Opinião

O impacto da cultura do litígio na sociedade brasileira

Autor

  • André Salgado Felix

    é sócio do escritório Ernesto Borges professor da PUC/SP mestrando pela PUC/SP graduado em Direito pela PUC/SP com especialização em Contencioso Cível pela Escola da Magistratura de São Paulo e pós-graduado em Direito Contratual pela FGV/SP.

27 de outubro de 2020, 6h35

Anualmente, 18% da população adulta brasileira recorre à Justiça na ânsia de terceiros resolver seus conflitos. Já as despesas para a manutenção da máquina judiciária ultrapassaram o patamar de R$ 1 bilhão em 2019 [1], ou seja, um quarto do valor gasto com toda a educação básica no mesmo ano.

Por óbvio, devemos reconhecer a importância do Poder Judiciário e do amplo acesso à Justiça para o nosso Estado democrático de Direito. Não há dúvida de que ambos são peças fundamentais na garantia de nossos direitos, principalmente no atual cenário pátrio.

Igualmente, não há que se falar de baixa produtividade. Nossos juízes estão entre os mais produtivos no mundo e, mesmo assim, continuamos com o gargalo na prestação jurisdicional.

Mas de qual maneira combater o alto índice de litigiosidade sem tolher os cidadãos do amplo acesso à Justiça garantido pela Constituição Federal?

É inegável o empenho do legislador e do Judiciário em estimular a mediação e conciliação, traduzidos na obrigatoriedade das audiências de conciliação e na multiplicação dos Cejuscs, unidade do Poder Judiciário focadas na solução de conflitos. A despeitos desses e outros esforços, os números de conciliação na Justiça permaneceram inalterados.

Precisamos pensar em soluções fora do Poder Judiciário, é fundamental distinguir acesso à Justiça de acesso ao Judiciário. Cabe ao Estado, com o auxílio da sociedade (empresas e cidadãos), possibilitar a célere resolução dos conflitos, sem a intervenção mandatória do juiz.

Ou seja, o papel do Estado está em estimular a autocomposição, como verdadeiro filtro e catalisador da prestação jurisdicional e, por esse motivo, deve fazê-lo, também, fora do Poder Judiciário. A adoção de políticas públicas que incentivem a autocomposição na educação básica e desenvolvam ambiente seguro, capaz de aproximar e igualar cidadãos e empresas para que estes tentem solucionar problemas antes de se valer do Judiciário, são quesitos fundamentais para canalizar a atuação de nossos juízes onde de fato ela é necessária.

O descompasso pode aumentar na atual crise de saúde, os impactos sociais e financeiros decorrentes dos reflexos gerados pelo isolamento social e, em alguns casos extremos, pelo lockdown agravam os conflitos na sociedade. Cancelamentos de eventos e viagens, alterações de regramentos por medidas provisórias, descumprimentos contratuais, insuficiência financeira e atrito nas relações trabalhistas são apenas alguns exemplos das discussões que deverão ser absorvidas pelo Poder Judiciário já saturado pela demanda atual.

O universo jurídico necessita de mudanças de mindset que prestigiem o acesso à Justiça de forma ampla e, por vezes, fora do guarda-chuva do Poder Judiciário. A garantia do acesso ao Judiciário é inócua sem que haja a resolução célere e efetiva dos conflitos. O mesmo seria garantir acesso à saúde e não ter leitos de UTI suficientes para atender a população, pois se todo cidadão que se sinta lesado em algum de seus direitos solicitar ao Estado prestação jurisdicional, continuaremos com o Judiciário sobrecarregado e incapaz de responder às demandas que lhe são solicitadas de forma célere e eficiente.

 


[1] Justiça em Números 2019: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça — Brasília: CNJ, 2020. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf.

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