Opinião

A liberdade entre o sonho e o pesadelo: o paradoxo da pena privativa de liberdade

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1 de novembro de 2020, 18h15

A clássica obra cinematográfica "Um Sonho de Liberdade" (1994) — ou, no original, "The Shawshank Redemption" — ,estrelada por Morgan Freeman e Tim Robbins, coloca em xeque a utilidade do sistema prisional.

No pano de fundo, retrata-se a história do detento Brooks, um condenado a prisão perpétua que, àquela altura, tendo cumprido 50 anos de pena, já era idoso. Numa crítica direta à pena privativa de liberdade, tem-se o ápice quando Brooks recebe a liberdade condicional. O personagem, querido por todos, de imagem alegre e serena, surpreendeu quando teve um ataque de nervos e ensaiou matar um dos seus amigos, na desesperante esperança de continuar na prisão. É exatamente isso: continuar na prisão.

O idoso, que passou a maior parte da sua vida no cárcere, não mais sabia lidar com a liberdade. Comentando o que ocorreu, o protagonista Red (Morgan Freeman) fala que, após 50 anos dentro dos muros de pedra, Brooks está, em tradução livre, institucionalizado.

"Esses muros são estranhos. No começo, você detesta. Depois, se acostuma. Quando passa muito tempo… Você passa a depender deles (…). Te mandam ficar aqui a vida toda… E é a vida que acabam te tirando", Red.

Diante desse cenário, o filme coloca-nos uma séria questão: para que serve a pena privativa de liberdade?

Pois bem. No complexo estudo das funções ou finalidades da sanção penal, alguns falam em retribuição. Sob o lema punitur quia peccatum (pune-se porque pecou), a pena serviria, tão somente, para retribuir o mal causado (delito). Na dialética de Hegel, sendo o delito a negação do Direito, a pena é a negação da negação. Kant, também alinhado à noção retributiva, afirma que a punição é uma exigência incondicional de justiça — um imperativo categórico.

O filósofo alemão ilustra com a célebre alegoria da ilha, que sugere a seguinte conclusão: cometido um delito em uma ilha cuja população está prestes a evadir-se, restando apenas o criminoso, ainda assim, este deve ser punido. Em outras palavras: ainda que uma sociedade se desfaça, permanece a necessidade de punir o último criminoso.

Os retributivistas não são isentos de críticas, notadamente pela carência de fundamento empírico, sendo que, por vezes, são orientados por concepções metafísicas, o que é contestável sob um paradigma secular. Ora, pragmaticamente, o mal da pena soma-se ao mal do delito, na medida em que é incapaz de eliminá-lo. Diga-se: a pena parece, mais do que retribuir, reproduzir ou duplicar o mal.

Por outro lado, alguns defendem a finalidade preventiva da sanção penal. Os defensores desta falavam em um processo de racionalização da pena, que serviria a um fim social. A punição, aqui, não é vista como mera reação a uma ação, orientando-se, isto sim, para evitar futuros delitos: pune-se para não mais pecar (punitur ut ne peccatur). Enquanto a retribuição olha para o passado, a prevenção volve os olhares para o futuro.

Atualmente, entre as várias espécies de prevenção, há certa tendência a justificar a pena com base na prevenção especial positiva, que está ligada à noção de ressocialização.

Especialmente no Brasil, parece haver forte influência do pensamento de Claus Roxin. O jurista alemão, ao passo que não nega a retribuição, de forma secundária e mitigada, reconhece a prevenção como finalidade precípua da sanção penal (variante preventivo-retributiva ou teoria dialética da união). Ao dividir os momentos da cominação, da aplicação e da execução da pena, afirma que este último é orientado, com destaque, pela prevenção especial positiva.

Chegamos, enfim, ao ponto central: a pena serve, de fato, para ressocializar? Passamos, nos últimos tempos, por um processo de racionalização das penas?

De início, não se pode negar que, no discurso da ressocialização, tem-se um importante mecanismo argumentativo para a humanização das penas. Afinal, em terras brasileiras, as prisões apresentam condições subumanas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apurou que menos de 1% dos presídios brasileiros está em condições excelentes, enquanto 39,9% estão em condições péssimas ou ruins [1].

Nessa lamentável conjuntura, diz-se que a pena sequer serviria para atender à finalidade especial positiva. Tal argumento, por ser mais compreensível politicamente, serve para, como dito, pleitear condições materiais mínimas para os encarcerados. É o que Luís Greco [2] chama de argumento de conveniência, pelo qual se intenta falar a linguagem do príncipe.

