Opinião

'Pode isso, Arnaldo?': O TCU e a tentativa de 'drible da vaca' no Tema 899 do STF

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3 de outubro de 2020, 9h14

A discussão acerca da (im)prescritibilidade das decisões dos Tribunais de Contas ganhou novo recorte com o julgamento do Recurso Extraordinário 636.886 e a apreciação do Tema 899 pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, acertadamente o Supremo firmou entendimento, em tese de repercussão geral, no sentido de que é "prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas".

A decisão, que não deixou de vir acompanhada de diversas críticas de alguns setores, notadamente das instâncias de controle estatal, considerou as premissas fixadas anteriormente pelo Supremo nos Temas 666 [1] e 897 [2], no sentido de acertadamente assegurar a excepcionalidade da tese da imprescritibilidade, que traz em si induvidosas fragilidades, aos atos dolosos de improbidade que importem em ressarcimento ao erário.

Ainda que, a um primeiro olhar de um "constitucionalista raiz", a distinção possa até parecer desnecessária ou excessiva — uma vez que, a partir de uma perspectiva de densificação constitucional, os atos de improbidade administrativa somente deveriam ser assim considerados se revestidos do elemento subjetivo doloso —, a decisão representou, sim, verdadeira quebra de paradigma ao considerar que a dita imprescritibilidade, lida pelo Supremo como inserta no artigo 35, §5º, da Constituição de 1988, não seria aplicável à pretensão fundada em decisão proferida pelo Tribunal de Contas.

E isso por razões (que deveriam ser) bastante óbvias, se estivéssemos em tempos de normalidade institucional/democrática, conforme definiu o STF (Tema 899), a saber: a) "a Corte de Contas, em momento algum, analisa a existência ou não de ato doloso de improbidade administrativa"; b) inexistindo decisão judicial pela existência de ato ilícito doloso, bem como, por conseguinte, efetivação do contraditório e ampla defesa no âmbito do Tribunal de Contas, "não é possível ao imputado defender-se no sentido da ausência de elemento subjetivo".

Assim, com a afirmação da tese, muitos esperavam que a revisão do entendimento segundo o qual as imputações de débito, no âmbito do Tribunal de Contas da União, são imprescritíveis.

Ledo engano! Como dissera o músico/poeta, "o Brasil não é para principiantes" e, agora, dizemos nós que a discussão parece estar longe de chegar ao fim.

É que, desde quando publicado o julgamento de mérito do Tema 899 (em 24 de junho de 2020), o TCU tem, para dizer o mínimo, indicado certa resistência ao entendimento, aparentemente procurando alternativas para "driblar" a tese firmada. Daí o título deste breve ensaio, no sentido de invocar conhecido bordão que pede auxílio a um dos nossos mais famosos árbitros de futebol e analisarmos essa aparente tentativa de "drible da vaca" no Tema 899 do STF.

O fato é que, antes mesmo da definição da controvérsia, o TCU já havia se posicionado (Acórdão 1282/2019 — plenário) no sentido de que eventual entendimento se aplicaria "tão somente à fase judicial de cobrança do título executivo extrajudicial exarado com a decisão da corte de contas", não atingindo as demandas em tramitação no órgão de controle. Uma espécie de "primeiro veja bem", para lembrarmos de um célebre comercial de uma conhecida marca nacional de materiais para construção!

Na mesma linha, por meio do Boletim de Jurisprudência 315/2020, o Tribunal de Contas reiterou que o Tema 899 do STF alcançaria somente a fase judicial de execução, portanto, sem consequências nos processos de controle externo no âmbito do TCU. Aqui, o que poderia ser considerando um "segundo veja bem"!

Parando aí a situação já seria suficientemente confusa, uma vez que a decisão proferida pelo Supremo no RE 636.886 consignou expressamente que a prescritibilidade das decisões proferidas pelo TCU era necessária para marcar "um prazo legal para o poder público exercer sua pretensão punitiva, não podendo, em regra, manter indefinidamente essa possibilidade, sob pena de desrespeito ao devido processo legal"[3].

