Opinião

A abusiva responsabilização de advogados pelos Tribunais de Contas — Parte 3

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3 de novembro de 2020, 9h14

Continuação da parte 2

Como se procurou destacar nos capítulos anteriores, o advogado público, segundo jurisprudência consolidada do STF, não exerce atos de gestão ao desempenhar suas funções de assessoramento jurídico, razão pela qual descabe sua responsabilização, a não ser nas situações em que restar demonstrado que a peça opinativa ou o ato praticado, por erro grave, inescusável ou mesmo seu caráter doloso, foi a razão clara e direta para a ocorrência da irregularidade.

A inobservância dessas premissas, pelos Tribunais de Contas, tem causado, de um lado, diversas disfuncionalidades que atentam contra o desiderato da eficiência no âmbito da Administração Pública, e, de outro, violações de preceitos e direitos fundamentais, e de prerrogativas profissionais e funcionais, não só de advogados, mas também de diversos agentes públicos.

Nos últimos anos, diante desse grave cenário de abusos e da insegurança jurídica causada, foram tomadas iniciativas legislativas com o intuito de melhor disciplinar os temas que envolvem a responsabilização no âmbito da Administração Pública e coibir os excessos no exercício das funções de controle externo. Isto porque as acusações endereçadas têm, em boa parte das vezes, marcas kafkianas clássicas, pois a "prova" brandida é apenas uma: haver concluído juridicamente em sentido distinto do que entende o órgão de controle externo, isto é, pensar diferente. Já o crime é o de hermenêutica.

Iniciativas como o advento de uma nova lei contra o abuso de autoridade, inclusive com a previsão de responsabilização penal pela violação de prerrogativas conferidas à advocacia, motivaram discursos corporativistas de segmentos do Poder Judiciário e do Ministério Público no sentido de que se estaria diante da pretensão de inibir a fiscalização e condenação de malfeitores, garantindo a impunidade. Embora, de fato, não se possa negar que a corrupção é uma das maiores chagas do país, inclusive no âmbito dos próprios Tribunais de Contas, essas proposições revelam-se pertinentes e vão ao encontro do necessário processo de avanço civilizatório e institucional que permita aperfeiçoar os meios de controle das esferas de poder no Brasil, sem descurar, ainda, das garantias que devem ser conferidas a todos os cidadãos contra o arbítrio.

Revela-se paradoxal, nesse aspecto, que muitos dos membros do Ministério Público que criticaram, acertadamente, a possibilidade de se estabelecer o "crime de hermenêutica" no então projeto de lei sobre abuso de autoridade, ou seja, punir alguém em razão de sua convicção jurídica, processem advogados públicos pareceristas, criminalmente ou por improbidade administrativa, quando externam posicionamentos diferentes dos deles.

Não se trata aqui, portanto, nem de afirmar que o advogado goza de irresponsabilidade civil absoluta, nem, tampouco, que os Tribunais de Contas não possam, e não devam, exercer com independência suas funções de controle. Cuida-se apenas de uma necessária reflexão sobre os limites constitucionais e legais da imunidade conferida ao advogado, e de atuação dos órgãos de controle externo, à luz do postulado maior da segurança jurídica.

Nesse sentido, o atual Código de Processo Civil trouxe, em seu artigo 184, nova disposição legal sobre o tema, ao prever que o advogado público só será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções, de modo a finalmente equipará-lo, em termos de responsabilização civil, com os juízes e os promotores de Justiça, nos termos dos artigos 143 e 181 do referido diploma. A norma, embora se refira ao dano processual e esteja prevista na legislação adjetiva, tem nítido conteúdo material, de forma que tem sido vista pela doutrina como um novo parâmetro na aferição da responsabilidade do advogado público.

Isto é, por se tratar de dispositivo inserido no âmbito da responsabilização civil de advogado público e por ter sua aplicação prevista no campo maior do dano indenizável, disciplinando os elementos subjetivos exigidos, parte da doutrina defende que se trata de norma heterotópica e que pode se estender para as hipóteses de parecer jurídico e demais atos privativos da advocacia. Assim, sua interpretação tem como fundamento de validade os artigos 37, §6º, e 133 da Constituição Federal, que tratam, respectivamente, da responsabilização civil das pessoas jurídicas de Direito público ou privado prestadoras de serviços públicos e do direito de regresso contra seus agentes nos casos de dolo ou culpa, e da inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações, nos limites daquilo que for disciplinado em lei.

