Opinião

O banco de horas negativo da MP 927 e o desconto nas verbas rescisórias

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7 de outubro de 2020, 15h08

A pandemia da Covid-19 provocou impactos no Direito Trabalhista, incluindo a possibilidade de implantação do banco de horas "ampliado" como estratégia para mitigar os efeitos da crise sanitária nas relações de trabalho.

O histórico da previsão de banco de horas

O banco de horas é uma forma de flexibilização da jornada de trabalho, a qual poderá sofrer aumento ou redução a depender da necessidade do empregador. As horas extraordinárias trabalhadas ou as horas negativas devidas pelo empregado podem ser compensadas, em prazo previamente determinado, sem a redução do salário do trabalhador, no caso de horas negativas, e sem o pagamento das horas excedentes.

A compensação das horas tem o limite de duas horas "extraordinárias" por dia, limitadas a dez horas de trabalho diárias, de acordo com o artigo 59, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sendo que as excedentes deverão ser pagas pelo empregador com o devido adicional. Em contrapartida, o "limite" para inclusão das horas não trabalhadas no banco de horas negativo pode abarcar toda a jornada diária do empregado.

O artigo 7º da Constituição Federal de 1988 prevê jornada não superior a oito horas diárias e 44 semanais, sendo facultativa a compensação de horários e a redução da jornada, mediante negociação coletiva. A negociação coletiva é justamente a excepcionalidade exigida pela Constituição Federal ao se discutir matérias que possam trazer a redução de direitos aos trabalhadores.

A Lei nº 9.601/1998 introduziu a figura do "banco de horas" anual, condicionando sua permissão à necessidade de negociação coletiva, com o objetivo de flexibilizar a jornada de trabalho durante a grande recessão econômica sofrida pelo país, em tentativa de combater o aumento do desemprego. Dessa forma, os empregados poderiam compensar as horas não trabalhadas, através de acordo ou convenção coletiva, pelo período de um ano, sem que houvesse a rescisão do contrato.

A Lei nº 13.467/2017, que flexibilizou ainda mais os direitos dos trabalhadores, trouxe o prazo de seis meses para compensação do banco de horas, sem a necessidade de negociação coletiva. As alterações do artigo 59 da CLT, em 2017, já configuraram uma redução no direito do trabalhador ao prever que: 1) a prestação de horas extras habituais não descaracteriza o acordo de compensação de jornada e o banco de horas; e 2) o não atendimento das exigências legais para compensação não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional.

A previsão do banco de horas trazida pela pandemia da Covid-19
A Medida Provisória (MP) 927/2020, vigente até 19/7, em seu artigo 14, trouxe a possibilidade de interrupção das atividades pelo empregador e da constituição de banco de horas, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até 18 meses, contados da data de encerramento do estado de calamidade pública. Ou seja, a compensação deverá ocorrer a partir de 1º/1/2021, por até 18 meses, encerrando o prazo, portanto, em junho de 2022, salvo a prorrogação do período de calamidade pública.

Ademais, tendo a MP 927/2020 perdido a vigência em 19 de julho, nenhum empregador pode manter o banco de horas negativo nos termos da referida medida. O controle de horas pelo empregado já era uma crítica recorrente à flexibilização quanto ao banco de horas. Com a instituição do banco de horas ampliado de 18 meses decorrente da MP 927/2020, ficou ainda mais difícil o controle do que foram horas computadas no período da vigência da MP e o que não foi [1].

Em decorrência desse prazo estendido para compensação sem a participação do sindicato, permitido até 19/7, surgiu a pergunta de, no caso de haver rescisão do contrato de trabalho antes da compensação das horas negativas no banco de horas, se essas poderiam ser descontadas das verbas rescisórias.

Então, e se houver desligamento? Pode haver desconto do banco de horas?
Não existe nenhuma previsão legal que permita o desconto do saldo negativo do banco de horas nas verbas rescisórias.

O desconto das horas negativas é permitido após o término do período do prazo de compensação, em qualquer modalidade de banco de horas, já que, se não houve cumprimento da jornada contratual pelo empregado ao dever horas, o empregado não é obrigado a realizar a contraprestação de seu salário total. É a mesma lógica aplicada aos descontos das faltas injustificadas, permitidos pelo artigo 58, §1º, da CLT.

No caso da compensação prevista na MP, se até junho de 2022 (salvo prorrogação do estado de calamidade pública) as horas negativas não forem compensadas, poderão ser descontadas no holerite do empregado no máximo de 30% de seu salário mensal, por analogia à previsão do artigo 6º, §5º, da Lei nº 10.820/2003.

