Opinião

Entre afirmações, negações e aventuras jurídicas: a independência funcional suicida

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23 de outubro de 2020, 13h35

Como é de conhecimento nacional, em acontecimento recente, um defensor público federal valeu-se de ação para atacar iniciativa da empresa Magazine Luiza, a qual, resumidamente, consistia em promover programa de trainee exclusivo para pessoas negras. Como é de costume, o agente público procurou legitimar sua atuação, no mínimo questionável, a partir da tão maltratada independência funcional. Diante disso, entre as inúmeras questões surgidas a propósito dos limites da independência funcional, para nós, uma emerge com maior importância: poderia o agente público, em nome da independência funcional, contrariar as próprias razões de ser da instituição que (re)presenta? Noutras palavras, é possível admitir o que aqui chamamos de independência funcional suicida?

Entendemos que não, obviamente, uma vez que qualquer instituição pública há de preceder, suceder e transcender seus agentes, os quais devem estar a serviço de seus objetivos, e não o contrário. Em português claro: pressuposto básico de uma instituição é que ela seja maior que seus agentes, sendo ilógico que se reconheça, por parte destes, a legitimidade para atuar contra a instituição a que servem, a partir de atos que, contrariando a essência institucional, corroem suas bases e a ameaçam de ruína na medida em que a opõem não só à história brasileira, mas aos próprios princípios constitucionais que justificam sua existência e motivam sua atuação.

Posto isso, temos que, no caso, é clara a ocorrência do que ora denominamos independência funcional suicida — inadmissível, repita-se. Isso porque o artigo 3º-A da LC nº 80/94 (a lei de regência máxima da Defensoria Pública) deixa claro os objetivos institucionais. Vejamos:

"Artigo 3º-A — São objetivos da Defensoria Pública:
I. a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais;   
II. a afirmação do Estado democrático de Direito;
III. a prevalência e efetividade dos direitos humanos;
IV. a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório".

Atenhamo-nos aos três primeiros incisos e já temos fundamentos suficientes para escancarar a ilegitimidade da atuação defensorial no caso Magazine Luiza. Afinal, ao afirmarem como objetivos da Defensoria Pública a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais: 1) a afirmação do Estado democrático de Direito; 2) e a prevalência e efetividade dos direitos humanos; 3) a lei, assegurando a coerência do ordenamento, atrela a razão de ser institucional — os objetivos que unificam a instituição — aos próprios princípios e objetivos fundamentais que regem o Estado de Direito pelo qual se expressa a República Federativa do Brasil. E se a cidadania, a dignidade humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa se estabelecem como princípios máximos regentes de nosso Estado de Direito (CF, artigo 1º, II, III e IV), os objetivos aos quais tem de servir na afirmação de sua legitimidade incluem a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (o que é pressuposto de desenvolvimento nacional), além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (CF, artigo 3º, I, II, III e IV).

Nesse ponto, mostram-se importantes algumas considerações a fim de garantir imunização a argumentos perversos tão em voga — até mesmo na moda. Para tanto, ressaltamos a necessidade de se interpretarem os dispositivos que estabelecem os princípios e objetivos regentes de nosso Estado de Direito — que há de buscar o maior bem-estar para o maior número possível de seus cidadãos —, a partir da história que faz deste país o Brasil. Noutras palavras, para que tenham sentido e estabeleçam com coerência a pauta de atuação das instituições que constituem a República Federativa do Brasil, nossos textos normativos hão de ser interpretados segundo nossos contextos históricos, de ontem e de hoje [1].

Para ilustrar o que acabamos de afirmar, vale um exemplo. Vamos a ele: não fosse o Brasil um país construído a partir de desigualdades abissais que seguem se perpetuando, não fosse a essência dessas desigualdades atrelada a um passado escravagista que se mantém presente a partir de um racismo estrutural [2], não fossem nossas favelas e prisões a abjeção reeditada de nossos navios negreiros e senzalas [3], nossos princípios e objetivos constitucionais até poderiam ser lidos como se vivêssemos imersos numa realidade de beatitude edênica, de igualdade histórica e estável — ou, mais precisamente, em conformidade com o delírio ariano-macunaímico que se alastra em níveis pandêmicos, estando aí uma designação que nos parece bastante adequada, na medida em que agrega uma espécie de mitomania contraditória duplamente patológica, bem indicativa do caráter e das pretensões tirânicas desavergonhadamente exibidas por uma certa branquitude tropical dada a narrativas as mais mirabolantes e anticientíficas.

