Opinião

Considerações sobre a contratação de advogado privado pela Administração

Autor

  • Marinês Restelatto Dotti

    é advogada da União especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes responsabilidade e transparência".

30 de outubro de 2020, 19h24

A regra para a contratação de serviços advocatícios é a licitação. Contudo, certas situações, quando encaradas sob a perspectiva de compra e venda, subvertem-se, isto é, no caso de serviço advocatício, o elemento confiança, que integra o conceito de melhor técnica, perde-se quando se busca um profissional pelo menor preço a partir da licitação. Daí a Lei nº 8.666/1993 conferir à Administração Pública a possibilidade de contratar a prestação de serviço advocatício de forma direta, amparada na inexigibilidade de licitação.

Segundo o artigo 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para a contratação de serviços técnicos enumerados no artigo 13 da mesma lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização. Consideram-se serviços técnicos profissionais especializados, exercidos por advogados, os trabalhos relativos a assessorias ou consultorias e, ainda, o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas.

Inexigibilidade constitui exceção que deve ser precedida da comprovação da inviabilidade fática ou jurídica da competição. A prestação de serviços advocatícios pode desenvolver-se, como mencionado, na área de assessoria e consultoria jurídicas, por meio da emissão de pareceres, e do patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas. Para que a contratação direta encontre fundamento na inexigibilidade de licitação, contudo, é preciso demonstrar-se a singularidade do objeto da contratação e a notória especialização do profissional.

Da edição nº 97 (licitações), da publicação "Jurisprudência em Teses", do STJ, extrai-se que:

"A contratação de advogados pela administração pública, mediante procedimento de inexigibilidade de licitação, deve ser devidamente justificada com a demonstração de que os serviços possuem natureza singular e com a indicação dos motivos pelos quais se entende que o profissional detém notória especialização".

O serviço é singular quando portador de uma tal complexidade que o torna diferente dos da mesma espécie e que, consequentemente, só pode ser executado por profissional de especial qualificação. Traduz-se em serviço técnico incomum, raro, incomparável com outros, sem dar condições para que se proceda a qualquer competição entre os profissionais do ramo.

Recentemente, contudo, foi publicada a Lei nº 14.039/2020, que alterou a Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB), estabelecedora de que os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização. De acordo com aquele diploma (Lei nº 14.039/2020), portanto, toda e qualquer atividade exercida pelo profissional do Direito notabiliza-se pela singularidade, que deve estar conjugada com a notória especialização do profissional ou equipe de profissionais.

Considera-se notória especialização, segundo o artigo 25, §1º, da Lei nº 8.666/1993 (também definida no artigo 30, §1º, da Lei nº 13.303/2016 e no parágrafo único do artigo 3º-A da Lei nº 14.039/2020), o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. A notória especialização, pois, é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável — que fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, no mundo do Direito, mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio.

O voto do ministro Luís Roberto Barroso, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 45 (número único 4003252-92.2016.1.00.0000), a respeito da constitucionalidade dos artigos 13, inciso V, e 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993, que tratam, respectivamente, da qualificação dos serviços técnicos profissionais especializados e das hipóteses de inviabilidade de licitação, elencou, além da notória especialização do profissional a ser contratado e da natureza singular do serviço, outros três requisitos indispensáveis à legitimidade da contratação direta de advogados com base na inexigibilidade de licitação. São eles: "necessidade de procedimento administrativo formal", "contratação pelo preço de mercado" e "inadequação da prestação do serviço pelo quadro próprio do poder público".

A "necessidade de procedimento administrativo formal" é velha conhecida da administração pública. Encontra previsão no artigo 1º da Lei nº 8.159/1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e estabelece como deveres do poder público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração e como elemento de prova e informação e, ainda, no parágrafo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/1993, segundo o qual o "processo" de dispensa ou de inexigibilidade será instruído com os elementos que o mesmo dispositivo indica.

A "contratação pelo preço de mercado" também encontra previsão no parágrafo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/1993. Seu inciso III  relaciona como um dos elementos obrigatórios a constar no processo da contratação a justificativa do preço. Tão importante é o atendimento desse requisito legal que segundo o artigo 25, §2º, da Lei nº 8.666/1993, na hipótese de inexigibilidade e em qualquer dos casos de dispensa de licitação, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis. Além disso, constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário permitir ou facilitar a aquisição de bem ou serviço por preço superior ao de mercado (artigo 10, inciso V, da Lei nº 8.429/1992). O artigo 7º da Instrução Normativa nº 73/2020, do secretário de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que dispõe sobre o procedimento administrativo para a realização de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, orienta como deve ser realizada a justificativa do preço em contratações baseadas na inexigibilidade de licitação.

Especial atenção deverá ter o gestor público para que a atividade terceirizada ao advogado privado, contratado por meio de inexigibilidade de licitação, não seja também desempenhada por quadro próprio de advogados públicos da instituição. Segundo o voto do ministro Luís Roberto Barroso, a "disciplina constitucional da advocacia pública (arts. 131 e 132, da CF) impõe que, em regra, a assessoria jurídica das entidades federativas, tanto na vertente consultiva como na defesa em juízo, caiba aos advogados públicos". Traduz-se o requisito previsto no voto, acerca da observância, pelo gestor contratante, de eventual "inadequação da prestação do serviço pelo quadro próprio do poder público": a terceirização de atividades que são próprias do cargo público, in casu, de advogados públicos, infringe o disposto no artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Por isso, segundo o ministro, somente em caráter excepcional, desde que plenamente configurada a impossibilidade ou relevante inconveniência de que a atribuição seja exercida pelos membros da advocacia pública, caberá a contratação direta de advogados privados.

Autores

  • é advogada da União, especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência".

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