O artigo 462 da CLT obsta o empregador de efetuar descontos do empregado que não sejam previstos em dispositivos de lei ou negociação coletiva, além de adiantamentos salariais. Exemplos de verbas que podem ser deduzidas no desligamento são contribuições previdenciárias, contribuição sindical, imposto de renda, faltas injustificadas, mensalidade do plano de saúde — se normalmente paga em holerite —, pensão alimentícia, dentre outras específicas de cada contrato de trabalho.

Nesse sentido, há discussão sobre a possibilidade do desconto das horas negativas em geral, porque a Constituição Federal não autoriza a compensação de banco de horas negativo com os salários ou com a rescisão do empregado. Há somente a possibilidade de compensação de horas negativas com horas positivas, por se tratar da mesma verba (horas trabalhadas ou não), nos termos do artigo 7º, XIII, da CF/88. Permitir o desconto das horas negativas sobre qualquer verba devida ao trabalhador seria transferir o risco da atividade econômica ao empregado, o que é proibido pelo artigo 2º da CLT.

Nesse aspecto, vale aprofundar a discussão acerca da alegada inconstitucionalidade da permissão de banco de horas sem a participação do sindicato, por acordo individual. Se desde a entrada em vigor das alterações da Lei nº 13.457/2017 já havia se colocado em pauta a precariedade das disposições dos direitos dos empregados previstos em lei por negociação coletiva ("negociado sobre o legislado"), pior ainda seria pensar que, pela MP 927/2020, bastaria acordo individual para imposição de banco de horas com prazo ainda mais extenso para compensação. Assim, a imposição da vontade patronal se daria em sobreposição à Constituição Federal, sem qualquer necessidade de efetiva negociação, diante do caráter hipossuficiente do empregado, que acaba por acatar as determinações patronais sob receio do desemprego.

As previsões trazidas pela Lei 13.457/2017 já eram objeto de apontamentos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) [2] como violadoras das Convenções Internacionais nº 98 e 154, ratificadas pelo Brasil, incluindo o Brasil na "lista suja" da organização [3], não sendo inesperado que as flexibilizações trazidas pela MP 927/2020 seguissem o mesmo caminho. Os apontamentos pela OIT foram no sentido de que a utilização genérica do "negociado sobre o legislado" ocasionaria a redução da proteção social do trabalho, sem sequer ter havido a discussão da Lei 13.457/2017 em fórum tripartite para diálogo com os interlocutores sociais do país. Aliás, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu declaração de número 01/20 [4], em 9 de abril de 2020, enfatizando que as medidas tomadas para combate à pandemia devem observar a proteção aos direitos humanos, com respeito aos direitos dos trabalhadores e aos tratados internacionais firmados pelo país.

Já houve questionamento da MP através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.342, que afirma ser inviável a revogação, por meio de ato individual, de banco de horas estabelecido em acordo coletivo, asseverando ser excessivo o prazo de 18 meses para a compensação de jornada. Ainda que a decisão liminar tenha sido negativa por considerar a situação excepcional de pandemia, ainda é aguardado o julgamento pelo colegiado.

Deve-se observar que há posicionamento que entende ser possível o desconto das horas negativas na rescisão quando há autorização via negociação coletiva, nos termos do acórdão do Processo nº 1000247-81.2019.5.02.0465, julgado pela 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região em 10/12/2019. A compensação deveria se dar sobre parcelas de mesma natureza, de modo que o banco de horas negativo só poderia ser compensado, em tese, somente com o saldo de salário devido na rescisão.

Torna-se claro pelo exposto que, se o empregador determinou a suspensão das atividades, com imposição do banco de horas negativo, se entender pela dispensa do empregado antes da total compensação das horas negativas, não pode imputar ao ex-empregado o prejuízo das horas que não pôde trabalhar.

Mais grave ainda seria se a rescisão ocorresse antes de 31 de dezembro (término atual do estado de calamidade pública), já que o prazo para compensação das horas se inicia somente após o término dessa condição. Assim, caso o empregador rescinda o contrato antes de iniciar o prazo para compensação, não pode descontar as horas não trabalhadas.

Conclusão
O desafio do tema, considerando um cenário macro, encontra-se nas soluções institucionalizadas para as consequências da crise, agravada pela pandemia, na qual resta nítida a deterioração das condições de trabalho, gerando uma "superexploração do trabalho destrutiva de toda organização produtiva" [5].

