Opinião

O trainee do Magazine Luiza: para o que serve um Defensor Público Federal?

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11 de outubro de 2020, 14h08

A notícia sobre uma ação civil pública contra o programa de trainees exclusivo para negros promovido pela empresa varejista Magazine Luiza chamou atenção nesses últimos dias. Não apenas pelo conteúdo da ação em si, pois seus questionáveis objetivos e fragilidade argumentativa mereceriam uma análise à parte, mas também pelo fato de o autor da ação ser um defensor público federal.

A leitura de tal notícia, ao promover uma espécie de representação da realidade com sinais trocados, acaba por suscitar uma pergunta que deve ter ecoado na cabeça de muitos que ficaram surpresos com tal atuação institucional: afinal, para o que serve uma Defensoria Pública? A resposta mais fácil e meramente formal à pergunta formulada pode se valer daquilo que está previsto em nossa Constituição, quando essa diz que a Defensoria tem como função a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados.

Nesse caminho, a compreensão da forma como o modelo de Defensoria é concebido em nossa sociedade pode nos ajudar a compreender os seus objetivos, e assim uma outra indagação complementar deve ser feita: afinal, o que é uma Defensoria Pública? Ainda na linha das respostas fáceis, poderia se dizer que a Defensoria Pública é uma instituição permanente, essencial ao sistema de justiça, pois é exatamente isso que o texto constitucional nos diz em seu artigo 134.

Apesar da aparente irrelevância dos questionamentos, já que suas respostas seriam encontradas sem dificuldade na literalidade da redação constitucional, a questão é muito mais turva e complexa. Uma análise que vá para além dos textos jurídicos e dê conta de enxergar a dicotomia e nuances que atravessam o mundo institucional versus mundo real pode nos fornecer pistas de como viemos parar aqui (nessa ação civil pública que pede a reserva de vagas no programa de trainee para candidatos não negros), e, por consequência, pode indicar o caminho de volta, pois a superação de um impasse geralmente exige a compreensão das suas causas. Assim, problema e solução acabam por dividir uma via de mão única, sem atalhos aparentes.

Nessa perspectiva, as indagações anteriores, “para o que serve uma defensoria?” e “o que é uma defensoria?” devem ser repetidas com a ressalva de que não serão admitidas respostas reprodutoras de leis. Com essas limitações intencionalmente impostas, tais perguntas apenas podem ser respondidas com base na realidade, mais especificamente com base no que é possível se constatar até o presente momento. Essa procura por uma visão anti essencialista se aplicaria não apenas para Instituições, mas para indivíduos de uma forma geral, pois em certa medida apenas somos aquilo que temos sido até o presente momento.

Portanto, da mesma forma que as demais instituições do sistema de justiça, como Poder Judiciário e Ministério Público, tanto a definição quanto a função da Defensoria Pública possui uma dupla face: aquilo que se anuncia ser e fazer pode não ser o mesmo daquilo que de fato é e faz. Por tal motivo, a definição da Defensoria Pública não pode ser um discurso unidirecional, da instituição para a sociedade, sob pena de se tornar vazio e tautológico. O caminho é justamente o inverso.

Nesse sentido, a realidade aponta para a existência de uma instituição historicamente comprometida com pautas progressistas de direitos humanos. É reconhecida no meio jurídico a atuação da Defensoria Pública como trincheira de resistência contra abusos e interpretações legais duvidosas na seara criminal. Para ficamos com um caso recente, foi a Defensoria Pública da União a responsável pela impetração de habeas corpus coletivo no Supremo Tribunal Federal para a concessão de liberdade para presos que compõem o grupo de risco da Covid-191. Outras atuações situam essa instituição na vanguarda de entendimentos avançados, os quais foram posteriormente abraçados pela jurisprudência. Esse é o caso do reconhecimento da não hediondez do tráfico privilegiado pelo STF2, atuação que contribuiu para o não encarceramento em massa daqueles transportadores de pequenas quantidades de entorpecentes, sem nenhum poder de comando e voz nas hierarquias das organizações, completamente insignificantes na política estatal de “guerra às drogas”.

Em relação às pautas e demandas provenientes de grupos sociais subalternizados, mais especificamente em relação à população negra, o trabalho desenvolvido nos últimos anos pela Defensoria Pública da União conecta-se diretamente a uma leitura de nossa sociedade como sistêmica e estruturalmente racista, procurando formas de atuação que não apenas escancare, mas também confronte tal realidade, no intuito de impedir sua perpetuação.

Para darmos um pouco de concretude ao que está sendo dito, cabe dizer por exemplo que o grupo de trabalho étnico-racial, formado por Defensores Públicos Federais que se debruçam sobre formas de atuação dentro dessa temática, lançou a campanha institucional “interfaces do racismo”, e através da elaboração e divulgação de vídeos extremamente acessíveis e elucidativos passou a servir como canal de propagação de ideias contra hegemônicas sobre a formação da nossa sociedade3. Recentemente, a Defensoria Pública da União buscou, através do ajuizamento de ação civil pública conjuntamente com outras organizações sociais, a implementação de diretrizes e ferramentas que permitam a realização de um recorte étnico-racial na coleta dos dados sobre as pessoas acometidas pela Covid-19. Tal atuação tem o intuito de revelar o quanto as desigualdades em razão da raça também se estendem, e se agravam, em momentos de calamidade, como é o caso da atual pandemia4, exigindo a adoção de políticas públicas específicas. Demais atividades relacionadas à pauta racial apenas deixam de ser citadas em razão do espaço desse texto.

