Opinião

O contrassenso da OAB-DF quanto à LGPD

Autores

  • Everardo Ribeiro Gueiros Filho

    é advogado em Brasília especialista em Direito Eleitoral e Processo Civil.

  • Felipe Aires Coelho Araújo Dias

    é sócio do escritório Aires & Levy Machado Advogados Associados especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC e membro da Câmara Técnica de Gestão Pública e da Câmara Técnica de Cidadania do Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável e Estratégico do Distrito Federal (Codese/DF).

14 de novembro de 2020, 11h17

Neste ano, entrou em vigência no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) — Lei 13.709/2018 —, com exceção de seus artigos 52, 53 e 54, que cuidam das sanções administrativas no âmbito da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e que passarão a vigorar, tão somente, no dia 1º de agosto de 2021.

Conforme se depreende de seu artigo 1o, caput, a LGPD "dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de Direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural".

A edição da LGPD, ressalte-se, foi de suma importância para o Brasil, posto que, no tocante à matéria de proteção de dados e privacidade (PD&P), nos encontrávamos extremamente ultrapassados, arcaicos, não apenas em relação a países vizinhos, como Argentina e Uruguai, mas, especialmente, em relação à União Europeia, que revolucionou a concepção de PD&P com a edição do General Data Protection Regulation (GDPR) — EU 2.016/679.

O GDPR, que, vale registrar, inspirou sobremaneira o legislador brasileiro, resultou de uma grande "preocupação", por assim dizer, dos países que compõem a União Europeia. De maneira mais específica, referidos países se ativeram ao fato de que grandes empresas, notadamente aquelas do setor de tecnologia, conheciam os seus cidadãos mais do que os próprios governos.

Por meio de coleta de dados pessoais em massa, referidas empresas criavam grande bancos de dados e definiam o "perfil" de seus usuários e, uma vez munidas de tais (preciosas) informações (gostos, preferências, medos, aversões, opiniões políticas etc.), exerciam grande controle sobre os seus usuários, podendo, a título de exemplo, não apenas induzi-los a comprar um determinado produto, mas também a votar em um determinado candidato em um pleito eleitoral, viciando, assim, a vontade popular (o que é ainda mais preocupante).

Pois bem, a LGPD, que "bebeu da mesma fonte do GDPR", dispõe, em seu artigo 6o, incisos I a X, os princípios que devem ser observados quando do tratamento de dados pessoais, em especial os três primeiros incisos, a saber:

"Artigo 6º — As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:
I. finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades;
II. adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento;

III. necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados".

Conforme se depreende dos incisos I, II e III, qualquer tratamento de dados pessoais deve ter propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades (finalidade); deve haver sempre compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento (adequação); e o tratamento de dados pessoais deve ser sempre limitado ao mínimo necessário para o atingimento de seus propósitos, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados (necessidade).

Em seus artigos e 11, por outro lado, a LGPD estabelece as hipóteses em que poderá ocorrer o tratamento de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis, respectivamente. Oportuno ressaltar, que os referidos dispositivos trazem um rol taxativo, de modo que qualquer processamento de dados deverá, impreterivelmente, estar amparado em algum de seus incisos ("bases legais").

Do inciso IV do artigo 7o e do inciso II, alínea "c", do artigo 11, por exemplo, depreende-se que o tratamento de dados pessoais ou de dados pessoais sensíveis poderá ser executado para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.

Se, de um lado, a proteção aos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural é uma preocupação do Estado brasileiro — não à toa que a LGPD foi editada —, de outro, lamentavelmente, o mesmo não se pode dizer em relação ao Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), que, em clara e patente afronta à LGPD e a um ano das próximas eleições internas, vem criando o "perfil" vertical e radical de seus integrantes (e eleitores), agindo como uma daquelas grandes empresas (navegadores de internet, redes sociais etc.), que buscam controlar os seus usuários, por meio do conhecimento de seus gostos, preferências, medos, aversões, opiniões políticas etc. (bancos de dados associados a tecnologias como deep learning, IA etc.).

Afirma-se isso, pois, verifica-se, hoje, no sítio oficial da OAB-DF — entidade de representação dos advogados do Distrito Federal, da qual se espera, sempre, o mais absoluto respeito ao ordenamento jurídico pátrio e ao Estado democrático de Direito o "Censo OAB-DF", que a entidade, ressalte-se, vem distribuindo, inclusive, "superprêmios" para aqueles advogados que participarem.

De início, cumpre registrar que a LGPD legitima esse tipo de "pesquisa", que vem sendo promovida pela OAB-DF tão somente quando realizada por "órgãos de pesquisa", definidos na lei como todo e qualquer "órgão ou entidade da Administração Pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no país, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico" (artigo 5o, inciso XVIII). Definitivamente, a OAB-DF não se enquadra como "órgão de pesquisa". Todavia, acaso tenha a OAB-DF contratado entidade desse ramo específico para tratar e colher os respectivos dados dos advogados, pergunta-se: 1) qual o custo desse contrato?; 2) quais critérios para tal contratação?; 3) qual a destinação especifica dessa colheita de dados?; 4) as anuidades profissionais cobradas pela OAB devem ser gastas com esse tipo de pesquisa?

Não obstante, analisando-se o formulário submetido aos advogados, não se verifica qualquer "anonimização", em que pese os supracitados artigos 7o (tratamento de dados pessoais) e 11 (tratamento de dados pessoais sensíveis) recomendarem a adoção de tal medida, quando da realização de pesquisas. No caso em análise, o advogado precisa se identificar, mediante a apresentação de seu nome, número de inscrição na OAB, telefone e e-mail.