As leis trabalhistas referentes ao banco de horas, desde 1998, vêm sendo flexibilizadas em momentos de crise econômica, ao estender os prazos para compensação pelo empregado e dispensar a participação de negociação coletiva, colocando em cheque o direito do trabalhador previsto constitucionalmente em prol da alegada tentativa de manutenção de empregos. A generalização da justificativa de situação excepcional que permitiria a maior flexibilização dos direitos do trabalhador gera uma desenfreada retirada de direitos da classe trabalhadora, principalmente porque essa, sem a intervenção do sindicato profissional fortalecido, não conta com condições isonômicas de negociação quando comparada ao empregador.

Os artigos 611-A e 611-B da CLT já eram criticados no âmbito nacional e internacional ao permitirem a flexibilização de direitos através de negociação coletiva, e a dispensa dessa condição por medida provisória suscita ainda maior censura. A permissibilidade de desconto na rescisão do banco de horas negativo através de acordo individual seria passível de discussão judicial, ante a infração aos princípios do direito do trabalho.

Além de toda a argumentação sobre a (in)constitucionalidade das previsões da Lei 13.467/2017 e da MP 927, deve-se considerar a indevida responsabilização pelo empregado pelo risco do negócio do empregador, já que este que determinou a realização de compensação de horas decorrente da pandemia, em relação à qual o empregado não possui qualquer influência.

Diante do exposto, é possível o desconto do banco de horas negativo na rescisão se houver negociação coletiva permitindo, conforme já decidido anteriormente pelos Tribunais Regionais do Trabalho, pois, com a participação do sindicato profissional, haveria equidade entre as partes negociantes. Sem previsão coletiva, existe a possibilidade, ainda que questionável judicialmente ante nítida ofensa constitucional, de desconto do saldo negativo na rescisão, desde que respeitado o prazo conferido pela MP 927 e Decreto Legislativo 6/2020 para início da compensação pelo empregado e, em qualquer das hipóteses, o limite de desconto de um salário do artigo 477, §5º, da CLT.

A crise sanitária traz efeitos inesperados sobre as relações trabalhistas. O banco de horas é um dos institutos que passaram a ter aplicação mais intensa durante esse contexto, com o objetivo de manutenção de empregos. Sua correta interpretação e concretização, contudo, permanece em disputa na jurisprudência, de modo que a discussão deverá prosseguir nesses âmbitos ainda por certo tempo.

 

Referências bibliográficas
CASSAR, Vólia Bonfim; BORGES, Leonardo Dias. Comentários à Reforma Trabalhista. São Paulo: Método, 2017.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo. LTr, 2019.

DELGADO, Mauricio Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei nº 13.467/2017. São Paulo : LTr, 2017.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2000, p. 528.

PORTO, Lorena Vasconcelos. Medidas provisórias nº 927/2020 e 936/2020: negociação coletiva e controle de convencionalidade. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3. Região. Belo Horizonte, edição especial, t. I, p. 147-170, jul. 2020. Disponível em: http://as1.trt3.jus.br/bd-trt3/bitstream/handle/11103/55882/Revista%20TRT-3%20Covid%2019%20tomo-1-147-170.pdf?sequence=1&isAllowed=y

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Que a doença nos cure: há esperança? Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, edição especial, t. I, p. 235-246, jul. 2020, p. 242.

VAZ, Audrey Choucair. Banco de horas: da instituição à medida provisória 927/2020: da exceção à generalização da compensação da jornada. Revista do TRT10, vol. 24, n;1, disponível em https://revista.trt10.jus.br/index.php/revista10/article/view/395/319. Acesso em: 15/09/2020.


[1] VAZ, Audrey Choucair. Banco de horas: da instituição à medida provisória 927/2020: da exceção à generalização da compensação da jornada. Revista do TRT10, vol. 24, n;1, pág. 18. Disponível em https://revista.trt10.jus.br/index.php/revista10/article/view/395/319. Acesso em: 15 set. 2020.

[3] OIT. Informe de la Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—relconf/documents/meetingdocument/wcms_617067.pdf Acesso em: 18 set. 2020.

[4] CORTE IDH. Declaración de la Corte Interamericana de Derechos Humanos 1/20 de 9 de abril de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/alerta/comunicado/declaracion_1_20_ESP.pdf  Acesso em: 18 set. 2020.

[5] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Que a doença nos cure: há esperança? Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, edição especial, t. I, p. 235-246, jul. 2020, p. 242.

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