Sustenta-se que os advogados públicos estão submetidos a duplo regime, na medida em que são também servidores ou empregados públicos. Assim, embora a Constituição Federal e a legislação própria prevejam a responsabilidade regressiva, nos casos de dolo ou culpa, para os servidores públicos, no que diz respeito aos advogados, diante da imunidade material que lhes é conferida por seus atos e manifestações no exercício profissional, prevaleceria, a partir de sua edição, o previsto no artigo 184 do Código de Processo Civil, afastando-se a aplicação específica do artigo 32 a Lei nº 8.906/1994, que teria passado a disciplinar apenas o exercício profissional dos advogados privados.

Ainda segundo os autores que defendem essa perspectiva, por se tratar de norma especial, o artigo 184 do Código de Processo Civil deve prevalecer sobre o Estatuto da Advocacia, pois passou a existir disciplina específica para a advocacia pública, e o constituinte, ao permitir a definição dos limites da inviolabilidade do advogado na legislação infraconstitucional, dá ampla guarida para que o elemento subjetivo de aferição da responsabilidade civil do advogado público seja mais restrito, no caso, limitado ao dolo ou fraude, como teria pretendido o legislador ao trazer novo regramento sobre o tema.

Por consequência, em sua atuação, judicial ou como parecerista, o advogado público não mais responderá em casos de culpa em sentido estrito. Apenas quando agir com dolo, ou seja, a consciência e o intuito de obter resultado contrário ao interesse público e causar dano, ou mesmo quando fizer uso de artifício malicioso com intenção fraudulenta, significa dizer, imbuído de má-fé e com a pretensão de utilizar meio fraudulento para enganar e trair os interesses da Administração Pública, é que caberá sua responsabilização pessoal.

De acordo, ainda, com a referida norma e as interpretações que vêm sendo dadas, além de se exigir os requisitos do dolo ou da fraude, não se cogita também de responsabilidade solidária, mas sim regressiva do advogado público, sob o argumento de que a solidariedade não se presume e deve decorrer necessariamente de previsão legal que a indique.

Ademais, mesmo que se possa discutir se essa interpretação, que afasta o Estatuto da Advocacia para aplicar a norma específica do Código de Processo Civil como supedâneo para a responsabilização civil do advogado público, é a mais correta, há de se considerar o advento da Lei nº 13.327/2016, que, ao tratar de carreiras jurídicas no âmbito da União, prevê, no artigo 38, §2º, e entre as prerrogativas dos advogados públicos, que, no exercício de suas funções, não serão responsabilizados, exceto pelos respectivos órgãos correcionais ou disciplinares e ressalvadas as hipóteses de dolo ou fraude.

O legislador, mais uma vez, foi claro e expresso em apontar que a responsabilidade do advogado público, ao menos no âmbito da União, tem como pressuposto a má-fé, ou seja, a vontade direcionada e inequívoca de causar dano. O TCU, contudo, tem negado a incidência dessa norma que limita a responsabilização de advogados públicos federais, sob o entendimento de que ela se destina apenas à apuração de faltas funcionais na esfera da Advocacia-Geral da União e que não se aplica diante da atividade fiscalizatória do órgão de controle externo, cuja competência sancionatória advém do artigo 71, VIII, da Constituição Federal, que não fez exceções para agentes públicos integrantes de carreiras específicas. Ou seja, o TCU insiste em reafirmar sua competência para fiscalizar e sancionar advogados públicos no exercício de seus atos e manifestações, embora o STF já tenha afirmado e reiterado essa impossibilidade e a lei seja clara em definir a instância de controle e as condições para responsabilização.

Outras iniciativas legislativas caminham nesse mesmo sentido, isto é, do estreitamento do elemento subjetivo da responsabilidade, afastando-se a culpa em sentido estrito, bem como a solidariedade, para somente admitir a responsabilização do advogado público nos casos de dolo ou fraude, vale dizer, de atuação com má-fé. É o que se depreende do Projeto de Lei nº 1.292/1995, que estabelece novo marco regulatório para as licitações e contratos públicos, e prevê, em seu artigo 52, §6º, que o advogado só será responsabilizado se agir com dolo ou fraude, bem como da Lei da Mediação (Lei nº 13.140/2015), que dispõe, em seu artigo 40, do mesmo modo, que servidores e empregados públicos que participarem do processo de composição extrajudicial de conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa e criminalmente quando, mediante dolo ou fraude, receberem vantagem indevida ou de algum modo facilitar, permitir ou concorrer para sua recepção por terceiro.

Cabe destacar também, no rol das medidas que visam a evitar o "apagão das canetas", a recente alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com o objetivo de incluir no ordenamento jurídico brasileiro disposições que garantam a segurança jurídica e a eficiência na criação e aplicação do Direito público, e que passou a vedar a utilização apenas de argumentos retóricos ou princípios, sem que seja feita a devida análise prévia e detida dos fatos e de suas consequências práticas, nas decisões proferidas em âmbito judicial e administrativo.