Assim, pela perspectiva das ações concretas mencionadas, poderíamos dizer que aquilo que a Defensoria Pública de fato vem sendo e fazendo se aproxima muito daquilo que encontramos em sua descrição no texto constitucional. Porém, ao lado dessas considerações, cabe dizer que uma instituição, além de um viés estrutural que lhe fornece tanto uma imagem pública quanto capacidade de ação institucional, também é formada por pessoas. Assim, agência e estrutura atuam de forma indissociável.

E os agentes que formam uma instituição são inevitavelmente atravessados por marcadores sociais diversos, relacionados à classe, raça, gênero, sexualidade, religião, origem, etc. Ainda que majoritariamente as instituições públicas de nosso país sejam ocupadas por uma classe média, branca, privilegiada (inclusive essa que escreve), fato é que cada uma dessas pessoas é um emaranhado de referências, cada uma com um histórico de vida próprio e perspectivas de mundo bastante diversas.

A epistemologia social contemporânea vem denunciando há algum tempo que qualquer tipo de conhecimento que se auto proclame universal e imparcial é, na verdade, um conhecimento localizado e geralmente reprodutor do discurso eurocêntrico que se situa em uma teia de privilégios, pois “assim como todas as práticas humanas, o conhecimento é possibilitado ou frustrado por fatores materiais, políticos, geográficos, situacionais, culturais, dentre outros” (CODE, Lorraine, 2017, p. 92)5.

Tendo isso em vista, os princípios da indivisibilidade e unidade, apesar de essenciais para a operacionalização de uma engrenagem democrática institucional como a Defensoria Pública, não é capaz de afastar as subjetividades forjadas a partir das experiências de vida de cada um de seus membros. Foi isso que a ação civil pública ajuizada contra o programa de inclusão racial da rede varejista nos mostrou. Porém, o episódio foi capaz de nos revelar outras coisas também.

Nos serviu para lembrar que a captura de atuações institucionais por perspectivas conservadoras e até mesmo violentas de mundo não poupa ninguém, nem mesmo instituições que sempre se colocaram ao lado das pautas mais progressistas do campo democrático. Se a Defensoria Pública da União vem servindo nos últimos anos ora como contenção de todo tipo de violação e abusos praticado contra grupos vulnerabilizados ora como percursora na garantia de direitos a esses mesmos grupos, hoje ela está sendo lembrada pela ação civil pública que se utiliza do argumento da igualdade para perpetuar a desigualdade.

Uma vez identificadas tais capturas, devem as mesmas serem confrontadas tanto por vias internas quanto externas de críticas e responsabilizações. Entretanto, se a confrontação é possível, e extremamente desejável, não existem caminhos fáceis para se evitar que tais capturas ocorram, pois elas são um reflexo de um problema mais profundo, não apenas de nossa sociedade e não apenas de nossa época. As capturas institucionais não são rupturas de um sistema que esteja funcionando de forma equilibrada e harmônica. Pelo contrário, elas são apenas as notas mais agudas de uma partitura que desafina em um tom autoritário.

Talvez o caminho para que tais notas sejam evitadas passe por uma pequena modificação da pergunta que iniciou esse texto. Assim, a sugestão é que sempre que um defensor público tiver diante de si uma possibilidade de atuação, deveria se questionar: a quem serve a Defensoria Pública? A resposta a essa pergunta não pode perder de vista que, diante de uma sociedade extremante desigual e injusta como a nossa, o compromisso de um defensor público, que um dia fez o juramento de cumprir a Constituição, deve ser sempre com aqueles que se encontram no entrecruzamento de subalternizações, um lugar em que os discursos sobre igualdade ainda não chegaram, porque talvez nunca tenham tido essa intenção.


1 https://www.conjur.com.br/2020-jul-18/coronavirus-defensoria-liberdade-ou-domiciliar-presos#:~:text=A%20Defensoria%20P%C3%BAblica%20da%20Uni%C3%A3o,estejam%20detidos%20em%20estabelecimentos%20superlotados.

2 https://www.anadef.org.br/noticias/ultimas-noticias/item/apos-atuacao-da-dpu-stf-considera-que-crime-de-trafico-privilegiado-nao-tem-natureza-hedionda.html

3 https://dpu.jusbrasil.com.br/noticias/649546241/dpu-lanca-serie-interfaces-do-racismo-em-cerimonia-na-camara-dos-deputados

4 https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-05/justica-determina-registro-obrigatorio-de-raca-em-casos-da-covid-19

5 CODE, Lorraine. Epistemic Responsability. In KIDD, Ian James; MEDINA José; POHLHAUS Jr., Gaile (org.) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. New York: Routlegde, 2017.

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