Do mesmo modo, não se verifica a indicação da base legal para o tratamento dos dados pessoais, tampouco a indicação explícita dos propósitos legítimos e específicos, para o tratamento dos dados pessoais, de modo que, em momento algum, a entidade evidencia as razões para a coleta de tantos dados, muitos dos quais, inclusive, sensíveis (identificação étnico racial, identificação religiosa e opiniões políticas — artigo 5o, inciso II).

Não bastassem todas essas ilegalidades, cumpre ainda salientar que vários dos dados que já vêm sendo coletados pela OAB-DF, definitivamente, não são ou, ao menos, não deveriam ser de interesse da entidade, havendo, no caso concreto, patente afronta ao supracitado princípio da necessidade ("minimização dos dados").

Isso porque são dezenas de dados pessoais que, definitivamente, são indiferentes para o exercício das missões institucionais da OAB-DF, a título de exemplo: identificação étnico-racial; identificação religiosa; dependência econômica; e número de pessoas que o advogado reside.

Mais preocupante ainda são os dados coletados no "Censo OAB-DF" — ou melhor, "Contrassenso OAB-DF" —, que, além de serem irrelevantes para o exercício das missões institucionais da entidade, podem ter finalidade eleitoreira. A título de exemplo: a avaliação da atual gestão, se o advogado saberia indicar alguma coisa positiva que a atual gestão tenha feito, e se o advogado saberia indicar alguma coisa negativa que a atual gestão tenha feito.

Ora, conforme exposto, o tratamento de dados pessoais deve ser sempre limitado ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados.

É bem verdade que a pesquisa que vem sendo realizada pela OAB-DF se assemelha, e muito, àquelas pesquisas realizadas por grupos políticos, antes de pleitos eleitorais, para definição da plataforma de campanha e, no caso concreto, o que causa ainda mais estranheza é que tudo isso vem sendo feito com a utilização da estrutura e do dinheiro (anuidade dos advogados) da OAB-DF, inclusive com a oferta de "superprêmios" — caracterizando uma verdadeira "compra de dados pessoais".

Pois bem, é, de fato, lamentável que, no momento em que a privacidade e a proteção de dados pessoais são colocados no mais alto pedestal de proteção das liberdades civis, justamente a OAB-DF, o bastião da cidadania, abusando do que a doutrina chama "teoria da decisão da utilidade subjetiva", ofereça a possibilidade de serem obtidos "superprêmios" para que os próprios membros da categoria ajudem a construir um superbanco de dados contendo identificação étnica (dados sensíveis), confissão religiosa (dados sensíveis), prole, dependência econômica, localização de residência e trabalho, dados socioeconômicos, formação acadêmica, estrutura previdenciária, avaliação política da gestão vigente (identificação do próprio eleitorado), além da obtenção, ao final, de um voto de aprovação da gestão (obtenção de dado sensível), sem qualquer explicitação da finalidade e da base legal utilizada. Tudo isso lançando mão da própria máquina corporativa.

Os dados colhidos nesse "contrassenso" (senso-propaganda) não têm finalidade clara, podendo ser utilizada para outros fins a exemplo do eleitoral e fisiológico. Camufla sua finalidade disfarçando-se de serviços à categoria. Não é necessário ter acesso aos dados biográficos de cada membro da OAB para se ter um adequado levantamento socioeconômico da categoria.

Todo esse levantamento sociotopológico — a exemplo do manuseio que foi feito na penúltima eleição americana e no Brexit — pode ter a finalidade de explorar mercadologicamente esses dados pessoais e dados pessoais sensíveis, de forma a tratar refinadamente as informações dos advogados, o que deve ser firmemente rechaçado.

A finalidade é "conhecer a categoria e suas necessidades"? É "fazer mais pela advocacia"? Pois bem: que esse levantamento seja feito de modo anonimizado e que os dados sejam tornados públicos (com auditabilidade e rastreabilidade), para que todos possam ter acesso a essa base, a qualquer momento!

Finalmente, quem vai financiar a concessão dos "superprêmios", que servem de incentivo à cessão dos dados pessoais? A própria OAB-DF? Advogados que desaprovam a atual gestão? Qualquer das duas hipóteses é abjeta!

À OAB-DF, enquanto entidade de representação dos advogados do Distrito Federal, cabe dar o exemplo e respeitar não apenas a LGPD, mas toda e qualquer norma jurídica vigente, isso é respeitar e defender o Estado democrático de Direito.

Não se pode olvidar que, apesar de os artigos 52, 53 e 54 da LGPD, que cuidam das sanções administrativas no âmbito da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), ainda não estarem em vigor, a OAB-DF, ao propor esse tipo de pesquisa e se lançar em busca de diversos de dados pessoais (inclusive, sensíveis) que, definitivamente, não lhe dizem respeito, sem sequer esclarecer os propósitos do tratamento, coloca a entidade em uma situação extremamente delicada, sujeita, inclusive, a sofrer possíveis condenações judiciais com base na LGPD.

Desse modo, enquanto o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vem, de forma louvável, editando ebooks e cartilhas a respeito da LGPD, esclarecendo aos advogados as peculiaridades dessa nova lei, o que se vê especificamente no âmbito do Distrito Federal é um verdadeiro retrocesso no que tange à matéria de PD&P.

O projeto de aprendizagem profunda dos dados dos advogados colocado em prática pela OAB-DF, por certo, é suficiente para fazer corar de vergonha empresas como Cambridge Analytica e AggregateIQ, responsáveis pelos resultados eleitorais mais escandalosos de todos os tempos, nos Estados Unidos da América e no Reino Unido (Brexit).

Autores

  • é advogado em Brasília, especialista em Direito Eleitoral e Processo Civil.

  • é sócio do escritório Aires & Levy Machado Advogados Associados, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC e membro da Câmara Técnica de Gestão Pública e da Câmara Técnica de Cidadania do Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico do Distrito Federal (Codese/DF).

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