Opinião

Mineração em terras indígenas: um debate necessário

Autor

  • Pedro Rezende de Magalhães

    é advogado especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC Minas (pós-graduação lato sensu) coautor da obra Direito Ambiental em Desenvolvimento (Editora D'Plácido) e ex-procurador-geral da Câmara Municipal de Guaxupé (MG) no biênio 2019-2020.

11 de novembro de 2020, 6h04

Já se somam três decênios da promulgação da Carta Cidadã de 1988, tempo razoavelmente suficiente para uma reflexão séria e comprometida do texto constitucional pelo Congresso Nacional, mas certos assuntos ainda ostentam uma inexplicável aura de impronúncia, soando quase como questões impertinentes, verdadeiros tabus onde se deseja o império do diálogo. Um dos exemplos mais tangíveis desta espécie de Index Prohibitorum parlamentar, certamente, é a questão da realização de empreendimentos minerários em terras indígenas.

Muito embora o constituinte tenha transmitido ao legislador infraconstitucional a tarefa de regulamentar tais relações, a sensação é de que muito pouco se avançou na missão de complementar a eficácia contida da norma [1].

Entrementes, em fevereiro último o governo federal, em texto encaminhado à apreciação presidencial por iniciativa do então ministro Sérgio Moro e do atual titular da pasta de Minas e Energia, Bento Albuquerque, remeteu ao Parlamento o Projeto de Lei nº 191/2020, que busca precisamente enfrentar a temática supracitada.

Por ora, apesar da diminuição das atividades em virtude da pandemia, parlamentares de diferentes inclinações políticas (PSOL e PT à esquerda, PL ao centro/direita) já discursaram, em Plenário, contra a proposta in comento. O deputado Fernando Rodolfo (PL-PE) chegou inclusive a requerer a suspensão de tramitação da matéria, por entendê-la inconstitucional. Do que se vê, o céu que se avizinha, uma vez mais, não é de brigadeiro.

Sucede, todavia, mesmo em análise sumária, que a proposta merece maior atenção e aprofundamento. Isto é, paixões à parte, parece ser, enfim, possível a construção de um diálogo racional e equilibrado, que permita às partes uma composição justa. Senão veja-se.

De início, tem-se que o intuito do projeto, como já pontuado, nada mais é que atender ao comando constitucional de regulamentação das atividades minerárias em terras indígenas [2], tal qual ocorre com a faixa de fronteira, hoje definida pela Lei nº 6.634/79, notadamente por seu artigo 2º, IV, "a", e artigo 3º. Isso posto, é preciso ficar claro que a Constituição Federal não torna defesa a exploração/explotação de recursos minerais na porção territorial tradicionalmente ocupada pelos povos pré-colombianos, ela apenas exige normatização específica à hipótese concreta. Assim não fosse, por qual razão teria o constituinte deixado expresso que "quando essas atividades se desenvolverem (…) em terras indígenas" (artigo 176, §1º) observarão regramento próprio e que "a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional" (artigo 231, §3º)? Noutros termos, a discussão não é sobre se deve haver mineração nessas áreas, mas, sim, como ela deverá se dar.

Além disso, o segundo principal ponto da proposta é a instituição da indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas que, do modo como está disciplinada no projeto, trata-se de figura assemelhada à renda por ocupação prevista no artigo 27 do Código de Mineração, visto englobar tanto a atividade de pesquisa propriamente dita quanto eventuais servidões minerárias. Não é, pois, verdadeira inovação, até mesmo porque a Lei nº 6.001/73 [3] — bem como a Constituição, no que tange à participação nos resultados da lavra — já prevê tais garantias, as quais constituem fonte de renda do patrimônio indígena.

Interessante notar ainda, por exemplo, que a proposta retira de seu âmbito de abrangência os indígenas isolados e as terras de domínio indígena. Por exclusão, portanto, a proposta aplicar-se-ia apenas às terras ocupadas e áreas reservadas nas quais habitam os indígenas integrados ou em vias de integração, ainda lançando mão da terminologia utilizada pelo Estatuto do Índio (artigo 4º, II e III).

O tópico de maior consenso, possivelmente, deve ficar a cargo do rol de condições específicas às atividades minerárias, cujo texto vai ao encontro do que dispõe o artigo 15.2 [4] da Convenção nº 169 da OIT (Anexo LXXII do Decreto nº 10.088/19). Qualquer atividade, pesquisa ou lavra, dependeria de prévia autorização do Congresso Nacional, tal qual já prevê a Constituição Federal, e também da realização de estudos técnicos e oitiva das comunidades afetadas, sem prejuízo, por óbvio, das indenizações e participação nos resultados.

Entretanto, na redação original, a questão do estudo técnico prévio (capítulo III) levanta indagações importantes. De acordo com a proposição (artigo 4º), o mesmo "será realizado preferencialmente na fase de planejamento setorial e objetiva avaliar o potencial da terra indígena para a realização das atividades". O que seria a fase de planejamento setorial? Seria uma ação de mapeamento governamental do "potencial da terra indígena", isto é, um tipo de pesquisa preliminar que se daria a cargo do próprio governo? O projeto não deixa isso muito claro, visto colocar tal estudo sob responsabilidade de "órgão ou entidade" (artigo 5º). O fato de que os encargos do estudo prévio seriam repassados ao minerador (artigo 39, parágrafo único), bem como que "o Poder Executivo federal estabelecerá quais áreas são adequadas para a pesquisa e a lavra" (artigo 9º), também reforça a conclusão nesse sentido.