Ocorre que não é assim. Neste país — mais que em alguns outros —, nunca houve e nem há nada que se aproxime de uma igualdade social (ou de cor, de raça, de sexo, gênero etc.) que possa legitimar iniciativas públicas que desconsiderem os pontos de desigualdade dos quais partimos — as quais frequentemente se escondem sob a máscara retórica do que se convencionou chamar meritocracia, que, em termos de Brasil, e é disso que tratamos aqui, nada mais é que um discurso perfumado sob o qual se procura ocultar relações estagnadas de dominação, a fim de manter tudo como está. E se nada há que possa legitimar iniciativas públicas que desconsiderem nossas desigualdades instituintes, pendentes de elaboração e solução — o que é condição para que alcancemos uma sociedade minimante livre, justa e solidária (que é o objetivo previsto no artigo 3º, I, da CF) —, tampouco há o que possa legitimar iniciativas públicas que, (de)negando nossa realidade, visem à perpetuação das relações de dominação cuja necessidade de transformação democrática justificam a disposição expressa dos princípios e objetivos previstos nos artigos 1º e 3º de nossa Constituição.

Nesse contexto, o mínimo que se espera dos agentes políticos é um razoável conhecimento da história brasileira, dimensão em que os atores do campo jurídico encontrarão o genocídio que se inicia no continente africano — menos da metade dos negros aprisionados desembarcavam com vida na costa brasileira — e tem curso na presente letalidade policial. Os senhores doutores então poderão observar a economia política do castigo — as peles negras profundamente marcadas por açoites e ferros, a serviço da manutenção do regime de produção — e a exclusão do negro na formação do proletariado brasileiro.  

No campo jurídico-penal, os bacharéis terão lições sobre a teoria da suspeição generalizada. Livre da unidade produtiva escravocrata, o negro foi submetido ao controle social racializado, havendo sonegação de direitos e violência estatal nos espaços periféricos. E se acaso o agente político não conseguir perceber o desastre social que afeta a população negra a partir do estudo da história brasileira, certamente poderá percebê-lo da janela de seu gabinete ou, talvez, durante uma caminhada pelas periferias de uma capital ou uma visitação a presídio. A dinâmica das ruas seguramente indicará a melhor hermenêutica para uma boa compreensão dos objetivos da Defensoria Pública, segundo nossa Constituição.

Diante de nossa história e de nosso ordenamento, portanto, temos que a atuação levada a cabo pelo defensor público federal contra a ação afirmativa da Magazine Luiza pode ser classificada, a um só tempo, como: 1) negacionista; 2) negativa; e 3) suicida, na medida em que, reproduzindo discursos autoritários bastante presentes em nossa contemporaneidade, marcados por contorcionismos de narrativa e retórica pelos quais se tenta perverter a realidade, nega a história do Brasil (atuação negacionista); opõe-se abertamente aos princípios e objetivos regentes do Estado democrático de Direito pelo qual se expressa a República Federativa do Brasil, os quais exigem ações afirmativas no sentido de redução de desigualdades múltiplas (atuação negativa); e, ao fazê-lo a partir de uma afirmada independência funcional, termina por contrariar os preceitos legitimadores da própria Defensoria Pública, cujas razões de ser estão vinculadas à observância dos princípios e objetivos constitucionais, tal como expressamente disposto no artigo 3º-A da LC 80/94 (atuação suicida).

Tal qual o mentiroso Barão de Münchhausen, o defensor tentou retirar-se do atoleiro negacionista das próprias ideias puxando-se pelos cabelos, crendo-se livre da necessidade de se apoiar na terra firme do Direito, mais precisamente no solo da Constituição e da LC nº 80/94. Sabendo-se impossível uma tal empreitada, no fim das contas, ao tentar privatizar uma instituição pública submetendo os princípios desta aos seus próprios interesses e peculiares visões de mundo, o defensor em questão terminou escancarando a gravidade destes tempos, em que empresas parecem ter mais senso de justiça social que agentes públicos por lei comprometidos com esse ideal. Resta-nos, portanto, resistir: pela população brasileira, pela Constituição Federal, pelo Estado democrático de Direito e pela Defensoria Pública.


[1] Vale pontuar: referimo-nos a normas que pautam a atuação do Estado a partir de objetivos constitucionalmente postos. O que ora afirmamos não se presta, por exemplo, à relativização de garantias constitucionais dos cidadãos frente ao poder do Estado, as denominadas garantias liberais clássicas.

[2] CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[3] A propósito do tema, recomendamos a leitura de ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

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