Entretanto, pensemos em uma prisão com padrões mínimos de dignidade, como o estabelecimento em que Brooks cumpria pena. Ainda assim, parece, de fato, difícil pensar na pena privativa de liberdade como efetivo instrumento de ressocialização.

Realmente, basta estruturar esta breve frase, que resume a noção da pena ressocializadora, para perceber uma contradição em termos: isolamos socialmente para ressocializar. Ou, de forma mais completa, debruçar-se sobre a reflexão de Bitencourt em "Falência da pena de prisão" (1993, p. 147): "Não se pode ignorar a dificuldade de fazer sociais aos que, de forma simplista, chamamos de anti-sociais, se se os dissocia da comunidade livre e, ao mesmo tempo, se os associa a outros anti-sociais".

Os índices de reincidência desvelam a inconsistência do discurso da prevenção especial positiva. Segundo o CNJ, 42.5% dos adultos que tinham processos registrados em 2015 retornaram ao sistema prisional até dezembro de 2019. No Espírito Santo, esse número chegou a 75%. Nos Estados Unidos, a taxa de reincidência, conforme um amplo estudo feito em 30 dos 50 Estados-membros, perfaz a média de 77% [3].

Para os fins deste ensaio, ter-se-ia mais precisão se se considerassem apenas os que foram, efetivamente, encarcerados, submetendo-se à pena privativa de liberdade, especialmente nos regimes mais gravosos. Contudo, ainda assim, os números são preocupantes.

Acontece que muito se fala em ressocialização, mas pouco se debatem efetivos mecanismos de desestigmatização do egresso. É que este, ao sair da prisão, continua registrado — ou etiquetado —, institucional e socialmente, como um criminoso, gerando o que se chama, na crimonilonogia, de criminalização secundária. Uma vez condenado e apenado, a tendência é que o egresso do sistema prisional não mais consiga meios lícitos para subsistir.

À vista desse panorama, notando contradição per se dos fins da pena, insurgem-se os negativistas (teoria negativa da pena), que não a atribuem nenhuma função positiva. Compreendem-na, em verdade, como coerção que visa ao controle social, impondo dor e privação de direitos, sem, entretanto, reparar, restituir ou deter lesões emergentes, ou, tampouco, neutralizar perigos iminentes [4].

Daí falar-se em uma visão redutora de danos, segundo a qual o Direito Penal lato sensu, em um ordenamento jurídico que preze pelos direitos fundamentais, tem a função de conter o poder punitivo, diminuindo a sua intensidade irracional.

A pena, pois, nada seria senão um ato político, que deveria encontrar limites na racionalidade do Direito. O jurista da Escola do Recife, Tobias Barreto (1839-1889), deslegitimando qualquer tentativa de explicação racional da pena, disse ser esta um ato de guerra. Ora, assim como a guerra, não há como justificar ou legitimar o fenômeno da pena em termos jurídicos.

Aparentemente, assiste alguma razão à sensibilidade poética e acadêmica do pernambucano. É evidente o esforço, por parte da comunidade científica, para teorizar as finalidades da pena, que a justificariam ou a legitimariam. Não por acaso, trata-se de um dos terrenos mais nebulosos do Direito Penal contemporâneo.

Quanto ao problema das condições do cárcere, percebendo o paradoxo da pena privativa de liberdade e dispensando um argumento de conveniência, ao menos no plano acadêmico, parece mais coerente defender a humanização da pena, simplesmente com base na dignidade da pessoa humana.

Ao fim e ao cabo, aos leitores, ficam as seguintes provocações: a aclamada finalidade de ressocialização da pena privativa de liberdade resistiria a um sério e profundo debate? Seria mesmo racional ressocializar com o isolamento social? Ou seria a pena um ato de guerra? As prisões, como afirma o alemão Eberhard Schmidt [5], seriam erros monumentais talhados em pedra?

No filme, Brooks, já gozando da sua liberdade condicional, enviou uma carta aos amigos da prisão, em que finaliza: "Cansei de ter medo o tempo todo. Eu decidi… Partir. Duvido que vão se importar com um ladrão velho como eu". Posteriormente, em uma cena chocante, o personagem, outrora alegre e sereno, na escuridão — ou no pesadelo — da liberdade ultramuros, suicida-se.

 


[2] GRECO, Luís. Was lässt das Bundesverfassungsgericht von der Rechtsgutslehre übrig? ZIS. p. 236 e ss. 2008.

[4] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 26.

[5] AEBERSOLD, Peter. Le projet alternatif allemand d’uno loi sur l’éxecution des peines. Revue Internationale de Droit Pénal, n ¾, 1975, p. 269 et seq. apud ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 30.

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