Opinião

Seria a monogamia mais importante do que a proteção das famílias?

Autor

  • Paloma Braga Araújo de Souza

    é advogada professora de Direito Civil conselheira seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Bahia) presidenta da Comissão de Precatórios e membro da Comissão de Direito de Família da OAB-BA membro associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da International Society of Family Law e doutoranda e mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

26 de novembro de 2020, 18h15

Recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul causou alvoroço no meio jurídico. Trata-se do acórdão que reconheceu como união estável relacionamento afetivo mantido paralelamente ao casamento por cerca de 50 anos, com as respectivas repercussões patrimoniais.

Seria o início do fim do princípio da monogamia? Legitimação da bigamia?, perguntaram-se alguns. Ou seria apenas o estabelecimento de uma moldura jurídica para uma situação fática juridicamente relevante?

A proibição de que pessoas casadas contraiam novo casamento, contida no artigo 1.521, VI, do Código Civil, consagra o sistema monogâmico do direito das famílias brasileiro e fundamenta o não reconhecimento de união estável simultânea ao casamento, a menos que haja a separação de fato.

Equivocadamente denominada de princípio, a monogamia é opção do legislador brasileiro e da absoluta maioria dos países ocidentais, consagrada na norma proibitiva supra referida.

O direito canônico foi fundamental para o desenvolvimento da predominante concepção de família e de conjugalidade monogâmica. A Igreja Católica foi a primeira instituição a fazer do casamento um ato solene e regulou-o de forma tão detalhada que mesmo o movimento de secularização pós-Revolução Francesa não foi capaz de apagar tamanha influência [1].

Alguns autores defendem que a opção do legislador pelo sistema monogâmico não é uma escolha por valores morais ou moralizante, mas uma questão de organização jurídica da família, um mecanismo de se barrar supostos excessos [2]. Malgrado diversos autores entendam ser a monogamia princípio estruturante do direito das famílias, essa concepção não é uníssona: embora não se negue a centralidade das famílias monogâmicas nas sociedades cristãs ocidentais, também não se pode negar a existência de arranjos familiares que fogem desse padrão [3].

Importante esclarecer que monogamia e fidelidade são coisas distintas. A imposição da monogamia não impede traição e a infidelidade tanto quanto a fidelidade pode ser preservada em relações poligâmicas [4]. O que o sistema monogâmico não admite é o estabelecimento de mais de uma relação conjugal [5], seja pelo casamento, seja através pela união estável.

Dessa maneira, ao impor a monogamia como regra, o Estado opta por um modelo único de conjugalidade, que, embora satisfaça parcela prevalente da sociedade, não respeita a pluralidade consagrada no texto constitucional. A imposição da monogamia nega o status de família a situações fáticas cada vez mais visíveis: os núcleos familiares paralelos ou simultâneos e aqueles compostos por mais de duas pessoas na relação afetiva, que vêm sendo chamados de uniões poliafetivas ou, simplesmente, designados de poliamor.

Embora o poliamor seja tema que tenha ganhado visibilidade apenas mais recentemente, as famílias simultâneas constituem tema enfrentado pelo Judiciário brasileiro já há quase duas décadas [6], especialmente para se lhes reconhecerem efeitos sucessórios e previdenciários. Ou seja, trata-se de realidade sociológica que ainda busca reconhecimento jurídico [7].

A decisão do tribunal gaúcho chamou atenção, pois, mesmo com o crescente reconhecimento pela doutrina do status de família das relações anteriormente designadas de concubinárias, a jurisprudência dos tribunais superiores tende a colocar a união estável simultânea ao casamento (ou a outra união estável) à margem da seara familiarista, negando-lhes os efeitos da proteção constitucional.

Nesse sentido, vale analisar como exemplos o julgamento do Recurso Especial nº 1096539/RS, em que o Superior Tribunal de Justiça confirmou entendimento já adotado pela corte de impossibilidade de se reconhecer o vínculo jurídico da união estável concomitante a casamento não desfeito, e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE 397762/BA, em que se reforçou a distinção entre companheira e concubina.

Admitir, nos dias atuais, a existência de concubinato, mesmo quando presentes todos os requisitos indicativos de união estável, negando-lhe efeitos jurídicos decorrentes da proteção constitucional à família, é virar as costas a toda principiologia constitucional, que rompeu com a necessária associação entre família e casamento.

Entender, portanto, a monogamia como princípio estruturante do Direito das Famílias implica negar reconhecimento a famílias existentes no mundo dos fatos. É o famoso cobertor curto: cobre aqui, descobre ali. E, assim, desprotegem-se famílias definidas como concubinárias que, muitas vezes, até precedem à família conjugal, por razões que não cabe ao operador do Direito avaliar.

A decisão do TJ-RS, assim, merece aplausos ao olhar o caso concreto com a atenção e a cautela que merecem as demandas de família, humanizando o processo e deixando os julgamentos estritamente morais fora dos autos — como deve ser.

 


[1] SILVA, Marcos Alves da. Da Monogamia: a sua superação como princípio estruturante do Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2013, p. 69-70.

[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 131.

[3] RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas e o Princípio da Monogamia. V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Anais… Belo Horizonte, out. 2005.

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família, cit., p. 128-129.

[5] Toma-se de empréstimo aqui o conceito adotado pela psicologia, no qual a conjugalidade é a comunhão de vida estabelecida pelo casal, independentemente do vínculo jurídico do matrimônio.

[6] Nesse sentido, confira-se o Recurso extraordinário nº 158700, de relatoria do ministro Néri da Silveira, julgado em 30/10/2001. A decisão de primeiro grau havia reconhecido como união estável a relação simultânea ao casamento, mas foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o que foi corroborado pelo Supremo Tribunal Federal. Cf. STF, 2ª Turma, RE 158700, relator(a): min. Néri da Silveira, julgado em 30/10/2001.

[7] Duína Porto define a mononormatividade como "a normatização estatal da monogamia enquanto protótipo exclusivo das relações conjugais". PORTO, Duína. Mononormatividade, intimidade e cidadania. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 654-681, 2018. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/rdgv/v14n2/1808-2432-rdgv-14-02-0654.pdf > Acesso em 23 jul. 2020.

Autores

  • é advogada, professora de Direito Civil, conselheira seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Bahia), presidenta da Comissão de Precatórios e membro da Comissão de Direito de Família da OAB-BA, membro associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da International Society of Family Law e doutoranda e mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

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