Contudo, não bastasse esse "drible" inicial, agora o TCU parece ter se encorajado numa jogada mais ousada (para não dizer temerária!). É que, com a nítida intensão de contornar a tese da prescritibilidade, o Tribunal de Contas agora se propôs também a realizar juízo de aferição do elemento subjetivo doloso nas supostas "condutas de improbidade", situação expressamente vedada (e, diga-se de passagem, cerne da fixação do Tema 899) naquele âmbito de controle. Caso inequívoco e fatal de "terceiro veja bem"!

A nova orientação pode ser notada pelo julgamento dos Acórdãos nºs 1.482/2020, 7.687/2020 e 8498/2020, a saber:

— No primeiro precedente (Acórdão nº 1.482/2020), o TCU considerou que a ausência injustificada de prestação de contas configura ato doloso de improbidade administrativa, quase como em criação de hipótese de "responsabilidade por improbidade objetiva", sem que seja necessária a perquirição da conduta subjetiva do agente.

— No segundo precedente (Acórdão nº 7.687/2020), foi atribuído pelo TCU espécie de "dolo eventual" à conduta dos agentes. Na oportunidade, consignou expressamente a utilização do "ato passível de ser caracterizado como de improbidade administrativa e presença de 'dolo' na conduta do responsável", para fins de imprescritibilidade do ressarcimento.

— No terceiro precedente (Acórdão 8498/2020), o TCU verificou "indicativos" de ato doloso de improbidade administrativa como causa de dano ao erário na conduta dos agentes, "o que, em tese, revestiria a pretensão ressarcitória de imprescritibilidade". Na ocasião, foi feita a seguinte ressalva:

"Ainda que não caiba ao TCU a capitulação formal da conduta sob tal categoria jurídica, o que lhe obsta o exercício da pretensão de ressarcimento, não há impedimento a que o tribunal prossiga no desempenho de sua atividade fiscalizatória, se assim justificarem a materialidade e a relevância do fato, valendo-se de sua expertise na apuração do dano, inclusive de modo a subsidiar eventual atuação em juízo".

Portanto, o que tem feito o TCU? Exatamente o que consignou o STF para justificar as razões de prescritibilidade das decisões de Tribunal de Contas.

Pelo visto, agora também no âmbito dos Tribunais de Contas parece que haverá a aferição do elemento subjetivo doloso nas condutas que, em tese, configurariam improbidade administrativa — situação ordinariamente afeta à via judicial, justamente em razão da proteção dos direitos dos acusados, em especial (mas não exclusivamente) no que toca ao efetivo contraditório e à ampla defesa.

E aqui não se pode esquecer, em que pesem os esforços do TCU em driblar o entendimento exposto pelo Supremo no Tema 899, que tal posicionamento possui consequências mais preocupantes que a própria prescritibilidade do ressarcimento ao erário.

A definição dos atos de improbidade administrativa perpassa por uma análise acerca dos elementos trazidos pela Lei 8.429/92, especialmente em razão das gravosas sanções destinadas à coibição do ato ímprobo, dentre elas a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar com o poder público (artigo 12).

Por outro lado, e conforme sabido, o procedimento administrativo de controle de contas não pode ser confundido com o processo judicial, porquanto não é dotado das garantias fundamentais imprescindíveis à constitucional aferição da improbidade.

Caberia ao TCU fazer tal juízo? Essa, seguramente, é uma questão mais complexa e que mereceria uma análise muito mais aprofundada — e que parece estar longe de uma resposta definitiva!

Mas fica, ainda, outro questionamento: até onde irá o TCU para conservar esse quinhão de atribuição/autoridade, no sentido de declarar imprescritível o ressarcimento ao erário? Ao que parece essa pergunta também seguirá — pelo menos por um tempo — sem resposta.


[1] Tema 666 do STF: "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

[2] Tema 897 do STF: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

[3] STF. RE nº 636.886/AL, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?incidente=4046531. Acesso em 4 set. 2020.

Autores

  • Professor de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC; mestre e doutor em Direito pela UFSC, com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal; coordenador do GEDIP/CCJ/UFSC; conselheiro Federal da OAB/SC; presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional; advogado em Santa Catarina.

  • é advogada em Santa Catarina, mestranda em Direito pela UFSC e membro do Gedip/CCJ/UFSC.

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