O artigo 28 dispõe sobre a chamada cláusula geral do erro administrativo e prevê, apesar do veto à parte em que tratava mais especificamente da definição de erro grosseiro, que o "agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro". O objetivo foi justamente o de garantir segurança ao administrador público para que possa desempenhar suas funções de maneira adequada, contribuindo, de vez, para a solução da polêmica sobre a possibilidade ou não de advogados públicos serem sancionados por seus atos e opiniões jurídicas.

Como reflexo do que já se apontava na jurisprudência e na doutrina, e embora a norma refira-se, em princípio, apenas ao administrador público, tratou-se de resposta do legislador à necessidade de se disciplinar o tema e evitar a prática, pelos órgãos de controle externo, da responsabilização indiscriminada no âmbito da Administração Pública. Novamente, o legislador foi claro em apontar a ideia de que a responsabilização em sede administrativa, mesmo para aqueles que têm poder de decisão, só pode se dar em casos de má-fé ou erro grave e inescusável, o que permite depreender que referido parâmetro interpretativo e sancionatório, com muito mais razão, também se aplica aos advogados, já que sequer exercem atos de gestão e encontram-se, hierarquicamente, adstritos ao assessoramento jurídico.

Diante de todo o cenário exposto, e à guisa de conclusão, soa prematuro afirmar que a disposição trazida pelo artigo 184 do Código de Processo Civil tenha afastado terminantemente a possibilidade de responsabilização de advogado por atos culposos em sentido estrito, mas, para tanto, será sempre imprescindível demonstrar a culpa grave, ou seja, que agiu com manifesta inépcia profissional, pois não se considera erro grosseiro a interpretação razoável, a opinião, enfim, baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas e aceitas pelos órgãos de controle.

No que se refere especificamente à carreira da advocacia pública no âmbito da União, diferentemente, parece-nos inequívoco que o legislador, por meio da Lei nº 13.327/2016 — que não sofreu qualquer impugnação quanto à sua constitucionalidade —, limitou a responsabilidade de seus integrantes aos casos de má-fé, ou seja, de dolo ou fraude, não cabendo mais falar em erro grosseiro como critério legal apto a mitigar a inviolabilidade profissional que lhes é conferida na condição de advogados.

Por questão de coerência e isonomia, embora a referida lei só diga respeito à carreira de advogados da União, principiológica e conceitualmente é possível construir espécie de interpretação analógica que nos permita estender os seus primados para as demais carreiras da advocacia pública, sem prescindir, claro, de iniciativas legislativas que evidenciem de forma clara esses limites também no âmbito dos demais entes da federação.

Essa previsão legal vai ao encontro, aliás, da tendência que se extrai de diversos julgados e leis mais recentes, no sentido de se restringir a responsabilização de advogados públicos aos casos de dolo ou fraude, relegando a culpa em razão de erro grave e inescusável a situações bem específicas.

Mesmo assim, em todas essas hipóteses, e ainda que se admita a responsabilidade por atos culposos em sentido amplo, a condenação só poderá se dar de forma regressiva e se houver a devida comprovação desses elementos subjetivos nas instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, e após garantidos o contraditório e a ampla defesa, pois o advogado público, por ausência de previsão legal, não é parte legítima a ser demandada, no âmbito desses órgãos de controle externo, para responder pelos atos de gestão, em conjunto e solidariamente, com os administradores públicos.

É papel da advocacia contribuir na promoção da dialética jurídica. O advogado público, a partir de uma compreensão contemporânea e sistêmica da Administração Pública, tem a função não só de controlar, mas de colaborar e orientar, deixando de apenas se manifestar quando instado para efetiva e proativamente contribuir na elaboração de estratégias que permitam avançar na atuação administrativa e no proceder do bem comum.

A Administração Pública tem enormes desafios na consecução dos ideários do bem comum no Brasil e, como já observava Pierre Édouard Lémontey, "os abusos que destroem as boas instituições têm o privilégio fatal de fazer subsistir as más", de modo que a ânsia de alguns membros dos Tribunais de Contas em se sobreporem aos gestores e advogados públicos quando não há coincidência de escolhas, ao contrário de contribuir para o aprimoramento da gestão pública, tem sido a causa de insegurança jurídica, a desafiar, diante de seus graves desdobramentos, a atuação firme de entidades como a OAB, para conscientizar, coibir e, até mesmo, responsabilizar aqueles que insistem em criminalizar o exercício da advocacia.

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