atividades nos Estados Unidos não acompanhou uma análise de riscos e apostou na sorte de que não haveria o aumento do número de mortos pela Covid-19. A postura de que o novo coronavírus não podia mais ser tratado como uma ameaça é sintetizada por Krugman em uma única frase: "O presidente e os seus aliados não querem os americanos usando máscaras, mas sim vendas nos olhos". A venda nos olhos, como os estudantes de Direito bem sabem, é usada pela Deusa da Justiça como símbolo da imparcialidade, muito embora se enfrente cada vez mais situações onde se presencie não um olhar igualitário da Deusa, mas, sim, um estado de cegueira que a impede de ver onde e por quem a nossa democracia vem sendo constantemente picada. Nessa situação, compete ao STF ser os "olhos da Justiça" ou deve, segundo a lição de Oliver Wendell Holmes Jr, atuar segundo a corte de Direito que é?! A pergunta não é fácil e os tempos estão cada vez mais difíceis.

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