Nessa esteira, o atual paradigma que permeia a atividade minerária, segundo o qual compete essencialmente à iniciativa privada essa "prospecção" em áreas desoneradas ou em disponibilidade, sofreria significativa mitigação em terras indígenas [5].

Outro ponto que suscita questionamento é o assentimento indígena. Seria ele vinculante ou consultivo? Considerando a Constituição Federal, que acomoda o verbo "autorizar" ao lado do Congresso e "ouvir" ao lado das comunidades, e também do PL 191/20, que é cristalino pela própria redação do capítulo respectivo (capítulo IV, "da oitiva das comunidades indígenas afetadas, para fins de autorização do Congresso Nacional"), parece mais correto concluir pela segunda opção, ou seja, há que se levar em conta a opinião — concretamente de maior peso — dos povos atingidos, mas a mesma não pode ser tida em caráter conclusivo.

Aliás, impende registrar que a proposição iguala o valor devido pela explotação em terras indígenas ao percentual do regime geral, que é de 50% da compensação financeira pela exploração de recursos minerais (CFEM). Aqui, com efeito, repousa assunto caro às comunidades indígenas, porquanto não haver razão, em virtude das peculiaridades do tema (história, costumes, impacto ambiental e social etc.), para que inexista pressão pelo aumento do montante, mesmo como uma "indenização" adicional pelas consequências da rigidez locacional das jazidas em ambiente tradicionalmente vulnerável.

Nada obstante, vai bem o projeto, crê-se, ao buscar estabelecer a figura dos conselhos curadores (capítulo VI, seção II), "entidades de natureza privada (…) responsáveis pela gestão e governança dos recursos financeiros" (artigo 21) devidos ao patrimônio indígena em decorrência da atividade minerária, os quais seriam compostos "(…) de, no mínimo, três indígenas, assegurada a representação de cada povo indígena das comunidades indígenas afetadas" (artigo 24). Se bem manuseado, eis instrumento com grande potencial de fortalecimento dos interesses das comunidades afetadas, além de importante reforço fiscalizatório.

Outrossim, item que reclama atenção é a lavra garimpeira, atualmente uma realidade nefasta em certos territórios indígenas, vez que de ilegalidade manifesta. Em que pese a legislação, reiteradamente, ter disposto acerca da exclusividade indígena sobre os recursos naturais compreendidos em seu território [6], fato é que até então isso não tem sido suficiente. Nesse jaez, o projeto em testilha traz a imprescindibilidade de consentimento expresso das comunidades afetadas para que a iniciativa garimpeira prospere. Ora, daí se depreende que, para o garimpo, a oitiva local deixa de ser meramente consultiva e passa a vincular a Administração, o que tem o condão, inclusive, de reforçar o poder de polícia no tocante à repressão da atividade criminosa.

Contudo, um último elemento que deve ser melhor esquadrinhado — mas longe da pretensão de exaurimento da matéria — é que, tal como está, a proposta exclui a indenização pela restrição do usufruto da fase de lavra [7], como se, e.g., eventuais servidões instituídas durante a pesquisa e ainda em utilização na explotação deixassem, apenas à vista do encerramento de uma etapa procedimental, de implicar em restrição aos elementos de propriedade, o que é um contrassenso.

Enfim, o tema é, sem dúvidas, sensível. Historicamente, o Estado tem muito a dar em conta aos verdadeiros filhos desta terra, outrora domínio tupiniquim e demais famílias pré-colombianas, que hoje conforma a nação brasileira. Lado outro, a mineração, dentro do atual modelo econômico mundial dominante, é atividade de interesse nacional e utilidade pública [8].

Como recentemente relembrou Mario Sérgio Cortella, citando John Donne, "o mar é tão profundo na calmaria quanto na tempestade". É dizer, essencialmente, que ignorar um problema não importa sua inexistência, mas tão somente sua negação. E esta não socorre a ninguém.

Mister, portanto, que o país faça sua escolha.

 


[1] Não se olvida, evidentemente, dos esforços envidados na tramitação do Projeto de Lei nº 1610/1996 (PLS 121/1995), de autoria do então senador Romero Jucá.

[2] O texto original da proposição também abarca o aproveitamento de hidrocarbonetos e recursos hídricos, os quais, por escaparem ao escopo do direito minerário per se, não serão abordados neste opúsculo.

[3] "Artigo 45 — A exploração das riquezas do subsolo nas áreas pertencentes aos índios, ou do domínio da União, mas na posse de comunidades indígenas, far-se-á nos termos da legislação vigente, observado o disposto nesta lei.
(…) § 1º. O Ministério do Interior, através do órgão competente de assistência aos índios, representará os interesses da União, como proprietária do solo, mas a participação no resultado da exploração, as indenizações e a renda devida pela ocupação do terreno reverterão em benefício dos índios e constituirão fontes de renda indígena"
.

[4] "15.2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades".

[5] Vale pontuar, como aparte, que a proposta faz o mesmo com o regime de prioridade, sendo expresso quanto à necessidade de licitação para aproveitamento das áreas (artigo 32).

[6] Isso inclusive se verifica no texto do Decreto nº 88.985/83 — do qual não consta revogação expressa, que reafirma a exclusividade (artigo 2º), ainda que com certo abrandamento (artigo 4º).

[7] "Artigo 28 (…):
(…) §3º. Após o início do aproveitamento econômico das atividades previstas nos incisos I e II do
caput, será devido exclusivamente o pagamento da participação nos resultados, sem prejuízo da exigibilidade de parcelas indenizatórias vincendas".

[8] Artigo 5º, alínea "f", do Decreto-Lei nº 3.365 de 21 de junho de 1941.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!